Autoria de Antônio Messias Costa
Guma é o nome de batismo de uma onça macho, nascida e retirada da floresta amazônica, ainda pequenina, com não mais de um mês de vida. Crescera sendo cuidada como um gatinho doméstico, a despeito de seu desenvolvimento cada vez mais rápido. Ainda filhote, era motivo de afeto e cuidados constantes que, por outro lado, ia sufocando seus instintos e necessidades naturais.
O dono de Guma passeava pelas ruas de sua cidade, exibindo o animal com ostentação. Muitas pessoas dele se aproximavam, tanto para tocá-lo, como para satisfazer a própria curiosidade. Como o capturou? Onde? O que come? É agressivo? Algumas outras, mais preocupadas e comprometidas com o filhote, traziam outras preocupações. Ele é feliz fora de seu habitat? Quando será enviado a um zoológico, para um projeto de reabilitação e reintrodução? Outras perguntas de natureza mais íntima também eram formuladas, como: O que leva uma pessoa a ostentar um animal de natureza selvagem, como trunfo, desfilando pelas ruas, tanto a pé quanto em carros? Onde estão sua sensibilidade e compreensão sobre a vida animal?
Envolvido na área, eu já presenciei situações parecidas à descrita acima, que me levaram a algumas deduções bastante lógicas. Podemos buscar um paralelo, por exemplo, com o tipo de cão que cada pessoa possui. É fácil perceber a razão pela qual os “bad boys” preferem cães agressivos; as pessoas amáveis possuem predileção pelos dóceis; as emocionais buscam os cães mais sensíveis e frágeis, enquanto aquelas que se sentem diferenciadas, artisticamente ou financeiramente, preferem os mais raros e diferentes, geralmente muito caros. Evidentemente existem inúmeras exceções.
Existem poderosos chefes de tráfico, assim como políticos ricos, que possuem zoológicos particulares. Certamente é algo que os diferencia e dá status, o que faz lembrar o início da criação dos zoológicos medievais, quando os imponentes chefes de clãs mantinham zoos particulares, num misto de curiosidade, maldade e diversão – época de grande sofrimento para os animais. Tratava-se de pessoas que viviam um tempo de ignorância, incapazes de compreenderem, ou pelo menos respeitarem essas formas diferentes de vida. Existiam até varas compridas para instigar os animais durante as visitas, de modo a expô-los à apreciação dos visitantes. Além do mais, o homem achava-se produto de outro mundo que não o animal. Os circos também eram um cenário de grande judiação para os bichos, panorama que ainda sobrevive em alguns países.
Retornando à onça Guma, de tanto vê-la exposta, alguém ligou para os órgãos de fiscalização, que prontamente tentaram buscar uma melhor alternativa de vida para ela. O Parque Zoobotânico do Museu Emílio Goeldi, Belém/PA, foi contatado e dispôs-se a aceitá-la, à época já com quatro anos, portanto adulta. Guma foi mantida, sozinha (onças são animais solitários, exceto quando filhotes e na época de acasalamento), num ambiente enriquecido com tanque, troncos de árvores, vegetação e toca, e, que lhe oferecia boa qualidade de vida.
Já no primeiro dia de Guma em cativeiro, a equipe de ajuda presenciou uma cena incomum. O animal masturbava-se sem parar, ação que virou rotina em sua vida, quase sempre estimulada pela presença dos tratadores, quando esses se aproximavam do recinto para manejo, limpeza, alimentação, etc. O comportamento estereotipado do felino também era feito na presença do público, à distancia, embora nem sempre percebido. (Ver imagem acima)
Sensibilizada com o sofrimento do animal, a equipe de técnicos do Parque Zoobotânico do Museu Emílio Goeldi procurou identificar as razões que aguçavam tal comportamento. Foi feito um trabalho metodológico, que permitiu concluir que o estímulo era maior com a presença masculina. Na tentativa de minimizar o problema, realizou-se um trabalho de enriquecimento ambiental, que consistia na introdução de aromas, pelos e pedaços de alimentos escondidos e pendurados nas árvores, de modo a fazê-la gastar energia, ao buscar ações diferentes da obsessão por masturbar-se.
