Autoria do Prof. Rodolpho Caniato
Era um fim de tarde. Eu e meu pai estávamos sentados na grama, perto da porteira, depois de realizadas todas as tarefas do dia. Nossa casa ficava à beira de uma estrada interna por onde passava gente a pé, com charretes, carroças ou a cavalo. Durante o dia, grandes carroções de carga de lenha, puxadas por três parelhas de mulas passavam em frente de nossa casa. Vinham carregadas de lenha para alimentar os fornos das olarias da região, que ainda tinha grandes manchas de mata Atlântica, que ia sendo derrubada para alguma nova lavoura, embora num ritmo nada parecido ao de hoje. Ainda por lá ninguém usava nem conhecia motosserra. Era tudo no machado. Enquanto olhávamos o raro movimento em frente de casa, passou o Dito Capuxo, filho do velho Capuxo. Vinha trotando, montado em pelo numa égua branca. Diante de nós, e já nosso conhecido, parou e ofereceu a égua por 120 contos.
Entre tantas virtudes dessa égua, a Branquinha, a mansidão era a maior. Mas segundo o vendedor, ela “tava mojano”, isto é, aumentando o úbere em vésperas de ter cria. A barriga era realmente maior que o habitual. Além da barriga grande, era visível o úbere entumecido. A ideia de que pudesse nascer um cavalinho em casa era muito simpática a meu pai e para mim era um verdadeiro sonho. Depois de muito negociar, o Dito deixou a égua por 100 contos de réis e foi embora a pé. A Branquinha ficou imediatamente aos meus cuidados. Durante todos os anos que ficamos no sítio, essa égua foi um animal querido pela utilidade, tanto na montaria quanto na carroça e, sobretudo, pela mansidão. Eu a montava sempre em pelo no trabalho com nosso pequeno rebanho.
Numa viagem que tive que fazer para mais longe, mais de uma hora a cavalo, para levar algo para meu tio Nino, meu pai me aconselhou que usasse um arreio. No meio dessa viagem, ao passar pelo Traviú, uma senhora, a “tia Clementina”, chamou-me a atenção para a barrigueira que estava frouxa. O arreio e eu podíamos cair. Eu logo respondi que não podia apertar a barrigueira porque a Branquinha estava “esperando cavalinho”. Várias décadas depois essa senhora lembrava a admiração que lhe causou aquele encontro. Naqueles tempos, naqueles lugares, esses eram assuntos só “de gente grande”. Era muito estranho que um moleque se preocupasse com uma barriga “prenha”.
A Branquinha nunca deu cavalinho nenhum. A barriga grande era só de capim. Mas eu fazia demonstrações de ordenha, fazendo esguichar leite de suas tetas. As pessoas não acreditavam e me pediam que mostrasse. Durante anos ela manteve o leite sem ter cria. Tanto esse animal nos foi útil e querido que, numa viagem a São Paulo, meu pai procurou e encomendou uma consulta de um veterinário do Instituto Biológico de São Paulo. Depois de examinar a Branquinha, ele receitou um vermífugo. A dose foi tão forte, que a égua passou vários dias, imóvel, com febre, em pé dentro da água do nosso açude. Passada a febre e o efeito do remédio, felizmente para todos nós, a Branquinha voltou à sua normalidade, mas com a mesma barriga de antes.
Nota: Extraído do livro “Corrupira”, ainda inédito, do autor.
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Professor Caniato
Como disse a Celina Telma, viajar por seus textos é realmente uma delícia, pois enveredamo-nos por um caminho cheio de encantamento e ternura. O menino protagonista da história e o homem que a narra são dois artistas talentosos, cada um a seu tempo. Eles se entrelaçam maravilhosamente, de modo que passado e futuro parecem o mesmo tempo, ou seja, o presente. E no meio está a encantadora Belinha a cativar-nos o coração. Não sei quem me encanta mais, se o menino a esperar pelo cavalinho ou o homem a vivenciar suas lembranças.
Um grande abraço,
Lu
Professor Caniato
Viajar pelos seus textos é tão cativante! E fico aqui, imaginando a Branquinha, toda mansa, boa no trabalho e tão cuidadosamente querida. Uma Branquinha de sorte, mas, ao que parece, com um exagerado apetite, a danadinha! E o menino, já tão cuidadoso, e também tão sabido dos “assuntos de gente grande”, correndo o risco de cair ao montá-la, mas não abrindo mão do cuidado com o cavalinho que não veio. Não veio porque não existia. Como por vezes vemos, barrigas aparecem por vários motivos, e o maior sempre é a gula ou, em alguns casos, os vermes e seus estragos. Ao menos a Branquinha teve seus dias de glória e de cuidados com a prenhez, que na verdade não era prenhez, mas que lhe rendeu chamegos do menino atento e talvez incômodos físicos só sanados depois, quando para sorte dela, tiveram a preocupação de buscar a causa da barriga meio estranha.
O leite que saia, talvez a fizesse sentir-se gratificada em agradar ao menino que dela cuidava e sentia-se poderoso em conseguir o que normalmente seria impossível. Os animais e suas maneiras de agradar! Dispensemos as causas, porque o efeito foi o que valeu. Um menino e sua Branquinha que deu leite por muito tempo sem ter tido o cavalinho esperado. Coisas para serem contadas, com certeza! Desses fatos que parecem causos, mas que provado restou, aconteceu!
Novamente, amei! Nunca tive um cavalo, ou vaca, mas com meus animais, algumas boas histórias também ficaram na memória. Tive uma porca (enorme) que adorava tomar banho e deitava-se de barriga para cima para que eu a escovasse, e a bichinha, faceira que só, até dormia! Depois, de uma leva de sete cabras, a menorzinha com as patas atrofiadas já ao nascer, dava-me uma boa ajuda nas paqueras. Colocava-a no carro, no banco da frente, virava o retrovisor para que ela se olhasse e saíamos, bonitas e formosas, a dar nossas voltas e a chamar a atenção. Nunca contei aos que a vinham olhar, que ela ficava daquela forma porque não podia ficar em pé. Acostumou-se a passear e gostava! Ficou comigo por um bom tempo, até que a levei a uma fazenda. A despedida foi sofrida. Ela tentou correr e nessa enroscou-se nos arames da cerca e eu fiquei em pânico. O susto passou. A lembrança da cena, não! Venderam-na. Provavelmente a mataram, não sei… Também era branquinha. Não deu leite, mas me garantiu bons momentos e ajudou e muito nos olhares de belos rapazes que por acaso vinham olhar “cabritinha”. Lembranças… Sempre há as boas, e essas são sempre as que nos lembram que fizemos história usando personagens que, por motivos tão diferentes, fizeram parte do nosso roteiro de vida.