Historiando Chico Buarque – CONSTRUÇÃO

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Autoria de Lu Dias Carvalho

chico

Amou daquela vez como se fosse a última/ Beijou sua mulher como se fosse a última/ E a cada filho seu como se fosse o único.” (Chico Buarque)

Os arranha-céus pipocando por todos os lados eram a marca mais visível do poderio do capitalismo. O dia ainda nem nascera e filas de operários sonolentos já aguardavam nos pontos escuros da distante periferia a condução para o trabalho. Eram milhares de Joãos, Joaquins, Manés e Josés, sendo impossível nominá-los. Todos eles frutos da mesma sina, irmãos do mesmíssimo amargor. A cada dia subiam mais alto na vida, engatados nos possantes andaimes a cruzar os ares. Embaixo, o vão da morte a rondá-los diariamente.

O operário acordou com um pressentimento ruim. Antes de levantar-se do catre, sentiu um imenso desejo de fazer amor com sua mulher. E “Amou daquela vez como se fosse a última”. Levantou-se apressado, com medo perder a hora, e “Beijou sua mulher como se fosse a última/ E a cada filho seu como se fosse o únic”. No outro lado da rua, alguns colegas de igual sorte já o esperavam: “E atravessou a rua com seu passo tímido”.

Chegou ao ainda esquelético arranha-céu, já cansado pelo esgotante trajeto e obsoleta condução. E sem perda de tempo “Subiu a construção como se fosse máquina/ Ergueu no patamar quatro paredes sólidas/ Tijolo com tijolo num desenho mágico”. Poucos repararam nos “Seus olhos embotados de cimento e lágrima”. Que vida danada de cruenta, meu Deus!

Uma sirene avisou ao operário que era hora do rango e ele “Sentou pra descansar como se fosse sábado/ Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe/ Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago”. Da altura em que se encontrava acreditou que poderia até tocar na mão de Deus. Por isso, “Dançou e gargalhou como se ouvisse música”. Mas desequilibrou-se “E tropeçou no céu como se fosse um bêbado/ E flutuou no ar como se fosse um pássaro/ E se acabou no chão feito um pacote flácido”.

Sem socorro, o operário “Agonizou no meio do passeio público.”, enquanto os condutores de luxuosos automóveis reclamavam que aquele traste “Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”. Somente os companheiros apiedaram-se do irmão, cujos restos boiavam em meio a uma poça de sangue escuro. Rodearam-no. Mas o patrão obrigou-os a voltar ao trabalho, sob ameaça de demissão por justa causa. Manda quem pode e obedece quem precisa! É a vida!

Ainda bem que o operário “Amou daquela vez como se fosse o último/ Beijou sua mulher como se fosse a única/ E cada filho seu como se fosse o pródigo”. Não é difícil, portanto, entender porque “(E) atravessou a rua com seu passo bêbado” Seus colegas contam que ele “Subiu a construção como se fosse sólido/ Ergueu no patamar quatro paredes mágicas/ Tijolo com tijolo num desenho lógico”, e muitos viram seus “Seus olhos embotados de cimento e tráfego”. E que depois, ele se “Sentou pra descansar como se fosse um príncipe/ Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo/ Bebeu e soluçou como se fosse máquina/ Dançou e gargalhou como se fosse o próximo”.

Um dos Manés ou Josés observou quando “Ele tropeçou no céu como se ouvisse música/ E flutuou no ar como se fosse sábado/ E se acabou no chão feito um pacote tímido”. Mas também os Joãos e Joaquins viram quando ele “Agonizou no meio do passeio náufrago” E “Morreu na contramão atrapalhando o público”.

Durante dias não houve uma só construção em que não se comentasse que o operário “Amou daquela vez como se fosse máquina/ Beijou sua mulher como se fosse lógico/ Ergueu no patamar quatro paredes flácidas/ Sentou pra descansar como se fosse um pássaro/ E flutuou no ar como se fosse um príncipe/ E se acabou no chão feito um pacote bêbado/ Morreu na contramão atrapalhando o sábado”. Até que uma nova  desgraça aconteceu e essa foi esquecida. E depois mais outra, e outra, e outra…

Obs.: Ouça a música  CONSTRUÇÃO

Nota: imagem recebida via e-mail

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4 comentaram em “Historiando Chico Buarque – CONSTRUÇÃO

  1. Paulo Roberto

    Lu, uma leitura pungente do drama daqueles que só são donos da sua prole (por isso, proletários), que o Chico transformou em arte e poesia.

    Parabéns pelo texto.

    Responder
    1. LuDiasBH Autor do post

      Paulo Roberto

      Eu sou extremamente devotada ao Chico Buarque, em razão dessa sua visão social, que carrega desde rapazinho. Não resta dúvida de que se trata de um dos artistas mais devotado às camadas mais sofridas de nosso povo. E é, sem dúvida alguma, um dos maiores poetas e compositores deste país. Historiar suas canções foi uma maneira de homenageá-lo e também falar das reais necessidades dos proletários brasileiros. Gostei muito da definição que você deu à palavra “proletário”. Nunca havia pensado nisso.

      Agradeço a sua visita ao blog e o seu comentário. Gostaria muitíssimo de contar sempre com a sua presença.

      Abraços,

      Lu

      Responder
    1. LuDiasBH Autor do post

      Mário

      Sem dúvida alguma!
      Chico Buarque é o maior poeta social deste país. Acompanhe os outros HISTORIANDO.

      Abraços,

      Lu

      Responder

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