Arquivo da categoria: Mestres da Pintura

Estudo dos grandes mestres mundiais da pintura, assim como de algumas obras dos mesmos.

Caravaggio – LUZ E SOMBRAS

Autoria de Lu Dias Carvalho

fruta

Caravaggio trouxe um realismo para a pintura em suas ardentes representações tanto de temas sagrados como seculares. Pintando diretamente sobre suas telas, usando efeitos exagerados de luz e sombra, ele interpretou respeitáveis santos e humildes pecadores, através das lentes do sofrimento e da emoção humana. A arte de Caravaggio foi revolucionária, sua vida foi trágica e seus seguidores foram inúmeros (David Gariff)

O que Caravaggio desejava era a verdade. A verdade tal como ele a via. Não nutria preferência alguma pelos modelos clássicos nem respeito pela beleza ideal. Queria romper com os convencionalismos e pensar a arte por si mesmo. (E.H. Gombrich)

Em arte tudo o que não for tirado da vida é frivolidade. (Caravaggio)

Pelo horror que sentia diante dos ideais tolos, Caravaggio não corrigia nenhum defeito dos modelos que parava na rua para fazê-los posar. Vi algumas de suas pinturas que foram recusadas por pessoas que lhes haviam encomendado. O reino da feiura ainda não havia chegado. (Stendhal)

Caravaggio era um pintor preocupado com a verdade tal como a via, de modo que representar os modelos clássicos ou ter qualquer forma de compromisso com a “beleza ideal” não faziam parte de seus objetivos. Tanto é que desprezava aqueles que se recusavam a retratar a fealdade. Considerava-os fracos e indignos de serem levados a sério. Por isso, desde cedo procurou afastar-se das convenções e repensar a arte de uma forma diferente, rejeitando a beleza idealizada da arte renascentista, desprovida de realidade, de verdade natural e de honestidade emocional. Pouco lhe importava que a natureza retratada fosse feia ou bela, interessava-lhe apenas a verdade.

O pintor era intransigente no estudo que fazia da natureza e, se a realidade da vida era crua, ainda assim deveria ser retratada. O pintor recusava-se a seguir as normas estabelecidas pelo Concílio de Trento que exigiam que a representação pictórica das Escrituras Sagradas tivesse como objetivo edificar o povo ignorante, mas sem perder a dignidade e a nobreza da arte. Ele se colocou contra o ideal de beleza do Renascimento, ao mostrar o mundo de uma forma diferente e extremamente realista, chocando muito de seus contemporâneos.

Como acontece com quase todos os gênios, Caravaggio foi incompreendido por muitos de seus contemporâneos que achavam que ele não tinha respeito pela beleza e pela tradição, tendo como único objetivo chocar o público. Por isso, alcunharam-no de “naturalista”, “gênio do mal”, o “anti-Cristo da pintura” e de “il tenebroso”. Ele não copiava os modelos tradicionais, pintava os modelos vivos sem lhes retirar as cicatrizes ou as marcas do tempo. A verdade é que seus detratores não foram capazes de perceber a seriedade com que ele executava seu trabalho, tanto é que, quatro séculos depois, sua obra continua a encantar gerações, pois a sua contribuição para a arte da pintura jamais poderia ser ignorada.

Segundo os estudiosos da obra de Caravaggio, é nos quadros religiosos que ele deixa a sua grande contribuição à história da arte, com seus temas impregnados de verdade, onde é revelada a dimensão humana do sofrimento, criando uma vigorosa mistura entre o terreno e o espiritual, o real e o místico, sendo capaz de captar o momento exato da dor, expondo-a em toda a sua crueza. Na sua tela, Judite e Holofernes, aparece pela primeira vez o fundo preto (tenebroso), destacando-se sobre o mesmo as figuras iluminadas por um processo de luz artificial, elementos que se tornaram típicos de sua obra.

Caravaggio trabalhava com efeitos de luz e sombra exagerados. Suas figuras são vistas em perspectiva reduzida, movimentos diagonais e fortes toques de cor  em oposição aos temas principais. Através da técnica usada seus personagens refletem uma intensa emoção, embora o seu estilo de pintura pareça muitas vezes confuso e desorientado, eles são verdadeiros, poderosos e ousados. Foi o primeiro dos pintores a adotar o estilo “tenebrista”, cujo objetivo era destacar a escuridão e não a luz. Sendo que em sua obra destacam-se as trevas e a violência. Em várias de suas telas são mostrados espadas, punhais e facas, assim como decapitações e sangue. E, segundo seus biógrafos, embora ele cumprisse os prazos de entrega de suas obras, não aguentava trabalhar por períodos longos, precisando da companhia de seus tortuosos amigos.

