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Crítico de Arte – Professor Pierre Santos

O CRISTIANISMO E A FIGURAÇÃO PLÁSTICA (2ª. Parte)

Autoria do Prof. Pierre Santos

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Arte Catacumbária

Compreendida a aurora da arte cristã nas fases catacumbária e de libertação e considerada a situação política do novo culto, de existência oculta e secreta face às leis do Estado durante a fase inicial, somente a seguinte, a de libertação, consegue efetuar as primeiras tentativas na arte de construir. Realmente, o cristianismo teve as suas iniciativas confinadas nos subterrâneos do solo romano, enquanto à flor da terra continuava a processar-se e a esmagá-la a arte pagã. Eram duas civilizações que se opunham: uma, embora em decadência, ainda poderosa, mas chafurdada no vício e no descrédito de seus deuses; outra, apenas surginte, mas em si trazendo a seiva de tudo quanto é novo e sadio, e municiada com as armas do espírito que faltavam àquela. Mas, por ironia da inevitabilidade das substituições estéticas, “uma vai desaparecer em um halo de pesadelo – escreve Alfred Leroy – e a outra vai fundar as bases de uma nova era”

Assim, ainda não se pode falar em arquitetura nos séculos I a III, quando os cristãos se reuniam para suas rezas em casas comuns, para tanto doadas por conversos de melhor nível econômico e adaptadas de maneira simples às necessidades do culto. Os dirigentes não tinham como conseguir recursos para construções mais arrojadas, nem lhes seria permitido realizá-las. Também ainda não se pode falar em formas adultas de criação artística, porquanto a arte de então, destinada à decoração das catacumbas, era movida por um sentimento de singeleza e devoção, sem quaisquer outras pretensões, senão as de atingir a prece pelos mortos, transcrita numa linguagem simbólica transbordante de simplicidade e encantamento. Por outro lado, não se pode pensar nas catacumbas como forma de organismo arquitetônico.

As catacumbas limitavam-se a profundos, estreitos e úmidos corredores cavados, por assim dizer, vegetativamente, conforme as necessidades imediatas e as imposições do terreno, sem iluminação e arejamento, quebrando-se aqui e ali sem obediência a quaisquer medidas e tomando as mais inesperadas direções por sob a Via Ápia Antiga. Se fôssemos enfileirar numa reta esses corredores em geral de três metros de altura, em cujas paredes e de ambos os lados são cavados os loculi, sepulturas para um cadáver, teríamos uma catacumba de mais de mil quilômetros de extensão (o cálculo é de Flexa Ribeiro), assim mesmo só na parte já explorada. Isto nos faz pensar na incalculável multidão de fiéis que, nos primeiros séculos e nos períodos de mais intensa perseguição, foram barbaramente martirizados nas arenas romanas, em nome da religião cristã. É verdade que houve muitas fases de maior tolerância, por parte das autoridades romanas, para com o novo culto, durante as quais a vigilância da guarda romana antenava um pouco o afã de perseguição aos cristãos. De qualquer maneira, ao penetrarmos nesses hipogeus, seja os de São Calixto, de Santa Priscila, de São Sebastião, de Santa Domitila, de São Pretestado ou quaisquer outros, sempre o fazemos com um profundo respeito humano, um aperto muito grande no coração e um vazio inexplicável em nosso inconsciente, em memória dos mártires ali enterrados – tal o significado assumido pelo martírio em nosso sentimento em face daquele descalabro.

 Após o período de perseguição, os cristãos continuaram ainda a enterrar seus mortos ali, pela santidade do lugar, até por volta do final do século V, quando a inumação subterrânea foi proibida e as catacumbas tornaram-se lugares tão somente de peregrinação até avançado o século VII, tendo em seguida caído no esquecimento, para serem redescobertas no século XV e então estudadas arqueologicamente. Mas isto não diminui o impacto que o vultoso número de mortos dos primeiros séculos causa no mais profundo de nós.

As manifestações artísticas da aurora do Cristianismo, no seio das famosas catacumbas e mesmo nas casas onde os cultos se realizavam, sobre terem desempenhado extraordinário papel na formação da arte cristã, construindo-lhe a base, exerceram com sua emocionante singeleza uma influência substancial em toda a arte medieval. Nesse período teve origem a simbologia cristã, a princípio traduzida em simples garatujas sem nenhuma habilidade, depois desenvolvida e amadurecida relativamente ao seu contexto. Todas as referências religiosas – mistérios, dogmas,  rituais,  prescrições de comportamento, cenas bíblicas, intenções ritualísticas, todas mesmo – eram codificadas num específico símbolo (de simb, palavra grega que significa símbolo, sinal de reconhecimento, introdução, senha de identificação entre pessoas para as quais seja o mesmo familiar). Desta maneira, os símbolos do culto se elaboraram esotericamente por intermédio do enigma, da cifra, do ideograma ou do anagrama, dissimulando em si os conteúdos doutrinários.

