Autoria de Lu Dias Carvalho
O filme A Bela da Tarde (1967), que tem por base um romance publicado em 1928, de Joseph Kessel, é uma obra-prima perspicaz, subversiva e erótica do cineasta espanhol Luis Buñel, que narra a história complexa de Séverine Serizi (Catherine Deneuve), uma bela burguesa de 23 anos, esposa de um conceituado e convencional cirurgião, Pierre (Jean Sorel), que se orgulha das qualidades virtuosas de sua mulher. Embora ele se mostre apaixonado, a relação entre os dois é insossa, com ela sempre recusando um contato físico com o marido. Séverine é dona de uma beleza fria e distante, e se mostra visivelmente frígida. A narrativa do filme desenvolve-se sob a perspectiva dela.
Séverine equilibra-se numa vida dupla, pois ao mesmo tempo em que é uma respeitável senhora, é também uma prostituta que, secretamente, trabalha num bordel de classe alta, no centro da capital francesa, durante algumas tardes por semana, enquanto o marido encontra-se no trabalho. Importa a ela apenas o sexo, ou seja, a sua própria satisfação, sem nenhum compromisso com o amor. Nas aparências de seu comportamento virtuoso, esconde-se uma vida cheia de fantasias e desejos, muitas vezes expressos através de seu sorriso enigmático. É no bordel que Séverine encontra segurança e liberdade para vivenciar suas fantasias masoquistas, que ela mesma diz serem impossíveis de controlar.
Embora A Bela da Tarde trate-se de um filme altamente erótico, é surpreendente a sutileza com que Buñel trata seu erotismo, visto de uma maneira totalmente diferente daquela a que estamos acostumados a acompanhar no cinema nos dias de hoje. O filme é muitas vezes também poético. Em sua obra, o diretor deixa as cenas libidinosas por conta da imaginação do espectador. Ele apenas as sugere. Tudo acontece por trás das portas fechadas do bordel. Há, até mesmo, um cliente debaixo de um esquife, local em que busca satisfazer suas fantasias eróticas, fazendo Séverine passar por morta. Tampouco o cineasta põe às claras a psicologia dos personagens ou o cotidiano dos mesmos.
O simples fato de Séverine entrar num quarto de bordel, indiferentemente daquilo que ali venha a se desenrolar, ou com quem se encontre, já é suficiente para despertar um alto grau de erotismo, tornando-se desnecessário explicitá-lo. Portanto, não existe nenhuma cena de sexo expresso formalmente no filme, elas são apenas insinuadas. E, como a imaginação é sempre muito mais intensa, o filme acaba ganhando em densidade.
Henri (Michel Piccoli), amigo do casal, também se sente atraído pela beleza e discrição de Séverine, que faz questão de demonstrar um gélido desinteresse por ele, sempre que se encontram. E é Henri que, indiretamente, dá-lhe o endereço do bordel de Madame Anais, pois ao tomar conhecimento de que donas de casa trabalham em bordeis, à tarde, enquanto seus maridos estão fora, a fim de ganhar um dinheiro extra, Séverine vê-se seduzida por esse tipo de lugar.
Séverine veste-se toda de preto, usando grandes óculos escuros, para ir à busca do bordel de Madame Anais (Geniéve Page), que parece não ter interesse por homem, mas apenas por mulheres. Trata-se de uma mulher experiente no seu ofício, que logo aprende a lidar com a novata, que foge no seu primeiro dia de trabalho, mas não tarda a voltar. Séverine também tenta escolher seus clientes, mas Madame Anais mostra-lhe que isso não é possível, pois a escolha é do freguês e, com dinheiro, todos eles são iguais.
Além de ser masoquista, pois gosta de ser tratada rudemente pelos clientes do bordel, Séverine também possui fetiches particulares, como se excitar com o miado dos gatos e com o barulho de sinos de carruagens. Em suas fantasias eróticas, esses sons aparecem, como acontece logo no início do filme, quando ela imagina estar sendo violentada pelos dois condutores da carruagem, a mando do marido, que a pune por ser fria com ele. O mesmo acontece na cena em que, usando um vestido branco, ela se imagina sendo violentamente amarrada, com os homens a lhe atirar lama, incluindo o marido. Outra cena que chama a atenção é aquela em que um cliente de origem asiática mostra algo dentro de uma caixinha a uma das companheiras de Séverine que o recusa, e depois a ela, que o aceita. Ao espectador não é dado saber o que a pequena caixa contém. Ele ouve apenas um zumbido saindo de dentro dela. Deduz-se que na caixinha havia algo de grande magnetismo erótico.