Muitas telas de Caravaggio foram rejeitadas sob o argumento de que eram muito realistas e alguns patronos religiosos argumentavam que certas obras eram blasfematórias, mas essa não era bem a verdade, pois o pintor esforçava-se apenas para retratar fielmente o mundo, de modo que suas figuras tivessem o maior compromisso possível com a verdade. Se a sua franqueza resultava numa representação ousada da realidade, era assim que tinha que ser no seu compromisso com a verdade.

A arte de Caravaggio — apesar de incompreendida no seu tempo — angariou muitos seguidores pela Europa, os chamados “caravaggisti” que imitavam seu estilo, originando escolas de seguidores, cuja obra é definida como “caravagesca”. Entre eles, podemos destacar grandes nomes da pintura como Diego Velázquez que ficou muito sensibilizado com o estilo do pintor, com as descobertas feitas por ele no campo da pintura e o modo como abriu mão das convenções em prol da observação desapaixonada da natureza. Rembrandt, assim como Caravaggio, via na verdade e na franqueza muito mais valor de que na harmonia e na beleza. Embora tenha sido apreciado por poucos de seus contemporâneos, artistas subsequentes viram nele um dos mais geniais mestres.

Os contrastes entre luz áspera e quase cegante, e sombra, sempre profunda, carregam a obra de Caravaggio de grande religiosidade e intensidade dramática, trazendo à arte sacra um sentimento de realidade. Suas figuras parecem reais e palpáveis, como se suas ações estivessem acontecendo no momento em que o observador as vê. A cena destaca-se com uma honestidade tocante. A técnica do “chiaroscuro”, usada pelo artista, embora exibida um século antes por Leonardo da Vinci, foi aprimorada por ele.

É interessante conhecer o recurso científico usado por Caravaggio para produzir o seu jogo imprescindível de luz e sombra. Ele usava um quarto com paredes negras (câmara escura) no qual inseria fachos de luz nos locais que desejava colocar em evidência. Para a época, a sua experimentação era fantástica, bem à frente de seu tempo.

Embora os puristas criticassem-no por não ter educação formal, inclusive faltando-lhe o uso do esboço, isso não o preocupava. Ele simplesmente desenhava direto sobre a tela, pintando por cima, não fazendo uso da tradicional intervenção do desenho, resultando numa obra admirável. O artista achava que a introdução de uma ideia preconcebida na composição tornava-a inverídica. Tanto os academicistas quanto a Igreja ficaram escandalizados com sua postura. O seu talento para as naturezas-mortas era extraordinário, tanto é que o biógrafo Giovanni Pietro Belloni escreveu que Caravaggio foi o primeiro pintor a transformar uma natureza-morta em um gênero plástico autônomo. Cesto de Frutas é a única obra sobrevivente em se tratando de frutas.

Enquanto os pintores de então só conseguiam reproduzir certos temas em ambiente natural, Caravaggio retratava-os em locais escuros e sem outros elementos, certo de que a luz e as cores haveriam de dar-lhes formas em contraste com as sombras. E, apesar das rígidas normas que cerceavam a liberdade artística na época, — principalmente por parte da Igreja — o pintor botou no lugar dos santos personagens humanos retirados das ruas.

No seu tempo, Caravaggio trabalhou com os mesmos temas em voga, religiosos e mitológicos, mas com a diferença de que transformou a visão do mundo sobre a arte. Dava a objetos e personagens a mesma relevância, questionando a visão renascentista de antropocentrismo. A partir do século XX  suas inovações passaram a ser compreendidas com profundidade e sua obra passou a ocupar um lugar de destaque na história da arte. Tanto a sua vida pessoal quanto a sua obra continuam inspirando a arte contemporânea em seus vários campos.