Inúmeros símbolos foram então criados: a âncora, significando fé profunda; a Orante, figura geralmente feminina, com os braços erguidos, em atitude de oração pelos que ficaram na terra; a história de Jonas e a baleia, que o devora e depois o vomita numa praia, devolvendo-o à vida, dando a entender o dogma do sepulcro e da ressurreição; o Pastor com suas ovelhas, representando o Filho de Deus que apascenta as almas; a cesta de pães e o tabuleiro de peixes, significando o milagre da multiplicação de víveres; ânfora de óleo, instrumento da ablução, lembrando a necessidade da purificação tanto do corpo como da alma, etc.

O Peixe, o mais usado dentre os inumeráveis e constantes símbolos então surgidos, presta-se bem por sua facilidade interpretativa a exemplificar essa formulação ideogramática. Sendo a tradução da palavra grega peixe m, ou seja, em maiúsculas peixe Ma, é o acróstico anagramático, como se vê pela letra inicial de cada palavra, da legenda: crisgre que assim se pode traduzir para o Português: Jesus Cristo Filho de Deus Salvador. A coincidência do acróstico facilitava a memorização do símbolo, o qual, por isso mesmo, gozava de total aceitação em todas as partes por onde o novo culto se expandia.

Ao lado desses símbolos, começaram os primeiros cristãos, por carência mesmo de tradição, a transplantar modelos pertencentes à iconografia pagã, somente onde lhes era possível encontrar um corpus artístico constituído e bem realizado, mas os transubstanciavam e adaptavam-nos às necessidades doutrinárias. Exemplo típico é a representação do Bom Pastor, inspirada numa estátua grega do século V a. C., o Hermes Quirióforo. Entretanto, os símbolos ideográficos, os quais acabariam por assimilar os modelos pagãos, representavam a rigor o que a nova religião tinha de mais original e autêntico e entram na elaboração, para o Cristianismo, de uma linguagem plástica própria. Esta se desabrocharia no correr dos anos nos grandes temas tratados pela Arte Cristã, apreendendo dos símbolos o mais amplo conteúdo de espiritualidade, leveza e grafismo, sentimento, representação e espontaneidade.

Ilustração:
3. Catacumba de Sta. Priscila, Via Ápia.
4. Arcossólio catacumbário típico, lugar de inumação e prece.

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O CRISTIANISMO E A FIGURAÇÃO PLÁSTICA (1ª. Parte)

Autoria do Prof. Pierre Santos

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A religião cristã surgiu em oposição ao paganismo materialista. Esse se baseava na idolatria de imagens deificadas. Os dirigentes do novo culto, partindo do princípio de que Deus é por essência apenas espírito e só espiritualmente poderia ser concebido, proibiram a criação em suporte material de qualquer imagem ou figura, pois tal criação poderia levar os fiéis à mesma espécie de idolatria do paganismo greco-romano. Esta proibição, porém, originara gravíssimo problema: os novos adeptos estavam saindo, em sua quase totalidade, da massa inculta para um culto em formação. Para se ter ideia do problema, de conformidade com dados extraídos da Enciclopédia Larousse, dentro de cada universo de mil habitantes do mundo, no princípio do primeiro século de nossa era, apenas um tinha acesso pelo menos ao aprendizado da leitura. Ora, sendo quase nula a capacidade de abstração do povo ignorante, carecia este do concreto e físico, somente através do que poderia atingir o dogma. Isto seria impossível, sem algo representativo a sugerir e a vincular ao seu aspecto visível a ideação de todas aquelas verdades que se pretendiam transmitir.

Estava criado o impasse e uma das partes devia ceder. O povo, contudo, é o que é por si mesmo, naturalmente, nas pulsações vegetativas do complexo social ao longo da existência. O povo não é um cérebro que para, pensa e decide, mas coração que recebe, acaricia e transforma em anelo. Transigir competia, pois, aos líderes da Igreja, admitindo a figuração plástica como veículo de sua difusão e afirmação, conquanto a mesma tivesse finalidade didática, evitasse toda possibilidade idolátrica, evitando o corpóreo, o físico, e apreendesse das verdades dogmáticas exclusivamente o seu lado simbólico. E, assim, no dizer de Germain Bazin, “a arte se converteu numa linguagem para traduzir em formas a verdade do dogma”.