As ações empregadas na ajuda a Guma surtiram efeito por pouco tempo. A medida seguinte foi utilizar o método de recompensa e punição, que consistia em utilizar uma forte buzina quando ela ameaçasse se masturbar, e recompensá-la quando não o fizesse. O interessante nessa técnica comportamental é estabelecer o momento certo da recompensa ou punição, porque na cabeça do animal pode ocorrer que deva agir negativamente para ser punido e depois recompensado. Os resultados foram importantes, mas depois de alguns meses o problema voltou. Também é interessante notar como esses animais identificam e sentem as pessoas, mesmo que não interajam com elas no dia a dia.
Além do comportamento alterado descrito acima, Guma mia como gato, não sabe gastar as unhas nos troncos do recinto, o que nos obriga a anestesiá-la para a correção dessas, sob o risco de adentrarem em seus coxins plantares, como já ocorrera antes. É justamente quando vê a zarabatana com a anestesia, que de fato ela se torna uma onça, mostrando a sua agressividade natural. É a oportunidade que a equipe técnica tem para, além de aparar suas unhas, avaliar seus dentes e realizar coleta de sangue para acompanhar seu estado de saúde.
É importante saber que os animais selvagens sentem-se bem, quando podem desenvolver suas necessidades biológicas de caçar, voar, reproduzir, alimentar-se do que gosta, enfim cumprir o seu papel biológico na natureza. Privá-los disso é impingir-lhes sofrimento físico e psicológico, com sérias consequências. Por isso, os zoológicos de qualidade modernizam-se para acompanhar os avanços do conhecimento das necessidades biológicas das diferentes espécies. Por outro lado, animais nascidos em cativeiro são mais adaptáveis, pois sentem menos a necessidade de uma vida natural, uma vez que não a conhecem, muito embora seus instintos básicos gritem por necessidades biológicas, que devem ser supridas.
Os zoológicos são importantes porque tornam os animais conhecidos, propiciam inúmeras pesquisas em benefício da conservação no ambiente natural, já sob risco de doenças, em razão dos impactos ambientais – daí existir a Medicina de Conservação. Sem a existência deles, os animais selvagens dificilmente seriam vistos e sentidos e, consequentemente, defendidos, assim como os seus ambientes, cada vez mais reduzidos e ameaçados.
Nota: foto do animal masturbando-se tirada pelo autor do texto.
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Olá, Messias, tudo bem?
Tive o prazer de conhecer esse lindo meninão chamado Guma. De extrema beleza e vigor. Porém, também fiquei chocada ao saber da história dele. Infelizmente o homem é mais irracional que o próprio animal. Acredito que Guma já está bem, pelo fato de estar sendo tratado por ti e sua equipe. Vamos torcer para que a qualidade de vida do Guma melhore cada vez mais!
beijos
Suzy
Suzy, Guma representa o capricho, a insensatez e o egocentrismo de um indivíduo que o criou como “gente” desde os seus primeiros dias de vida. Os problemas nesses casos, são um grande desafio para ser sanados. Mas tem merecido toda a nossa atenção.
Beijos
Messias
Agora o Guma é um garoto felino de sorte! O tempo será o grande aliado nessa luta. Com o carinho e empenho que você e sua equipe estão dando a ele, tenho certeza que teremos consideráveis avanços.
Sorte pra todos! Beijocas!
Devas
Os grandes felinos vivem solitariamente, com raras exceções, como no caso dos leões, ou eventualmente irmãos em parceria de caça, como no caso de guepardos, também onças já foram avistadas juntas. Em cativeiros, podem viver juntos com um bom manejo e em grande áreas. Mais fácil, se começam a estar juntos desde cedo. No caso da onça Guma, tentei colocar uma jovem fêmea junto, através de uma aproximação gradual. Não deu certo. Ela estava interessada, mas Guma não, chegando a atacá-la. O jeito foi parar a ação de “cupido”, nesse ponto. As neuroses são graves, também com os animais, meu caro amigo!