Caravaggio trouxe para a pintura o mesmo contexto social no qual estava inserida a sua vida. Fez uso da luz artificial, optando antecipadamente pelos efeitos e reflexos a serem registrados, de modo que seus personagens saltam da escuridão, captados pela luz, estabelecendo o papel de cada um na trama representada, sem disfarçar a realidade que foi atentamente observada por ele. Luz e sombra foram uma constante na vida do grande pintor, tanto na sua arte quanto na sua vida pessoal.

Existem apenas 62 telas de Caravaggio até agora, reconhecidas como autênticas. A sua primeira tela conhecida é Rapaz Descascando Fruta (acima) e dela fez inúmeras cópias para se manter.

Nota:  Rapaz Descascando Fruta
Ano: 1593
Material: óleo sobre tela
Dimensões: 75 x 64 cm
Localização: Long Collection, Roma, Itália

Fontes de pesquisa:
Grandes mestres da pintura/ Coleção Folha
Grandes mestres/ Abril Coleções
A história da arte/ E. H. Gombrich
Los secretos de las obras de arte/ Taschen
Revista Veja/ Maio/ 2012

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Caravaggio – O TOCADOR DE ALAÚDE

Autoria de Lu Dias Carvalho

alaude

Este é o quadro mais belo que pintei (Caravaggio)

Em meio a flores, frutas, violino e partituras, o jovem toca seu alaúde (Aurélio: Mús. Antigo instrumento de cordas dedilháveis, de origem oriental, com a caixa de ressonância sensivelmente abaulada, sem costilhas e em forma de meia pera, e com a pá do cravelhame inclinada, formando ângulo quase reto com o braço longo.), instrumento refinado e ligado ao amor.

O jovem tocador de mãos delicadas, possivelmente ainda pubescente, tamanha é a sua beleza aparentemente feminil, sobrancelhas negras, boca carnuda e um delicado furinho no queixo, possui um ar langoroso, veste uma camisola com inúmeras dobras e com um profundo decote em V, mostrando o peito liso. Traz uma faixa na cabeça, de onde desce um laço branco, sobre seus cabelos negros e encaracolados.

O alaúde tem a superfície gasta e uma fenda na sua caixa. As partituras abertas sobre a mesa, também aludem ao amor, pois eram tocadas nos madrigais (Aurélio: Mús. Composição poético-musical que, no séc. XIV e sob a forma de desenvolvimento e aperfeiçoamento da frótola, no séc. XVI, constituiu um dos gêneros mais importantes da música profana italiana, no qual o elemento literário tem papel preponderante. Era escrita para uma ou mais vozes (cinco e até seis no madrigal clássico do séc. XVI), com acompanhamento instrumental (alaúde, clavicímbalo, harpa), ou sem ele, e foi sob a sua influência que se operou a secularização da música, mediante a utilização de textos profanos e o emprego de fórmulas melódicas novas, de um cromatismo intenso.) Vários elementos revelam a natureza amorosa da composição, tais como flores, instrumentos musicais, partituras, etc.

No jogo de luz e sombras presentes na pintura, a luz dá ênfase ao que é importante, enquanto o secundário permanece na sombra. Observem que a luz entra pela direita da composição, incidindo com força sobre o jovem músico, o alaúde, as partituras, as flores, o violino e as frutas. A exuberância das flores, com sua riqueza cromática, a textura das frutas à esquerda das partituras, assim como as gotas de água visíveis sobre elas, aludem à fugacidade da beleza e da juventude, pois nada é permanente.

Apesar da beleza do jarro com natureza-morta, cujos reflexos atraem o olhar do observador, o tema principal da composição é a música executada pelo alaúde, instrumento já em desuso por ser extremamente difícil de ser tocado. O livro de música que se encontra aberto sobre a mesa, trata-se da edição romana do Libro Primo (Primeiro Livro) de Jakob (ou Jacques) Arcadelt. Trata-se de uma coleção de obras de vários compositores. O jovem entoa um madrigal amoroso, que pode ser identificado através da leitura da partitura aberta, o que comprova o conhecimento musical de Caravaggio (Música: Sabeis que eu vos amo, do compositor do século 16, Jakob Arcadelt).

O tema aqui tratado pelo artista foi repetido em outros quadros com algumas variações. Assemelha-se a Concerto de Jovens, visto no primeiro texto desta série sobre Caravaggio.