Assiste-se então ao florescimento de um extenso vocabulário alegórico e mesmo esotérico, perfeitamente afinado com os desígnios da religião, cujos rituais e mistérios, em suas mais variadas representações, se viram adequadamente traduzidos. Contudo, não é na figuração linear, pintada ou imaginativa, onde podemos encontrar a melhor realização desse artista à procura da simbologia. Foi na pesquisa da arquitetura da igreja, na elaboração do templo e em seu significado arquitetônico, onde ele com mais intensidade se realizou, conseguindo para o êxtase, a que pretendia o culto ascender, uma expressão ideal no planejamento e na estruturação de suas construções.

Ilustração:
1. O Bom Pastor e suas ovelhas – Pint. Catacumbária
2. Cesta de pães e o Peixe – símbolo da eucaristia.

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O ALVORECER DA COMUNICAÇÃO NA IDADE MÉDIA

Autoria do Prof. Pierre Santos

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Hoje trago para os meus leitores o significado de certas manifestações de comunicação e de arte medievais como códice, saltério, iluminura, miniatura, Livro de Rezas, Livro dos Evangelhos, Livro de Horas, volumen, incunábulo, enfim de tudo que se relaciona a essa forma de comunicação escrita e iluminada (a mesma coisa que ornamentada) a qual, no início, era feita pelos monges nos mosteiros românicos da Idade Média.

A magnífica arte da iluminura, que teve seu início na baixa Idade Média, atravessou todo o período românico e, dentro daquele mesmo espírito primevo com que apareceu, foi dar os seus últimos frutos dentro do contexto do chamado Gótico Internacional ou Tardio, nas regiões europeias boreais principalmente. Todas aquelas aspirações que embalaram o estilo gótico foi conhecer seu crepúsculo na arte miniatural dos tão famosos Irmãos Limbourg, de resto os derradeiros iluminadores do gótico, os quais, por sinal, eram nórdicos, autores do último Livro de Horas do estilo, talvez o mais bonito de todos.

Os Irmãos Limbourg foram  os responsáveis pelo esgotamento, em sua região, de uma tendência que se cansava, ao mesmo tempo em que dão abertura à afirmação de outra, que logo em seguida tomaria corpo a partir da obra de Mestre de Flémalle. Aí temos, portanto, o elo entre o Gótico Tardio e a Arte de além Alpes. Contudo, é bom que se frise: acabava com os Irmãos Limbourg aquela espécie de comunicação à maneira medieval; entretanto, ainda teríamos Livros de Horas e outros, mas com diferentes características, durante a Renascença e o Barroco, mais elaborados, mais completos, com técnicas superiores, todavia sem a singeleza das anteriores que encantava.

Referi-me acima aos monges copistas, cuja profissão teve na época muita razão de ser e progrediu bastante. Vejamos, pois, como tudo aconteceu. Desde o início da era românica, naquele momento em que o apelo sedutor do Cristianismo atuava com veemência e a hoste dos fiéis ia aumentando mais e mais, os dirigentes do culto se viram na premência de dotar as comunidades de locais apropriados e devidamente grandes, que pudessem abrigar as multidões durante a realização dos ofícios e das orações. Os arquitetos corresponderam à expectativa, ajudados pela população de cada localidade, e a Europa se cobriu de norte a sul de belos templos românicos. Simultaneamente, construíram-se também os mosteiros nas mais variadas regiões, para abrigar significativa parte do sacerdócio, guardião da base a da história da religião.

Àquela altura, tanto os monges, que recebiam nos monastérios grupos numerosos de fiéis em peregrinação, como os párocos das igrejas urbanas, começaram a sentir a falta de um substrato material em que a plebe pudesse apoiar-se, para entender e acompanhar a liturgia. Desta necessidade nasceu a idéia de se definir, por escrito, as peças necessárias na composição litúrgica dos ofícios e dos mistérios do culto. Esse trabalho, como naquele instante não podia deixar de ser, ficou desde o início sob a responsabilidade dos mosteiros.

