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RAM MUNDA (7) – O NOVO DALIT CHORA

Autoria de Lu Dias Carvalho

Ramun VII

Na pele de Ram Munda, Marc Boulet adormece entre os dalits. O frio do amanhecer penetra-lhe fundo no corpo. Seus vizinhos acendem uma fogueira com madeira, plástico, papelão e tudo o mais que possa pegar fogo. O plástico queimado enche o ar de um cheiro ruim e queima os olhos com a sua fumaça. Ao lado do fogo, seus companheiros de sina tentam se aquecer. Alguns fumam biri. Outros parecem perdidos no tempo, num outro mundo.

Ao levantar-se, Ram Munda olha seu rosto de relance, no pequeno espelho que carrega, e se espanta com a sua aparência suja e triste, bem parecida com a dos intocáveis. Vai até um mictório (em híndi significa casa da urina) público, que fica perto do estacionamento dos trens. É feito de três paredes finas, sem teto e é aberto para a calçada. O chão encontra-se coberto de cocô. E deve haver uns 10 centímetros de altura de urina represada. A fossa está entupida e o lugar é terrivelmente fedorento. É preciso muito esforço para usar aquele lugar.

Como todo mundo, Ram Munda urina da parte externa para dentro. O jato de urina mistura ao pó e excrementos do chão e volta para seus pés, enlameando-os, unindo-se à poeira que neles se encontra. Sabe que não os pode lavar, para não tirar a cor da pele. Precisa manter o seu disfarce, continuando como se encontra. Ele tem vontade de vomitar. É-lhe impossível defecar naquele ambiente. Sai à procura de um lugar menos imundo, pois ali seria necessário usar botas para entrar. Maior humilhação não pode haver para um ser humano sujeito àquela imundície.

A estação ferroviária começa a ganhar vida com a chegada dos vendedores ambulantes. Na Índia, os trens possuem grades de ferro nas janelas, que permanecem abertas e possibilitam aos mendigos pedirem esmolas através dessas. E Ram Munda opta por pedir esmola dessa mesma maneira. Sente vergonha, mas é preciso seguir em frente. Dirige-se a vários viajantes, um de cada vez, e implora:

Babu (senhor), me dá dinheiro!

Nenhuma ajuda lhe é dada. Todos o ignoram, ou lhe fazem um sinal para que se afaste. Sabe que são tantos os mendigos, que não mais despertam a piedade das pessoas. Eles fazem parte do cotidiano, e ele é apenas um elemento a mais no cenário. Mandam-no trabalhar. Depois de muito mendigar, ganha vinte centavos de rúpia de um senhor. Leva o dinheiro até à testa, em sinal de respeito, como se tivesse recebido uma doação dos deuses. Sente-se imensamente feliz. E assim, continua esmolando em vários trens, que se preparam para deixar a estação, dirigindo-se para os mais diferentes destinos.

Agora, já cansado, vai para a passarela, onde tira o prato do saco, bota duas moedas dentro e o coloca a seus pés, esperando que lhe joguem moedas. Mas as pessoas ignoram-no, quando não o fuzilam com um olhar de nojo, frieza ou indiferença. O limpador da passarela desaloja-o. Primeiro com a poeira que lhe joga no corpo, ao varrer. E depois com dois baldes de água, para lavar o local. Grita como se estivesse a enxotar um cão sarnento:

Sai daí!

Sem falar nada, ele obedece com a cabeça baixa. Ainda traz o medo de ser escorraçado, pois mesmo entre os mendigos, há uma máfia que delimita o território para pedir esmolas. Sente sede. Dirige-se a uma torneira, cuja água não é tratada ou fervida. Sabe que está cheia de germes. Mas, como um dalit, não pode comprar água mineral no botequim da estação. Mesmo sabendo que está correndo o risco de pegar ameba, hepatite ou tifo, doenças endêmicas no país, bebe cerca de um litro daquela água, com suas mãos sujas.

Sua esposa vem para vigiá-lo de longe. Passa inúmeras vezes por ele, sem o notar. Sabe que é difícil ser reconhecido em meio a tantos mendigos. São todos seres anônimos e insignificantes. De modo que a solidão é infinitamente maior do que a miséria em si. Ele sente vontade de chorar… e chora copiosamente.