Ficha técnica:
Ano: c. de 1595
Material: óleo sobre tela
Dimensões: 94 x 119 cm
Localização: Museu de Hermitage, S. Petersburgo, Rússia

Fontes de pesquisa:
Grandes mestres da pintura/ Coleção Folha
Grandes mestres/ Abril Coleções
1000 obras-primas da pintura europeia/ Könemann

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Mestres da Pintura – CARAVAGGIO

Autoria de Lu Dias Carvalho

 caravaggio       caravaggio 1

Fala-se de Caravaggio como um pintor tenebrista ou luminoso de forma indistinta. Esquece-se de que sem ele não teria havido Ribera, Vermeer La Tour nem Rembrandt. E Delacroix, Coubert e Manet teriam pintado de outra maneira. (Roberto Longhi)

Caravaggio viveu em uma época de poder burocrático, censura de ideias e conformismo assustador […] em que as mentes criativas eram ferozmente castigadas. (Peter Rob)

“Não sou um pintor valentão, como me chamam, mas sim um pintor valente, isto é, que sabe pintar bem e imitar bem as coisas naturais” (palavras de Caravaggio perante o tribunal que julgava sua primeira acusação de perturbar a ordem pública).

Caravaggio era um homem de temperamento impetuoso e irado, extremamente suscetível à menor ofensa e até capaz de apunhalar um desafeto. (E.H. Gombrich)

Após uma quinzena de trabalho, Caravaggio irá vagar por um mês ou dois com uma espada a seu lado e um servo o seguindo, de um salão de baile para outro, sempre pronto para se envolver em alguma luta ou discussão, de tal maneira que é bastante torpe acompanhá-lo. (Floris Claes van Dijk)

Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610) nasceu no calmo povoado de Caravaggio, próximo à cidade de Milão e cujo nome acabou por incorporar-se a seu nome. Também existe a hipótese de que o pintor tenha nascido em Milão. Era filho de Fermo Meresi — arquiteto e decorador de Francisco Sforza, duque de Milão e marquês da pequena Caravaggio — e de Lucia Aratori. Aos cinco anos de idade vivia em Milão com seus pais, cidade ocupada pela Espanha. Além das tensões geradas pela ocupação estrangeira, a fome e a peste também se faziam presentes. Em razão da peste a família do futuro pintor retornou ao povoado de Caravaggio que também acabou sendo alcançado pela doença que ceifou a vida do pai, do avô e do tio do garoto. Sua mãe, optou por permanecer ali com os filhos, distanciando-se do fanatismo religioso e da violência política que se espalhavam por Milão.

Agraciado pelas amizades do pai, Caravaggio teve contato com os Sforza e com outras famílias importantes, havendo indícios de que os Sforza tenham sido responsáveis por sua educação e a de seus irmãos. Aos doze anos de idade foi enviado para Milão, tendo os estudos no ateliê de Simone Peterzano — discípulo de Ticiano — custeados pelo príncipe Colonna que passara a governar o povoado de Caravaggio. Após os estudos em Milão, o jovem pintor acreditava contar com a ajuda do tio capelão da Catedral de Milão  que lhe faria encomendas, o que não aconteceu. O jovem teve que retornar para sua cidade, trabalhando com outros negócios que não a pintura.

Caravaggio acabou retornando a Milão e, posteriormente, deixou a cidade. Na verdade não existem dados conclusivos sobre tais acontecimentos. Há suspeição de que tenha fugido, pois era um homem enigmático, fascinante e também perigoso, sempre envolvido em duelos e brigas. Há também o boato de que ficou um ano aprisionado por ter se envolvido em brigas e se negado a entregar os envolvidos. O que se sabe com certeza é que o rapaz tinha um caráter arruaceiro, sempre metido em confusões, seduzido pela marginalidade e pela criminalidade. Após deixar Milão, não se sabe ao certo por onde andou, até parar em Roma, onde tencionava trabalhar como pintor e apaziguar a turbulência interior que carregava. A ocasião era propícia, pois a cidade vivia um clima de grande efervescência impulsionada pela Contrarreforma.