Dois clientes chegam ao bordel de Madame Anais, ambos criminosos. Um deles, o mais velho, já é conhecido da casa, enquanto o outro, Marcel (Pierre Clémenti), é novo ali. Ele é um jovem impetuoso, arrogante e convencido. Usa um casaco preto de couro, tem a boca cheia de dentes de aço e carrega uma bengala cortante. E é exatamente pelas maneiras rudes e pelos insultos de Marcel que Séverine sente-se atraída. Os dois passam a ter um relacionamento mais intenso, e ele se vê no direito de tê-la quando bem quiser, como sua propriedade. Fica enlouquecido, quando a bela não aparece no bordel. É incapaz de compreender que não é dele que Séverine depende, mas daquilo que ele representa, ou seja, ele é apenas uma vazão para suas fantasias, aquilo que de melhor pode encontrar para realizá-las, mas sem nenhum vislumbre de amor.
Séverine é surpreendida por Henri no bordel, onde é impiedosa com ele, apesar de lhe pedir para não contar nada a seu marido, alegando que fora ele quem lhe dera o endereço. Mas acontece uma reviravolta, quando Marcel, insatisfeito com o sumiço dela, descobre seu nome e endereço e vai até sua casa, no momento em que seu marido está prestes a chegar do trabalho. Ela o convence a sair, mas ele fica de tocaia na rua. Ao descer de seu carro, Pierre é baleado por Marcel, que, em seguida, é cercado e morto pela polícia, enquanto fugia.
Pierre vai para o hospital e depois volta para casa numa cadeira de rodas. Ele não fala, não enxerga e não anda. Séverine toma conta dele. Mas Henri vai visitar o amigo e diz a ela que vai lhe contar tudo. Não fica claro se isso acontece. O filme termina com Séverine tendo outras de suas fantasias, ao ouvir o som da sineta da charrete que passa na sua rua, vendo Henri levantar-se e abraçá-la.
A Bela da Tarde é sem dúvida o filme mais conhecido e icônico de Luiz Buñel, em que ele retoma seu ataque à hipocrisia da classe burguesa, aqui retratada por Séverine, uma mulher jovem, rica, elegante e bem casada, mas, que vai à procura de um bordel para vivenciar suas fantasias eróticas, onde convive com a humilhação, num grande contraste com a sua vida de burguesa. O diretor também faz presente o seu posicionamento anticlerical, ao mostrar, num rápido flashback, Séverine, ainda criança, rejeitando a hóstia durante a comunhão. Outro momento de flashbacks é mostrado quando ela sobe as escadas do bordel e vê imagens de sua infância, inclusive sendo molestada.
Embora alguns possam entender que o filme seja um caminho para a liberação feminina, as coisas não são bem assim, pois Séverine é uma mulher triste, que tem por companhia apenas homens cruentos, hostis e criminosos. Seu jovem marido Henri, a quem ela ama, é incapaz de realizar suas fantasias, ou talvez ela não tenha coragem de expô-las para ele, por timidez ou medo de ser censurada. É também difícil saber qual é a verdadeira Séverine. Seria ela a mulher muito bem vestida com roupas de grife e impecavelmente penteada ou aquela de cabelos soltos e roupas mínimas? A esposa linda, mas distante, ou a amante submissa e realizada? Talvez seja ela a junção das duas, onde uma necessita da outra para sobreviver.
Para que o espectador possa entender melhor o filme, pois muitas vezes realidade e sonhos confundem-se, é bom que preste atenção na presença de sinos, que é o sinal dado para nos advertir que Séverine está fantasiando. Fica também a consideração de que o diretor não teve nenhum interesse em mostrar respostas. Trata-se de uma obra aberta, de modo que cada um possa fazer a sua própria interpretação.
Sugestão
Outras obras do diretor: Um cão andaluz/ A idade do ouro/ Os esquecidos/ Nazarin/ Viridiana/ O anjo exterminador/ Diário de uma camareira/ Tristana – uma paixão mórbida/ O discreto charme da burguesia, etc.
Para quem gostou do filme fica a sugestão de assistir a “De Olhos Bem Fechados” (1999) – Stanley Kubrich.
Fontes de pesquisa
A Magia do Cinema/ Roger Ebert
Tudo sobre Cinema/ Sextante
Cinema com Rubens Edwald Filho
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