A seguir o capítulo 8…

Nota: Imagem copiada de http://interata.squarespace.com

Fonte de pesquisa:
Memórias de um Dalit/ Marc Boulet

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RAM MUNDA (6) – CONTATO COM UM DALIT

Autoria de Lu Dias Carvalho

Ramun VI

Embora tenha chegado à Índia em julho, o escritor francês Marc Boulet decide aguardar o fim de outubro para iniciar sua experiência como um dalit. Preferiu deixar passar o tempo das monções, quando a vida dos miseráveis torna-se insuportável, em razão do excesso de chuva. Decide entrar em contato com um intocável, Raj Ram, limpador de latrinas. No primeiro encontro, explica-lhe que estuda a civilização indiana e que gostaria de ouvir sobre os seus costumes. Ele o aborda como um um estudioso.

Raja Ram, pertencente à casta dos dom, conta-lhe que ganha meio salário, fazendo faxina em um hotel e num escritório. Além disso, ainda faz trabalhos por fora, limpando fossas, encanamentos e privadas. O pagamento fica a critério das pessoas, que lhe pagam a quantia que querem pelo serviço. Possui duas filhas vivas. Mas já tivera quatro filhos. Uma menina morreu de tétano e o menino de disenteria. Sua mulher Lakshmi (nome da deusa da riqueza) espera outro bebê. Fala sobre o desprezo que as outras castas sentem por eles. Pelas leis indianas eles são iguais, mas as pessoas continuam a considerá-los intocáveis, de modo que um recipiente que ele usar, pertencente a alguém de outra casta, não pode ser lavado, tem de ser jogado fora.

Conta Raja Ram que antigamente, um brâmane que bebesse água no copo de um dalit, teria que beber urina de vaca, por um longo tempo, para se purificar. Relata que ao comprar pan (tabaco misturado a outros produtos e enrolado numa folha de bétele), se o vendedor souber qual é a sua casta, não lhe dará o objeto na mão, mas o jogará sobre o balcão. O mesmo é feito com o pagamento e o troco. Os de sua casta são sempre atendidos por último e devem ficar longe do balcão. Muitas vezes, o produto é jogado no chão.

Para que o leitor entenda melhor, os intocáveis dividem-se em várias subcastas de acordo com a profissão exercida. Por exemplo, aqueles pertencentes à casta dos dom (exercem a função de coveiros), são tidos como os mais impuros dos intocáveis. Ficam abaixo da casta dos mehtar (varredores de rua). Desprezados por esses. O mais paradoxal nessa mixórdia é que, mesmo pertencendo à casta considerada mais “impura” e abjeta, Raja Ram ainda carrega consigo muitos tabus e considera muitas coisas indignas e impuras. A verdade, segundo MB, é que os intocáveis sofrem com o sistema de castas, mas, mesmo assim, ainda se discriminam entre si, como fazem os seus opressores das castas ricas, dentro de um sistema extremamente complexo.

Raja Ram acredita na reencarnação de uma pessoa numa determinada casta, de acordo com suas boas ou más ações. Por isso, acha que todos os brâmanes são impolutos, donos de uma conduta exemplar em existências anteriores. Em contrapartida, aqueles que cometeram erros graves reencarnam como intocáveis. E que, se vive naquela situação é porque merece, pois foi uma má pessoa na vida passada. Por isso, aceita a sua posição e o que fazem com ele.

O novo amigo de Marc Boulet é um hindu fervoroso. Diz que frequenta um templo na sua comunidade, mas que o sacerdote não é um brâmane, mas um de sua casta. O culto de Shiva é celebrado duas vezes ao dia: ao nascer e ao pôr do sol. Sua esposa Lakshmi, mesmo grávida, levou uma surra por ter batido no cachorro do vizinho. Ninguém fez nada. Na favela há muito tumulto e roubos. Ela alugou o serviço de uma parteira, pois o hospital é muito caro. A parteira que fará o parto diz que sente o sexo do bebê, apenas apalpando o ventre da mãe. Diz que será um menino.

Raja Ram diz que, se for um filho, sua esposa será esterilizada, mas se for menina, não, pois precisa de um filho, para acender a sua pira, quando morrer. Desde já se preocupa com os dotes que deverá pagar pelo casamento das duas filhas. E, como as filhas vão morar na casa dos maridos, ele e a esposa precisam de um filho para não envelhecerem sozinhos. Ao lhe ser perguntado sobre o porquê de se firmar uma união de duas crianças com antecedência, já que a noiva só deitará com o noivo após os 18 anos de idade, responde:

– Por dois motivos. Primeiro, é dever dos pais hindus deixarem os filhos casados, antes de morrer. Segundo, o pai do menino recebe o dote mais cedo, de modo que o montante pago pelo pai da menina é menor na atualidade, em função da galopante inflação indiana.