Caravaggio morou em Roma por pouco tempo com o monsenhor Pucci, sendo incentivado a fazer cópias de obras religiosas. Criou quadros próprios, cuja venda ajudou-o a se sustentar, pois queria viver por conta própria. Andava por toda a Roma visitando ateliês em busca de trabalho. Chegava a pintar três quadros por dia, vendendo-os por valores irrisórios. Gostava de usar roupas excêntricas e chapéus de feltro com abas largas, embora fosse visto muitas vezes com roupas esfarrapadas e sujas. Carregava uma espada na cintura — privilégio da nobreza — e um cachorro no colo. O pintor viera de uma classe inferior, sendo a sua maneira agressiva e o uso da espada uma forma de encobrir o seu complexo de inferioridade social.

O artista trabalhou no estúdio do pintor siciliano Lorenzi, indo depois para o ateliê de Antiveduto Grammatica, também conhecido por Cavalier d`Arpino que além de muito culto era um renomado retratista. Na época em que trabalhou em tais locais,  Caravaggio fez muitos amigos, entre eles o jovem e desordeiro Mario Minniti que lhe serviu de modelos em vários quadros, alternando “sessões de trabalho, festas, diversões no submundo e passeios às vinhas, propriedades de ricos amantes da arte”, conforme relata o biógrafo Gilles Lambert.

Foi muito importante para Caravaggio a sua passagem pelo ateliê de Giuseppe Cesari, pois esse último gozava de muitas regalias junto ao papa Clemente VIII. Época em que, possivelmente, o pintor trabalhou como ajudante nos afrescos da abóbada da Capela de Contarelli na Igreja de S. Luís dos Franceses. Nessa época ele ficou muito doente, sendo internado no Hospital Santa Maria dela Consolazione sob os cuidados do prior da instituição — monsenhor Contreras — a quem atribuiu a sua recuperação. Agradecido, presenteou o prior com várias de suas obras que, enviadas à Espanha, chamaram a atenção dos pintores Zurbarán e Velázquez. Outras fontes dizem que tais pintores tomaram conhecimento de seu trabalho através de obras de seus seguidores.

O cardeal Francesco Maria del Monte — embaixador do duque de Toscana no Vaticano — ficou extremamente impressionado com a primeira tela de motivo religioso do artista intitulada São Francisco em Êxtase, de modo que o pintor passou a ficar sob a tutela do alto prelado. Caravaggio tornou-se reconhecido, iniciando a fase mais próspera de sua arte. Contudo, apesar de famoso e prestigiado, o pintor parecia irremediavelmente ligado ao escândalo. Depois de pintar alguns quadros religiosos, recusados por seus clientes e muitas vezes tendo que pintar uma nova versão, ele rompeu com o Vaticano após pintar o quadro de Nossa Senhora dos Palafreneiros.

De qualquer forma o encontro com o cardeal Del Monte, homem inteligente e curioso, foi altamente enriquecedor para o artista, pois esse agiu como se fora seu mecenas. Ele o inseriu num ambiente de grandes colecionadores e contribuiu para que o artista pegasse importantes encomendas. Nessa época, embora o pintor não relegasse a companhia de prostitutas, espadachins e outras personagens duvidosas com quem costumava raiar o dia, participando de brigas, ele pintou uma série de grandes obras de temática religiosa, muitas vezes tidas como indecentes, por pintar os santos com pés sujos e representar a Virgem Maria morta, usando como modelo o cadáver inchado de uma afogada (pintura presente nesse blogue).

Além dos problemas com suas pinturas recusadas, Caravaggio voltou a ter complicações judiciais. Foi preso, acusado de ter assassinado um policial, mas conseguiu fugir com a ajuda de seus amigos. Passou a ser procurado pela justiça. Depois foi acusado de matar o nobre Rannucio Tommasoni de Terni, durante um jogo, sendo condenado à morte. Foi obrigado a fugir para o Lácio — feudo da família Colonna. Dali partiu para Nápoles, sob jurisdição da Espanha, onde ficou por um período de oito meses, tornando-se muito famoso. Mas sua cabeça estava sempre voltada para Roma, onde se encontravam as mais altas honrarias. De Nápoles o artista foi para Malta, onde foi ordenado Cavaleiro da Ordem, recebendo a Cruz de Malta, depois de pagar uma alta soma para ingressar na ordem, o que poderia ajudá-lo no perdão pelo crime cometido em Roma e na sua possível volta.