Os monges para tanto mais habilidosos foram se especializando na função de elaborar e copiar o material compreendido de orações, atos, salmos e cânticos que eram usados nos rituais e ficariam contidos num códice (codex em latim, espécie de livro), que a rigor formava um verdadeiro Livro de Rezas, inicialmente dispostos de modo muito simples, mas que com o tempo foram sendo sofisticados em suas capitulares (capitular era a primeira letra de um texto, sempre bem maior do que as demais letras e muito bem trabalhada) e em suas iluminuras (que ornamentavam e ilustravam as páginas principais do códice).

Os primeiros trabalhos ainda foram feitos em forma de rolos de tiras de papiro, que atingiam até seis metros de comprimento; quando enrolados, tinham altura próxima a seis centímetros; a escrita e as ilustrações se faziam no sentido da abertura, tudo dividido em páginas, e não no sentido do fim do rolo. Logo se percebeu que tal formato não se prestava aos objetivos; ato contínuo, começaram a preparar um códice livresco com vários cadernos costurados para formar o conjunto, sendo que cada caderno levava o nome de volumen. Nesses códices, que eram em sua formação o Livro de Rezas, encontramos a origem do Saltério, do Livro dos Evangelhos e do Livro das Horas, sobre os quais falaremos oportunamente.

Contudo, havia uma realidade angustiante: a grande maioria da população era de pessoas analfabetas. Entretanto, em cada comunidade sempre havia muitas pessoas que eram alfabetizadas, algumas até cultas. Estas eram escolhidas para líderes de grupos. Digamos que, numa paróquia, cerca de trezentas pessoas podiam acompanhar os rituais; essas eram divididas em dez grupos de trinta e cada um tinha o seu líder, que era encarregado de ensinar-lhes as rezas e os cânticos, os quais eram decorados por todos.

Os copistas dos mosteiros recebiam dos párocos encomendas de certo número de códices do Livro de Rezas, que ficavam guardados nas sacristias, para serem usados pelos sacerdotes e pelos líderes, seja durante os ofícios litúrgicos, seja durante os encontros para instruções dos grupos. Acontecia, porém, que muita gente da turba tinha o interesse despertado para o aprendizado da leitura. Aí, os líderes tornavam-se os mestres, e os códices, cartilhas. Isso era uma coisa muito linda, porque muita gente assim aprendia a ler e a ir além dos códices, que até então eram muito simples.

O arranjo ali foi perfeito: os monastérios passaram a ter uma digna e constante ocupação; os monges, uma digna profissão, que só fazia crescer e dar-lhes boa renda; e boa parte da multidão iletrada, um modo possível de aprender a ler, enquanto o pároco ficava com a certeza e a tranquilidade de que os cultos estavam sendo bem acompanhados. Algo, entretanto, incomodava os dirigentes da igreja: naqueles códices de estrutura mais simples só podiam ser incluídos alguns poucos salmos, e só os mais importantes, enquanto eles são em número de cento e cinquenta, dos quais a metade era cantada diariamente, em vários rituais e em várias partes da liturgia, sendo a outra metade reservada para ocasiões especiais. Além disso, os Evangelhos, matéria tão importante para a propagação e compreensão da fé, ficavam de fora

Assim, já adiantado o século VIII, resolveu-se criar o saltério, espécie de códice que contivesse os cento e cinquenta salmos e outras peças, que ali eram dispostos de acordo com sua utilização, divididos em partes litúrgicas e obedecendo à ordem estabelecida pelas Horas canônicas. Os copistas não se limitavam a inscrever apenas as letras dos salmos, não raro precedidas por ligeira explicação de sua natureza e objetivo, mas quase sempre as faziam acompanhar-se da pauta musical correspondente, para evitar distorções de canto. Tudo isto, naturalmente, era desenhado sobre pergaminho, que substituiu o papiro no qual se registraram os primeiros códices, porque mais duradouro.

Ilustração:
1. Reis Magos, Códice de origem francesa, séc. XIII, manuscrito em velino, tipo pergaminho.
2. Frade pintando um manuscrito do séc. XI.
3. Pentecoste, do Saltério de Ingeborg, rainha da Dinamarca, 1200, Museu Condé, Chantilly

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RAFAEL SOB A ÓTICA DE PIERRE SANTOS (III)

Autoria do Prof. Pierre Santos

transfig      transfig I

Em 1517, ainda no primeiro semestre, Rafael recebeu a encomenda desta pintura, Transfiguração, a qual foi feita pelo Cardeal Giulio de Medici que, em 1523, se tornou o Papa Clemente VII que ficaria no Trono Papal até 1534. Era o segundo Medici a assumir o Papado, pois antes dele esteve no Trono seu primo Giovanni di Lorenzo de Medici que, com o nome de Leão X, ficou como Papa de 1513 a 1521.