Grande abraço,
Messias
Messias,
Muito interessante seu texto. Porque não colocar uma fêmea adulta para ser a companheira de Guma? Se ele aceitar pode acabar com seu sofrimento. Estamos aguardando seu livro sobre curiosidades dos animais selvagens.
Abraço,
Devas
É fato Matê. Leis de diferentes maneiras, e em alguns aspectos, estão presentes em nós. Somos elos de uma só cadeia! Daí a necessidade de um mundo compartilhado, em equilíbrio, onde deve haver respeito também na utilização dos animais como alimento, para não citar tantos outros pontos, como na utilização de animais de tração, serviços…etc..!
Messias
Messias
A Natureza tem suas leis. Os homens não entendem isso. E os animais são as vítimas,infelizmente.
Abraços
Matê
Antônio Messias
Será que a fúria dos animais de circo e outros similares, normalmente sem par, está ligado à abstinência sexual forçada?
Já li algo sobre a autoflagelação de animais em situações semelhantes à de Guma.
Fruto de nossa crueldade? Acredito que sim.
Na realidade Julmar, animais de circo, proveniente da vida livre, inicialmente podem ser furiosos, depois, pela impossibilidade de mudar o estado em que se encontram, por restrição de espaço e impossibilidade de fuga, são obrigados a aceitar tudo, deprimem, tem artroses, principalmente se pesados como elefantes; gastrites nervosas, movimentos repetitivos, obesidade, neurodermatites… entre outras alterações. As questões sexuais levando a comportamentos anormais, podem ser masturbações em objetos do ambientes, agora no caso do Guma, é algo incomum. A automutilação animal ocorre com muitas espécies, geralmente mais desenvolvidas e com grande repertório de atividades, como primatas e quatis. O ser humano é cruel por natureza, algo instintivo, a ser domado pela mente em evolução.
Abraços
Messias
Messias
O seu texto deixou-me preocupado, pois eu gosto muito de animais. Não há nada que se possa fazer para acabar com o sofrimento da Guma?
É comum acontecer situações como esta?
Obrigado por nos trazer este texto.
Abraços
Rui Pedro
Obrigado pela preocupação, Pedro Rui.
Guma é uma onça macho. Quando tentei colocá-la com uma onça fêmea jovem, o que não é comum em vida livre, Guma não quis nada com a “garota”, o foi bem engraçado. Prometo-lhe, que, ao retornar de férias, que vou investir mais tempo na qualidade de enriquecimento do ambiente onde Guma fica, que seria criar novas maneiras de oferta de alimentação, como colocar a comida dentro de canos no seu lago, pendurar caixas com alimento, no alto, ajudando Guma a se esquecer de sua neurose.
Abraços,
Messias
Antônio Messias
Como gosto muito de animais, venho sempre acompanhando seus textos que são cada vez melhores. Tenho aprendido muito com o que escreve. Fiquei impressionada com a história da onça Guma, que deve sofrer muito, assim como quem a vê. Nunca imaginei que isso pudesse acontecer com os animais, bem se vê que gente e bicho é mais parecido do que imaginamos. Parabéns por trazer para nós artigos tão bons e pelo amor que dedica aos animais.
Obrigado, Priscila!
De fato, muitos não associam os nossos problemas ao dos animais, o que de certa forma não é nossa culpa, tamanho é o condicionamento em olharmos em uma só direção. Mas quase todos os medicamentos que usamos passam por experimentação animal, agora quanto às bases do comportamento, por termos consciência, sermos mais evoluídos, os parâmetros são bem diferentes. Ao mesmo tempo, o nosso lado instintivo, comum ao animais, levam a alterações de base comum. Qualquer dia, vou escrever sobre estresse, um tema que acho fascinante no mundo animal.