Como se não pudesse evitar os excessos de seu gênio colérico, Caravaggio foi expulso da Ordem de Malta por se envolver em situações provocadoras, inclusive sendo acusado de hostilidade para com um membro da irmandade, de modo que seu passado também deve ter vindo à tona. E mais uma vez o artista foi obrigado a fugir, dessa vez para a Sicília, onde esperou durante um ano o perdão vindo de Roma. De Siracusa foi para Messina. Quando se encontrava doente e cansado, depois de vagar por tantos lugares diferentes, mas ainda esperançoso de receber o indulto, Caravaggio escolheu voltar para Nápoles, onde se colocou sob a proteção de Constanza Sforza Colonna, marquesa de Caravaggio. Ali foi brutalmente agredido e quase morto. Suspeita-se de que os agressores tenham sido enviados pelos cavaleiros de Malta. O pintor ficou com uma marca no rosto e com sequelas da brutalidade sofrida. Ainda convalescia quando resolveu partir.

Roma era a Meca do mundo civilizado para onde afluíam artistas de todas as partes da Europa. A cidade continuava na mente de Caravaggio, cada vez mais confiante de que seu indulto estava prestes a acontecer. E para lá se dirigiu por via marítima, sendo preso no Porto de Ercole, conforme alegam alguns historiadores, mas acabou ficando livre. Outros, no entanto, dizem que o artista ficou aborrecido com a perda das pinturas que levava consigo, e ainda fragilizado pela febre, com o corpo cheio de feridas, depois de vagar pela praia, morreu possivelmente vitimado pela sífilis. Logo após a sua morte, aos 39 anos, o papa Paulo V deu-lhe a absolvição que tanto esperara.

Nota: Caravaggio se autorretrata na composição Os Músicos. Ele é o cantor à direita, em segundo plano.

Ficha técnica
Data: c. de 1595 – 1596
Dimensões: 92 x 118,5 cm
Material: óleo sobre tela
Localização: Metropolitan Museum of Art/ Nova York/ EUA

Fontes de pesquisa:
Grandes mestres da pintura/ Coleção Folha
Grandes mestres/ Abril Coleções
A história da arte/ E. H. Gombrich
Los secretos de las obras de arte/ Taschen

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Botticelli – A CALÚNIA DE APELLES

Autoria de Lu Dias Carvalho

apelles

A Calúnia de Apelles, obra de Sandro Botticelli, foi realizada para o financeiro Antonio Segni, usando como modelo descrições de uma pintura do grego Apelles, feita cerca de 300 a.C.

Na composição, um homem inocente é levado à presença de um juiz (ou um rei), que possui compridas orelhas de burro, que mostram o quanto ele é estúpido, apesar de ocupar um alto cargo. O magistrado encontr-se entre duas mulheres – a Desconfiança e a Ignorância – que a seus ouvidos murmuram mentiras e leviandades. Ele estende seu braço direito na direção de um homem encapuzado – a Inveja – que imita o seu gesto.

A Calúnia carrega, numa das mãos, uma tocha acesa e com a outra arrasta o inocente. A Traição e a Mentira ornamentam os cabelos da Calúnia, para torná-la mais aliciante e acreditável. O inocente encontra-se nu e tem as mãos em estado de prece, como a pedir clemência.

Mais afastadas da cena encontram-se duas personagens: A Contrição (ou Penitência) e a Verdade Nua. A Contrição, uma senhora idosa, tem as vestes rotas. Simboliza a longa busca para encontrar a verdade.

A mão e os olhos da Verdade Nua estão direcionados para os céus e simbolizam que toda a confiança está depositada no Altíssimo, e, que Nele está a Verdade absoluta, que sempre acaba triunfando.

Ficha técnica:
Data: 1495
Técnica: têmpera sobre madeira
Dimensões: 91 x 62 cm
Localização: Galeria de Uffizi, Florença, Itália

Fontes de pesquisa:
1000 obras-primas da pintura europeia/ Könemann

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Botticelli – O NASCIMENTO DE VÊNUS

Autoria de Lu Dias Carvalho

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A Vênus de Botticelli é tão bela, que não nos apercebemos do comprimento incomum do seu pescoço, ou o acentuado caimento dos seus ombros, e o modo singular como o braço esquerdo se articula ao tronco. Ou, melhor ainda, deveríamos dizer que essas liberdades que por Botticelli foram tomadas a respeito da natureza, a fim de conseguir um contorno gracioso das figuras, aumentam a beleza e a harmonia do conjunto na medida em que intensificam a impressão de um ser infinitamente delicado e terno, impelido para as nossas praias como uma dádiva do Céu. (E. H. Gombrich)

O Nascimento de Vênus (1484) é uma das mais famosas obras de Sandro Botticelli. Nela, segundo alguns críticos, o artista revela as mudanças de sua visão do mundo, de modo que Vênus representa a alma cristã a emergir das águas do batismo. Juntamente com sua obra A Primavera, a pintura em questão é um dos pontos altos da maturidade do pintor italiano.