O dote varia em função da casta e do meio social. É a maior causa de endividamento das famílias que casam as filhas, assim como de divórcios e morte de pais que não cumprem o prometido. Em função do dote, estudos comprovam que a taxa de mortalidade das meninas é bem maior. Os pais alimentam melhor os meninos, de olho no dote. Essa é uma das causas responsáveis por haver mais homens na Índia do que mulheres. A mulher é muito desvalorizada.

A seguir o capítulo 7…

Nota: Imagem copiada de http://www.pime.org.br/mundoemissao

Fonte de pesquisa:
Na Pele de um Dalit/ Marc Boulet/ Editora Bertrand Brasil.

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RAM MUNDA (5) – NO MEIO DOS DALITS

Autoria de Lu Dias Carvalho

Ramun V

Ram Munda sai de seu apartamento para se juntar aos dalits, deixando sua esposa para trás. Percebe que se tornara invisível para as pessoas. Ninguém lhe dá atenção, ninguém se volta para ele, agora que se transformou num dalit (intocável). Qualquer objeto, por mais insignificante que fosse, chamaria muito mais atenção do que ele. Não passa de um anônimo, um homem sem rosto, sem história, que se confunde com o cenário miserável onde se insere.

É recusado por um condutor de riquixá, enquanto outro o aceita levar para perto do rio Ganges, por uma quantia bem mais alta do que a cobrada normalmente. Ao deixá-lo no ponto pedido, o homem é xingado de “bicha” e golpeado nos rins com um cassetete, por um policial, por ter demorado a estacionar na calçada.

À medida que Ram Munda começa a se sentir um indiano de verdade, o medo vai desaparecendo, assim como o nó no estômago. No ghat Dashashvamedh (escadarias de pedra que conduzem até o Ganges), ele não é mais importunado pelos leprosos, mendigos, barqueiros e barbeiros, como antes, quando era um ocidental. Mesmo os estrangeiros evitam-no. Sente saudades da mulher Gloire. Os sacerdotes brâmanes abençoam os banhistas em troca de algumas rúpias, enquanto vacas e cachorros sarnentos também se encontram espalhados pelas escadarias, em busca de algo que se possa comer.

Ram Munda evita falar, mas observa atentamente o comportamento dos indianos de sua casta. Ao deixar o ghat, por volta das 22 horas, depara no caminho com uma vaca agonizante. Dois indianos tentam colocar-lhe água e pedaços de pão na boca. Diante da inutilidade do gesto, acabam por deixá-la só. Chama-lhe a atenção a solidão em que vivem os seus iguais, sentados uns ao lado dos outros, calados, com os olhos no movimento da rua, mas sem nada ver.

O novo dalit (intocável) retorna na noite seguinte para casa, pois ainda não tem confiança na cor que carrega na pele. Tem medo de ser reconhecido durante o dia. Volta mais uma noite, dessa vez com a esposa Gloire, acompanhando-o de longe, para comparar a sua aparência com a dos demais dalits (intocáveis) e para filmá-lo. Ela agirá como se fosse uma turista, em meio à multidão. Em hipótese alguma poderá concentrar sua atenção apenas no marido.

No meio de seus novos irmãos, Ram Munda acha os estrangeiros seres bizarros, chamados de “macacos vermelhos”. São feios e esquisitos com seus olhos verdes ou azuis e cabelos com as mais variadas cores. Ao deixar o ghat, depara com uma procissão religiosa, levando uma estátua de Kali (outra representação da deusa Durga, esposa de Shiva). Essas ocasiões são propícias para mostrar a animosidade entre hindus e muçulmanos. Uma pedra lançada por um fanático é capaz de provocar um tumulto inimaginável. Há muitas pessoas na procissão, pois ver uma estátua de Kali traz a bênção da deusa. Passar no setor muçulmano é muito perigoso, por isso, policiais ocupam as calçadas.

Após esses dois primeiros dias, em que manteve os contatos iniciais com os dalits (intocáveis), mas voltando sempre para casa, Ram Munda sai de seu lar para ficar tempo integral (dia e noite) nas ruas, levando seu saco, o material para dormir, o prato para pedir esmola, um espelho pequeno, uma lâmina para barbear, lápis e papel para anotar informações especiais. Assumirá, doravante, a vida de mendigo. E andar é o esporte dos pobres, por isso não pega condução. Cruza com cães magros latindo, vacas esquálidas que remexem no lixo com o focinho, ruminando papéis velhos e sacos plásticos rasgados, enquanto se dirige para a estação ferroviária de Benares. Como sempre, não desperta compaixão ou interesse de ninguém.