O Cardeal Giulio já conhecia o artista, de quem era amigo. Assim, quando precisou de um grande quadro para decorar sua sala na sede episcopal de Narbonne, na França, não teve dúvida: contratou Rafael, que se desincumbiu da encomenda com certa dificuldade, como veremos. Quando Giulio tornou-se Papa, doou o quadro para a Igreja de San Pietro in Montorio, em Roma, para cujo altar-mor serviu de retábulo por muito tempo, até que, precisando de restauração em alguns pontos, foi levado para as oficinas de restauro do Vaticano, sendo instalado outro em seu lugar, que acabou sendo definitivo, enquanto a Transfiguração, uma vez restaurada depois de anos, ficou exposta numa das salas da Pinacoteca Vaticana, à qual passou a pertencer.

Atualmente a Transfiguração ocupa a parede mais importante do salão de entrada daquele Museu, tendo à sua direita a Virgem de Foligno, e, à sua esquerda, a Coroação da Virgem (ou retábulo Oddi), de 1502-04, pintura em madeira passada para tela, medindo 267 X 163 cm. Hoje os três quadros estão ali teatralmente expostos, dominando, por assim dizer, toda a Pinacoteca, numa demonstração de sua importância, pois de certa forma sintetizam a carreira do autor, a saber: tinha 19 anos quando começou a pintar a Coroação da Virgem; já havia pintado outros quadros, mas este foi o primeiro a tornar-se realmente conhecido na época, tendo ali início a sua fama. Aos 30 anos terminara a Virgem de Foligno, para mim o quadro mais completo de sua lavra, que afinal comprovou-lhe a qualidade de pintor mais importante do Renascimento, naturalmente no que se refira às diretrizes pictóricas deste.

Aos 34 anos, Rafael recebeu a encomenda para pintar a Transfiguração e passou o restante de 1517 estudando sobre o assunto e fazendo os planos da obra. Levou os outros dois anos pintando-a, ao mesmo tempo em que atendia a outras encomendas, sem descuidar daquela que, achava, seria sua obra prima. Todavia, em 1520, aos 37 anos de idade e exatamente no dia de seu aniversário, quis o destino que nos deixasse, sem ter concluído uma grande faixa da parte inferior da pintura, onde deixou a carvão apenas o esboço e a marcação do colorido, sabendo-se que os rapazes, que trabalhavam sob a orientação de Rafael em seu atelier, acabaram a pintura segundo as instruções deixadas; esta pintura é considerada o seu último trabalho.

A vida inteira de um gênio em sua evolução pictórica, bem como em suas conquistas plásticas, portanto, está ali sintetizada por estes três quadros, de maneira clara e emocionante e sem deixar dúvidas quanto a esta certeza inarredável. Embora distanciados um dos outros no tempo e diversificados quando ao significado último, que se dissimula entre o conjunto de formas e de contra formas, trazem em comum, por uma dessas inexplicáveis coincidências, a identidade no esquema composicional usado pelo artista em cada um desses quadros: os três estão divididos ao meio e solucionadas cada uma das partes superior e inferior de tal modo, que a intencionalidade direcional das linhas mestras compositivas garante a união delas e as equilibram.

Segundo carta escrita por Perugino a um amigo, citada por vários tratadistas do assunto, estava ele em visita no gabinete de seu pupilo, quando ali entrou o Cardeal Giulio de Medici, o qual, indo direto ao assunto, convidou Rafael a fazer um grande painel para seu gabinete no episcopado de Narbonne, nas medidas de 405 X 278 cm. O pintor então lhe perguntou com que tema devia preencher uma tela deste tamanho – e  recebeu de resposta: a reunião de dois temas naquela superfície: a transfiguração de Cristo e a cura do epiléptico. Rafael ficou lívido e sem respiração, sem saber o que falar, porquanto, afinal, a transfiguração era um tema que o fascinava, mas tinha medo de não saber a maneira como poderia resolvê-lo; ainda por cima, misturado com outro tema que nada tinha a ver com o primeiro. Mas a voz incisiva do Cardeal o repôs na realidade: aceitava ou não? E Rafael, gaguejando, simplesmente respondeu que sim.