A composição retrata a chegada de Vênus (Afrodite) — nascida da espuma do mar — à terra. Embora desnuda, a deusa não sugere erotismo algum, ao contrário, passa-nos uma extrema pureza. Ela se encontra dentro de uma enorme concha que é impelida para a praia pelo deus Zéfiro e pela ninfa Clóris. Na margem encontra-se a esperá-la uma das Horas, para colocar sobre ela um manto de púrpura bordado de flores.

Ao contrário de outros pintores que optaram pela representação mais sensual da deusa Vênus, Botticelli representou-a na pose conhecida como “Vênus Pudica”, imitando a pose de uma antiga e famosa estátua romana.

A figura delgada da deusa Vênus tem a mão direita cobrindo um dos seios, enquanto a esquerda cobre-lhe a virilha, usando as pontas de seus longos cabelos ruivos, gesto comum às pessoas pudentes. Ela desliza sobre o mar, de pé na parte mais pontuda da concha, numa atitude de confiança plena. Possui um olhar meigo e distante, imersa em seus pensamentos.

Muitas rosas são vistas sobretudo sobre Zéfiro e Clóris. A rosa — flor do amor — é a flor sagrada de Vênus e foi criada quando ela nasceu. Os espinhos das rosas são para nos lembrar de que o amor também pode ser doído.

Zéfiro, vento primaveril, é o filho da Aurora (amanhecer). Clóris, a ninfa, foi raptada pelo apaixonado Zéfiro. Ao se tornar sua noiva, ela se transformou em deusa e passou a se chamar Flora — aquela que é responsável pelas flores. Entrelaçados, os deuses alados impelem Vênus para a praia em meio a uma chuva de rosas.

A deusa Hora é uma das quatro Horas que simbolizam as estações do ano. Ela simboliza a primavera — estação do renascimento. Hora usa uma veste de fundo claro, salpicada de flores. Traz no pescoço uma guirlanda de murta.

A natureza encontra-se em festa, para receber tão sublime divindade. As folhas, flores e troncos das árvores parecem bordados com ouro. Mar e céu fundem-se num abraço de tons verdes e azuis.

Os personagens da obra possuem mãos e pés bem delineados e fortes, com dedos longos. Essa é uma característica das figuras pintadas por Botticelli. Todo o quadro é perfeitamente harmonioso, tendo Vênus como figura central. A deusa Hora parece flutuar em razão da graciosidade de seus movimentos. O mar, cujas ondas em forma de V apresentam-se mais calmas quando mais distantes, agita-se ligeiramente perto da praia com o sopro de Zéfiro.

O Nascimento de Vênus foi uma pintura revolucionária para o seu tempo, por ser a primeira obra de grande porte renascentista a tratar um tema laico e mitológico, abrindo mão dos temas sacros. Por isso, chega a ser surpreendente que o quadro tenha escapado da ira sagrada do monge beneditino Savonarola que consumiu outras tantas obras de Botticelli porque, segundo o extremista, teriam “influências pagãs”. O Nascimento de Vênus foi encomendado a Botticelli pelo rico mercador Lorenzo di Pierfrancesco de Medici, responsável por patrocinar a viagem de Américo Vespúcio ao Novo Mundo.

Ficha técnica:
Data: 1483
Técnica: têmpera sobre tela
Dimensões: 172,5 x 278,5 cm
Localização: Galleria degli Uffizi, Florença, Itália

Fonte de Pesquisa:
Grandes Mestres/ Abril Coleções
1000 obras primas…/ Könemann
A Arte em Detalhes/ Robert Cumming
A História da Arte/ Sextante A História da Arte/ LTC

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Botticelli – A PRIMAVERA

Autoria de Lu Dias Carvalho

primavera

A composição intitulada Primavera — também conhecida por Alegoria da Primavera — é mais uma das magníficas obras do pintor florentino Sandro Botticelli. Seu quadro, concluído em 1478, tinha por finalidade enfeitar a residência de verão dos Medici, tendo sido encomendado por Lourenzo, o Magnífico. Ao lado de “O Nascimento de Vênus” esta obra contribuiu para que o pintor fosse ainda mais prestigiado pelos Medici. É hoje um dos quadros mais populares e reverenciados na arte ocidental. A pintura que possui um formato monumental com figuras em tamanho natural reverencia a chegada da estação das flores, usando uma temática mitológica clássica.