Ram Munda chega à estação por volta da meia noite, e dirige-se para o local, onde se encontram os miseráveis com suas tigelas de alumínio amassadas, seus montes de papelões velhos e pedaços de madeira. Placas de sujeira cobrem seus rostos, mãos e pés, causando uma repugnância indizível. Folhas de mahua, mais largas que uma mão, são utilizadas como pratos descartáveis ou para enrolar o pan.

Na rua, os indianos dormem com os joelhos dobrados, raramente de bruços, como forma de permanecerem vigilantes. É preciso se acostumar a essa nova posição, tão diferente da sua. Ram Munda é tirado de suas indagações por um leitão fungando em seu ombro esquerdo. Agora, ele só interessa a um porco!

A seguir o capítulo 6…

Fonte de pesquisa:
Na Pele de um Dalit/ Marc Boulet/ Editora Bertrand Brasil

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RAM MUNDA (4) – ÚLTIMOS DETALHES

Autoria de Lu Dias Carvalho

Ramun IV

O escritor francês Marc Boulet chega a sua etapa final de preparação para viver um dalit (intocável) na Índia. Compra um pano de algodão cru sobre o qual vai se deitar, uma manta de lã áspera, um prato de alumínio para pedir esmolas e um saco de cânhamo grosso, marrom, onde irá guardar suas coisas, como fazem os mendigos espalhados por todos os cantos.

Assumir a identidade de um dalit, numa grande cidade, será bem menos preocupante, uma vez que a mistura da população, ocasionada pelo êxodo rural, pode ser confundido com a massa das mais variadas etnias. Viver numa aldeia seria quase que impossível, pois essas são divididas geograficamente por castas, segundo a tradição do hinduísmo, para evitar a mistura e a “poluição”, e o atraso e a ignorância leva-as a seguirem os preceitos ao pé da letra. A sua vestimenta será a roupa comum de um hindu pobre, composta por:

• sandálias de dedo;
• um lungi xadrez azul e marrom – pano de dois metros de comprimento, enrolado em torno da bacia, um tipo de saia, que indica a casta, a profissão e a classe social;
• uma camisa de material sintético, com listras marrons;
• uma camiseta branca (bem encardida e suja);
• um fular vermelho – mede um metro e meio de comprimento e serve para proteger a cabeça contra o sol, a poeira ou o frio;

Ele não pode se esquecer de que o bigode deve ser grande, assim como é o da maioria dos indianos. É tido como um sinal de virilidade na Índia.

Marc Boulet, como dalit, adota o nome indiano de Ram Munda (será este o nome usado daqui para a frente). Dirá que é originário de uma aldeia distante de nome Bandgav. Para que obtenha sucesso na sua transformação física sabe, também, que é preciso agir de acordo com o comportamento de um indiano, de maneira geral, e com o de um dalit, especificamente. É preciso estar atento a alguns detalhes:

• não pronunciar as expressões: Desculpe!/ Obrigado!/ Por favor!;
• não ser capaz de perceber a própria incivilidade;
• ser descortês
• comer com a mão direita e jamais se esquecer de que a esquerda é usada para lavar as partes íntimas;
• ter destreza para acocorar-se com o lungi, na hora de urinar e defecar, de modo que traseiro e coxas não sejam mostrados;
• acocorar, sempre, com a planta dos pés no chão e não com os dedos dos pés, como fazem os ocidentais;
• andar com os pés abertos, como patos;
• balançar a cabeça da esquerda para a direita, para dizer “sim” (jamais de cima para baixo);
• assoar o nariz com os dedos, apertando uma narina de cada vez, com o polegar e o indicador, jogando o muco longe;
• tirar o que sobrar do muco com as pontas dos dedos, que depois são sacudidos no ar ou limpos numa parede;
• arrotar, escarrar e limpar o nariz em público, sem constrangimento algum;
• coçar os testículos publicamente e ajeitá-los na calça, sempre, em qualquer lugar. (MB vê isso como uma forma de afirmação do macho, numa sociedade falocêntrica).