 Quando Dom Giulio os deixou, o pintor confessou ao seu mestre Perugino que o tema da transfiguração sempre exerceu sobre si um real encantamento, mas sempre o temeu, pois não se julgava capaz de enfrentá-lo numa pintura, d’onde ter ficado surpreso e assustado com aquela encomenda. O mestre procurou levantar-lhe o ânimo, dizendo que acreditava no seu talento e que ele acabaria por cumprir a encomenda com toda a facilidade de que sempre foi capaz; todavia, perante a expressão cheia de dúvidas do discípulo, Perugino ficou preocupado, mas confiante. O resto daquele ano, entre outras tarefas, passou estudando sobre a transfiguração do Senhor e rabiscando possíveis esboços para o quadro, porém, nada que o satisfizesse. Só nos primeiros meses do ano seguinte chegou a uma solução convincente para o problema e conseguiu completar o estudo da composição, com base no Novo Testamento da Bíblia, principalmente no capítulo 17, versículos 1 a 13, do livro de São Mateus.

Sempre que olhamos esta tela, seja no original, seja em reproduções, a primeira coisa que nos chama a atenção é a frenética agitação que a percorre de alto a baixo. Em cima, o Senhor, de braços abertos, levita, arrastando consigo os profetas Moisés e Elias, como que sugados por poderoso jato luminoso, vindo do céu. Algo inexplicável desgrenha-os e agita-lhes a vestimenta. Atordoados e cegados pela luminosidade, os Apóstolos Pedro, Tiago e João, estendidos sobre o pico do Monte Tabor, tentam divisar e entender o que ali está acontecendo. Duas testemunhas à nossa esquerda, fora da zona de influência da tormenta, assistem à cena e oram. Na parte de baixo, uma grande multidão presencia ao milagre da cura de um epiléptico. Naturalmente, trata-se de acontecimentos que, segundo a Bíblia, aconteceram em tempos e lugares diferentes. Mas Rafael, atendendo ao que lhe pediu o Cardeal, juntou as duas cenas no mesmo quadro, usando o conjunto de pessoas as quais teriam assistido ao milagre da cura como a multidão postada às fraldas do Tabor, quando da transfiguração. Rafael conseguiu realizar a junção das cenas com tamanha naturalidade, que isto nem chega a perturbar-nos – tal a sua genialidade. Os que estavam ali presentes gesticulam até com exaspero, uns apontando o jovem doente, que é levado pelo pai, o qual implora a Jesus pela cura, outros apontando para a parte de cima, onde se desenrola o prodígio, e garantindo a continuidade composicional entre as duas partes.

Todas as criações deste pintor – e olhem que a obra por ele deixada é copiosa – feitas antes deste último quadro, são sempre absolutamente serenas – e tão serenas que, se uma pequena mosca neles entrasse de repente, iria causar grande confusão – absolutamente estáveis, absolutamente ponderáveis. Cada composição que se fazia era calculada com exatidão matemática e nada nesses quadros todos está fora de lugar, comprometendo o equilíbrio. Ao contrário, cada coisa, criteriosamente selecionada, é posta com precisão no seu lugar e coisa alguma há de supérfluo para complicar o motivo. Já no quadro em foco tudo parece envolvido num movimento frenético, ao que muito acrescenta a gravidade das expressões fisionômicas.

A Transfiguração é uma pintura diferente de todos os quadros que Rafael pintou e a agitação que aí encontramos, passando por cima do maneirismo daqueles que o imitaram, já aponta para o Barroco. Tivesse ele tido um pouco mais de tempo, acredito, iria encaminhar-se mais e mais nesta direção. Contudo, a bem da verdade, nada há de estranho nisto: quando o ser humano esgota todas as possibilidades dentro de um setor ao qual esteja se dedicando há anos, sua tendência não é mesmo mudar de rumo? Afinal, a mesma coisa estava se dando com Michelangelo e Leonardo àquela altura do Renascimento, o qual já estava sendo superado na arte deles. Por que não iria acontecer o mesmo com Rafael?