Vênus — divindade ligada à primavera — está representada no centro do quadro, como se observasse tudo. Encontra-se vestida com recato e a posição da mão direita sugere que esteja abençoando toda a cena. O volume de sua barriga leva o observador imaginar que esteja grávida, mas trata-se apenas do pregueado de suas vestes. As árvores atrás dela formam um arco quebrado, como a distingui-la dos demais personagens. Acima da deusa está Cupido, seu filho, com os olhos vendados, apontando a sua flecha para as Três Graças (Aglaia, Talia e Eufrósina) que representam a beleza, a castidade e a sensualidade. À esquerda de Vênus, envolto numa túnica azulada, encontra-se Zéfiro — vento primaveril — com suas bochechas infladas, a fecundar Clóris. Seus traços são tristes. As árvores à sua volta vergam sobre ele.

Clóris — a ninfa da terra — está coberta por um transparente véu. Seu rosto é delicado e ela aparenta surpresa e medo ao ser tocada por Zéfiro. Uma fileira de flores sai de sua boca após ser fecundada. A seguir, transforma-se em Flora, a deusa da primavera que se apresenta com um vestido florido e, nas dobras desse, carrega muitas flores que ela espalha em volta. Cinge-lhe a cabeça uma coroa de flores e o pescoço está envolto por uma guirlanda também de flores. Ela tem plenos poderes sobre a primavera.

O chão da clareira encontra-se forrado de plantas e flores, enquanto frutas pendem das árvores. Segundo pesquisas, há cerca de 500 espécies de plantas identificadas e retratadas na pintura e cerca de 190 espécies diferentes de flores. Botticelli foi orientado ao pintá-las, assim como também passou a conhecer-lhes a simbologia.

As Três Graças estão cobertas por finos e transparentes véus. Elas dançam graciosamente, celebrando a chegada da primavera. A sensação de movimento e leveza transmitida pelo artista é tamanha que elas parecem flutuar — essa é a maneira típica de serem retratadas, sendo que uma delas se apresenta sempre de costas para o observador. Mercúrio — deus mensageiro dos ventos — usa uma túnica escarlate e uma espada à cintura e dissipa as nuvens com seu bastão de serpentes, a fim de que o jardim fique sempre iluminado pelos raios do sol.

Todos os personagens estão belamente representados. Seus movimentos são graciosos e harmônicos. A combinação das vestes brancas diáfanas das Três Graças com o vestido florido da deusa Flora e com a postura delicada das mãos de Vênus faz desta pintura uma das obras mais encantadoras do Renascimento italiano. Do traço gracioso de Sandro Botticelli flui feminilidade e delicadeza.

Obs.:
Alguns críticos de arte dão outros sentidos à pintura, como o de que retrata o ideal de amor neoplatônico popularizado entre os Medici e seus seguidores. Mas a grande maioria confirma que se trata de um grupo de figuras mitológicas num jardim, festejando a chegada da primavera. Explica que a leitura do quadro deve ser feita da direita do observador para a esquerda:

Zéfiro, o vento cortante de março, sequestra e possui a ninfa Clóris, com quem mais tarde se casa e a transforma em divindade, Flora, que se torna a deusa da Primavera, portadora da vida eterna, espalhando rosas pelo chão.

Infelizmente esta obra maravilhosa de Sandro Botticelli vem escurecendo muito com o passar dos anos.

Ficha técnica:
Data: t. 1482
Técnica: têmpera sobre madeira
Dimensões: 203 x 314 cm
Localização: Galeria Uffizi, Florença, Itália

Fonte de Pesquisa:
Grandes Mestres/ Abril Coleções
1000 obras primas…/ Könemann
A Arte em Detalhes/ Robert Cumming
A História da Arte/ Sextante
Renascimento/ Editora Taschen

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