MB acaba de alcançar uma fronteira sem volta. Sabe que, nem se quisesse, seria capaz de retroceder. Lembra-se do provérbio indiano que diz: “Não se engole de novo o que se escarra”. Sente medo de se tornar um deles definitivamente, perdendo seus gestos, sua aparência física e sua personalidade. Não faz ideia de qual será o novo homem que ressurgirá após esta experiência, pois se transformou num desconhecido total para si. Sabe que na Índia a brancura da pele está ligada à primeira regra de beleza e, que, por isso, passará por todo tipo de humilhação, como acontece com os dalits (intocáveis).,

Hoje, terminou a sua última metamorfose ao pintar o cabelo, as sobrancelhas e o bigode na cor preta. Trabalho que já fora feito nos braços, pernas e rosto. Unta os cabelos e põe as roupas de mendigo, preparadas para parecerem velhas e sujas. Aos 32 anos, Marc Boulet acaba de renascer no corpo de Ram Munda.

O capítulo 5 a seguir…

Nota: Imagem copiada de http://www.instablogs.com

Fonte de pesquisa:
Na Pele de um Dalit/ Marc Boulet/ Bertrand Brasil

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RAM MUNDA (3) – A METAMORFOSE

Autoria de Lu Dias Carvalho Ramun III

Prometi a meus leitores que lhes faria um resumo das partes mais importantes do livro de Marc Boulet, Na Pele de um Dalit. No entanto, é bom lembrá-los de que os fatos, aqui narrados, aconteceram entre 7 de fevereiro de 1992 e 6 de janeiro de 1993. Mudanças podem ter acontecido de lá para cá. E é muito auspicioso que assim seja. Mas é bom investigar, pois tudo pode continuar como dantes no quartel de Abrantes. E dando continuidade aos fatos…

O escritor francês MB resolve se metamorfosear na figura de um dalit (intocável), indivíduo pertencente ao mais baixo patamar da escala social indiana, isso porque, enquanto o sistema de classes recompensa o mérito na vida atual, o sistema de castas aprisiona a pessoa, impedindo-a de alcançar qualquer tipo de ascensão social. É exatamente para vivenciar os horrores da intocabilidade que o autor adentra no cerne dessa monstruosidade, para vivenciar, na pele, o que se passa na vida daquela gente.

A família de MB, ao tomar conhecimento das imagens dos leprosos, mortos e crianças esqueléticas nas calçadas de Calcutá, tenta convencê-lo a mudar de ideia. Preocupa-se com a sua saúde e com suas condições psicológicas, ao final de seu  trabalho. Mas não consegue demovê-lo de seu intento. Ele está disposto a ir até o fim.

O escritor começa a preparar sua viagem com o aprendizado do híndi, a mais falada dentre as línguas indianas. Permanecerá 6 meses na França e mais 3 na Índia, a fim de dominar a linguagem coloquial e as gírias, antes de vestir a pele de um dalit. Apesar da certeza de que irá partir em direção à meta preestabelecida, sente que é preciso domar o medo da doença, da fome e da miséria que o incomoda. Não tem a mínima ideia de como reagirá a tantas limitações, sendo um habitante de um país rico, onde o conforto é visto como necessidade. Sabe que não será fácil viver em meio à indigência extrema, onde ser um intocável significa apenas possuir o próprio corpo. O que lhe dá forças é a certeza de que sairá enriquecido da experiência, além de tornar conhecida a vida dos dalits em todo o mundo e, assim, ajudá-los.

Um amigo dermatologista encarrega-se de escurecer sua pele. As soluções encontradas para atingir o seu objetivo são limitadas. Receita-lhe uma medicação que aumenta a quantidade de melanina na pele, usada para tratar portadores de vitiligo. Mas é preciso ter cuidado, visto que o seu uso prolongado pode levar ao câncer. Para adquirir a cor de chocolate, comum à pele indiana, sua pele deverá ser untada com nitrato de prata. Mas não deve perder de vista o fato de que a epiderme renova a cada três semanas. Com tudo pronto, sua esposa Gloire prepara as malas para acompanhá-lo na viagem. Sua função será fotografá-lo e filmá-lo durante todo o processo de suas transformações.