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RAFAEL SOB A ÓTICA DE PIERRE SANTOS (II)

Autoria do Prof. Pierre Santos

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O fascínio mais veemente desta pintura, Virgem de Foligno, sobre nossa atenção é exercido exatamente através da composição. Em cima, a Virgem Maria com o Menino Jesus, não no colo, mas encostado (literalmente) no lado esquerdo do tronco da mãe, sustentado pelo braço dela, ambos rodeados por uma nuvem de anjinhos. Em baixo, São João Batista (que aqui, por uma espécie de licença poética, já aparece adulto, embora fosse da mesma idade de Cristo), São Francisco, um Querubim, o Comendador Segismundo Conti e São Jerônimo. No fundo, uma vista da cidade de Foligno, exatamente como era ao tempo, focalizada num dia especial como um domingo, quando alguns habitantes, tendo assistido à missa na igreja, que aparece aí bem à frente da cidade (à qual este quadro era destinado), sai passeando pela periferia, a fim de aproveitar o dia de folga e o estio do momento (pois antes havia certamente chovido), abençoado por um belo arco-íris, que se estende pelo céu – e tudo isto muito bem definido por causa da clareza composicional, que tanto nos fascina, com base em impecável geometria.

Para começar, isolou o conjunto sagrado dentro de um triângulo de vértice bem alto, como dentro de uma redoma. Do meio da glabela da Virgem (glabela é esse espaço que existe entre as sobrancelhas do ser humano) parte uma linha fictícia, que passa pelo dedão do pé direito dela, pelo punho de São Francisco e vai morrer na ponta saliente da batina deste Santo. A linha do outro lado parte do mesmo ponto, passa pela parte de trás da perna esquerda do Menino Jesus, pelo meio da mão esquerda de Conti e vai morrer na ponta da parte mais escura das dobras da túnica vermelha deste. A linha de base é a que se estende deste último ponto descrito da dobra da túnica até à dobra saliente do hábito de Francisco. Pronto: está ressalvado o sacro ou aqueles que jamais estiveram tentados a pecar – a Virgem Maria, o Menino Jesus e o Querubim.

Para incluir os outros quatro figurantes na composição – São João Batista, São Francisco, Segismundo Conti e São Jerônimo, sabendo-se que os três santos, antes de o serem, eram homens comuns e o outro personagem que aí aparece sempre foi um homem comum – Rafael simplesmente empurrou o triângulo descrito para as laterais, forçando-o a transformar-se num pentágono. Do mesmo ponto de que parte o triângulo, parte também o pentágono. Seu lado direito com relação à Virgem (esquerdo para quem está de frente para o quadro) passa pela ponta aparentemente casual da saliência do manto de Maria, que se destaca em ângulo contra o sol laranja e vai até um ponto situado atrás da axila direita de Batista; descendo daí, passa pelo indicador de Francisco a vai até o centro da última flor quase apagada do tufo que está na base.

Do lado esquerdo da Mãe de Deus, a linha passa na ponta do olho esquerdo de Jesus, na ponta de seu polegar esquerdo e vai até um ponto ligeiramente abaixo do ombro de Jerônimo; daí, passa pela manga branca esquerda do Santo, pelo vértice do ângulo vermelho formado pela capa de Conti ao encontro da manga preta, e vai até a metade da parte final do tufo floral, na base do quadro. Pronto: todos os figurantes foram englobados, exceto o leão, símbolo de São Jerônimo, que, estando em espaço neutro, não interfere no todo.

 Mas ainda não é tudo. Um quadro assim tão amplo, de acordo com os rígidos princípios formais, que a Renascença impunha aos seus artistas, exige a fixação de um eixo de equilíbrio, que atenda a todos os pesos distribuídos pelo quadro. Ora, neste em discussão, o espaço ocupado por Jesus, Jerônimo, o leão e o Comendador é maior do que o outro lado, ocupado por Maria, Batista e Francisco. Este fato poderia deixar o lado direito mais pesado, desequilibrando o conjunto. Mas Rafael pensou em tudo: descreveu de alto a baixo, em ligeira diagonal, uma linha que, vinda lá de cima, passa pelo olho esquerdo de Jesus, pelo ângulo existente na junção de suas perninhas, pela ponta do vestido vermelho de Maria, pelo olho esquerdo do Querubim, pela ponta de seu pintinho (depois dizem que os anjos não têm sexo…), pelo último galhinho de flor acima da linha limite do tufo e morre na base do quadro. Este eixo na diagonal deixa o lado direito da superfície menor, pondo em destaque o outro lado, que assim se valoriza ao igualar-se em peso com o outro, no que é de grande ajuda o passo para diante dado pelo Querubim com o pé direito. Aí está mais um exemplo das mágicas sempre realizadas pelo mago das Stanzi.