Abraços
Messias
Messias
Muito interessante o artigo. até mesmo o trecho:
“Guma mia como gato, não sabe gastar as unhas nos troncos do recinto, o que nos obriga a anestesiá-la para a correção dessas, sob o risco de adentrarem em seus coxins plantares, como já ocorrera antes.”
Não foi à toa que Leonardo Boff reescreveu a parábola “A águia e a galinha”.
Abraços
Então Terezinha, veja como o sofrimento manifesta-se de forma pouco ou nada perceptível para aqueles que visitam os zoológicos. Daí a necessidade dessa ferramenta educativa ser bem utilizada para levar ao visitantes emoções ligadas ao bem-estar ou mal-estar pelos quais passam os animais. E nós, como profissionais, temos uma grande responsabilidade nesse processo. Até julho, estaremos lançando um livro bem diferente, com fotografias e explicações várias, sobre aspectos curiosos e interessante sobre o mundo dos animais selvagens, uma tentativa de sensibilizar as pessoas para melhor compreendê-los e respeitá-los.
Abraços,
Messias
Messias, estava com você no Museu, há alguns meses,quando passamos em frente à jaula da onça e vi a estagiária anotando os episódios de masturbação. Rapidamente você falou do assunto e de sua preocupação; saindo de lá, retornando para casa, pensei comigo: Gente,era o que faltava,preocupação com a masturbação de um animal. Lendo o texto percebi que na verdade, um pobre animal também sofre por conta do enredo de sua vida. Que glória, pessoas como você, que estuda e trabalha com os animais, possa parar um pouco para pensar e simplesmente tentar ajudar e aliviar o sofrimento deles. Parabéns.
Sorte a minha ser sua irmã torta!
Beijão,
Ester Quintela
Poxa, que bom saber de você, irmã querida. De fato, lembro-me do dia que menciona. Não me surpreende suas considerações por saber do seu sentimento humanitário para com os animais, e, consequentemente, com o próximo. É difícil imaginar que pessoas que são indiferentes aos animais possam ser boas com o seu próximo.
Beijo no coração,
Messias
Antônio Messias,
A veiculação de seu texto é da maior importância para a proteção de nossa fauna. Infelizmente, ainda assistimos muitas pessoas fazendo a apreensão de animais silvestres para usos diversos, inclusive para a apreciação, como é o caso das aves canoras. Os animais precisam viver no meio ambiente e é nosso dever de cidadão envidar esforços para a proteção tanto dos animais quanto do meio ambiente.
Parabéns e um abraço,
Luiz Cruz
Então Luiz, um outro lado da questão é o sofrimento dos animais em seu ambiente natural, onde o progresso e ganância tomam lugar e crescem a cada dia. Sou favorável aos criatórios comerciais de aves, porque possibilitam animais mais adaptados ao convívio humano e diminuem a pressão no ambiente natural. Veja o periquito de mangueira, a cacatua, todos quase domésticos, enquanto a espécie continua a viver livres no ambiente natural australiano. Animais nascidos em cativeiro são propensos a menos estresse adaptativo. Outra questão é que perdem a sua identidade biológica, sendo, de fato, humanizados. É importante compreender que nem todas espécies devem ser dirigidas a isso.
Abraços,
Messias
Messias
É comum encontrar casos como esse na natureza ou em cativeiro? Você tem alguma ideia do que dispara o gatilho para um comportamento como esse? É possível detectar que o animal tenha chegado ao orgasmo ao praticar a masturbação?
Abraços,
Lu
Lu,
Na natureza, impossível, a vigilância permanente é vital, bobeou com algo que fuja à regra “natural”, biológica, é risco certo de morte, nesse caso por algum da espécie, competindo por território. Em cativeiro, estímulos que são a presença humana, seus odores, vozes… A meu ver há uma recompensa, sim. Mistura-se a isso, o estresse da monotonia, inatividade…
Abraços
Messias