Seu voo é com destino a Nova Delhi. Como vizinho de poltrona, do seu lado direito, está um indiano de nome Basi, que é um kshatriya do Punjab, pertencente a uma das castas mais ricas da hierarquia hindu, a casta dos guerreiros. Mora na Inglaterra, mas há 17 anos que não retorna a seu país de origem. MB conversa com o vizinho de poltrona em híndi, na tentativa de testar a nova língua. Fala devagar, cometendo muitos erros linguísticos, mas se faz entender pelo senhor Basi. Fato que o deixa mais confiante. A aeromoça serve-lhe uma dose de bebida alcoólica. O vizinho recusa e opta por um refrigerante. Os indianos religiosos não tomam álcool, por considerá-lo uma bebida impura, mas podem fumar…

A seguir o capítulo 4…

Fonte de pesquisa:
Na Pele de um Dalit/ Marc Boulet/ Editora Bertrand Brasil

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RAM MUNDA (2) – CHEGADA À ÍNDIA

Autoria de Lu Dias Carvalho

Ramun II

O escritor francês Marc Boulet chega à Índia na época das monções, quando o sol castiga e o ar úmido torna-se difícil de ser respirado, colando na pele. Sem dúvida, uma época não muito auspiciosa para um europeu. A estação das chuvas é a mais dramática para os indianos miseráveis. Epidemias alastram-se. A população das favelas e a de desabrigados são as mais afetadas pelas doenças provocadas pelos excrementos de animais,  pelo aumento de vírus da  malária, pneumonia e tuberculose.

Homens maltrapilhos misturam-se às vacas nas calçadas, numa inusitada comunhão de corpos. Excrementos desses animais estão por todo lado. É impossível evitá-los, a menos que se opte por pisar nas pessoas deitadas. Dois medos estranhos apavoram o visitante: levar uma chifrada ou ser assaltado. Condutores de riquixás insistem para levar o escritor Marc Bolet e sua mulher Gloire  ao destino. Mas os dois optam por caminhar.

À medida que o sol esquenta, enxames de moscas esparramam-se por todos os lados, à procura de lugares mais frescos, enquanto um fedor de latrina toma conta da atmosfera. É comum encontrar homens urinando, agachados ou de pé, geralmente perto de uma parede. Alguns fazem o serviço completo: urinam e evacuam. As fezes, misturadas ao líquido excrementício expelido pelos rins, fermentam-se deixando o ar irrespirável.

Em um modesto hotel, onde nada funciona, o casal aluga um quarto. Depois de descansar, parte para Benares (ou Varanasi), a mais sagrada das cidades do hinduísmo. Muitos a escolhem para morrer, pois ser cremado em Benares é garantia de ter acesso imediato ao paraíso, sem depender dos merecimentos acumulados em vida. Segundo o Bhagavad-Gita (um dos livros sagrados dos hindus):

“O que nasceu deve morrer e o que morreu deve renascer.”

O rio Ganges estende-se ao longo da cidade. Nele, é possível encontrar de tudo: desde resíduos de destilação de petróleo a cadáveres de humanos e animais. O escritor Mark Twain, ficou horrorizado ao ver o rio sagrado da mitologia hindu e personificação de uma deusa, Mãe Ganga, como um desaguadouro de esgotos, que corre a céu aberto, chegando a comentar:

“Acho que nenhum micróbio que se preze, viveria em uma água dessas.”

Marc Boulet e sua mulher escolhem morar em um bairro de Benares, onde alugam um apartamento calmo e íntimo, de modo a poder dar continuidade a sua metamorfose sem ser flagrado. Por perto, existem muitos casebres, colados uns nos outros, com telhados de plástico, segurados por pedras, onde as pessoas criam porcos e possuem muitos cães vira-latas.

Na Índia, o porco é visto como um animal impuro pelos hindus. Só os intocáveis comem de sua carne. Além de imundos, os dalits (ou intocáveis) também são vistos como beberrões. De modo que Marc Boulet foi advertido pelos vizinhos, para que não tivesse nenhum contato com “aquela gente”. Mas o francês não acata o conselho de passar o mais distante possível dos intocáveis (dalits). O contato com eles é o propósito maior das transformações pelas quais vem passando.

O escritor francês descobre que o bhang, espécie de haxixe, que se come, e a maconha são vendidos em lojas, publicamente. Ambos são produtos indígenas, extraídos do cânhamo indiano. Estão associados à religião hindu, assim como o vinho está para a Eucaristia, no catolicismo. Há clientes de todos os tipos: desde aqueles bem vestidos aos maltrapilhos. Não consideram como vício o consumo de tais drogas.

Aguardem o capítulo 3 a seguir…

Fonte de pesquisa:
Na Pele de um Dalit/ Marc Boulet/ Editora Bertrand Brasil

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