Todavia, ainda continua a não ser tudo. Você descreveu em seu texto a curva na qual estão inscritas as cabeças dos figurantes da parte inferior, incluindo a do Querubim. Na parte superior também há uma curva: a descrita pelos anjinhos em torno do sol que aureola Maria e seu Filho. Elas são exatamente curva e contracurva, pois não se unem numa circunferência, no que são impedidas pela cruz-cajado de Batista, pelas pernas da Virgem e pelo espaço vazio entre a cabeça de Jerônimo e o céu acima. O friso recurvo dos anjos exerce pressão para baixo e a curva inferior ali se dispõe para receber o que desce do céu e formalizar o diálogo simbólico entre as duas partes, complementando nesta correspondência o equilíbrio da composição.

 Finalmente, só para concluir esta parte, vejamos uma derradeira mágica do renascentista, realizada também na obra em discussão. Tudo aí nos parece tão natural e é tão fácil a interação com cada forma existente no quadro, principalmente quando se trata de seres humanos, que o espectador se sente num convívio íntimo com tudo aquilo, como se estivesse participando da cena. A empatia estabelecida entre as partes celeste e terrestre é tão comunicativa e envolvente, que chega a parecer-nos corriqueiro o prodígio aí em desenvolvimento. Mas assim não é. Nunca testemunhamos uma aparição desta ordem, na qual tantos seres sagrados estivessem envolvidos, não é mesmo? Vejamos, pois, do que nos vem esta sensação. As linhas composicionais, as figuras geométricas de base, a gesticulação dos personagens, a intenção direcional dos olhares, etc, por si já nos dão esta sensação. Mas, além disso, o pintor facilita ainda mais tudo isto.

Observemos como as pequenas asas do Querubim compõem com os tufos de vegetação existentes para além de sua cabeça um diminuto semicírculo, que é repetido em tamanho bem maior no arco-íris e repetido em tamanho maior ainda no sol alaranjado atrás da Virgem (a propósito, a Virgem é imensa, bem maior que o sol – e isto em nada nos incomoda…). O crescimento apontado dessas formas se dá em círculos concêntricos, que vão crescendo até o infinito – eis a sensação que temos. Enfim, os anjinhos trouxeram a Virgem com o Menino Jesus; agora os círculos concêntricos estão se encarregando de ascendê-los, como também ao Querubim, para o espaço celeste. Os personagens daqui a pouco irão para onde devam ir e não nos restará a ver, senão a paisagem de Foligno. A visita de Maria com seu Filho acabou.

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RAFAEL SOB A ÓTICA DE PIERRE SANTOS (I)

Autoria do Prof. Pierre Santos

espovir      espovir I

O óleo sobre tela Esponsais da Virgem (ou Casamento da Virgem) é um quadro de composição e significado muito óbvios, calcado no mestre Perugino, apenas aperfeiçoado, com todas as linhas mestras de perspectiva indo morrer no meio da parte inferior da porta do santuário, numa convergência sistemática, e definindo a distribuição de maneira dosada de todos os pesos plásticos no espaço compositivo. Embora seja uma soberba demonstração de técnica, já superior à do mestre, é flagrante a falta de inventividade – apesar de a tela ser perfeitamente agradável à visão. Mas, aqui há uma novidade: ao que me consta, a partir daí, em todos os quadros de variados figurantes, Rafael sempre se incluiu na pele de algum figurante e incluiu também Perugino algumas vezes. Ali estão eles, como convidados a assistirem ao casório de Maria: são a antepenúltima e a penúltima figuras, à direita do friso.

Ao ver, mesmo de pertinho lá em Florença, a Madonna do Pintassilgo, é difícil de convencer de que se trata de têmpera, pois há efeitos aí que, a rigor, só se consegue com óleo. Mas eles aí estão e o quadro é pintado a têmpera! Como é bonita e convincente – naturalmente em se considerando a época da pintura – esta paisagem tão bem colorida e iluminada! À sua frente, presas num triângulo, as três figuras. O escorço, o volume sensual como são concebidas, é de dar inveja a qualquer acadêmico de hoje, com todos os recursos que têm. Sente-se perfeitamente o espaço e a luz que existem, por exemplo, entre a parte esquerda da cabeça de Batista e a parte azul do manto que cai do ombro da Virgem. Apesar de tudo, nunca me convenceu a figura do Menino Jesus com sua expressão concentrada de benevolência, pois mais parece um velho senhor em plena posse de suas faculdades mentais, e não uma criança praticamente de colo, que ainda mama, começando a viver.

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