Autoria de Lu Dias Carvalho
Não deixem que suas crianças se casem. Vocês arruinarão a educação delas, e também a infância, se permitirem que se casem tão novas. (trecho da carta escrita por Nujood Ali)
Em 2008, a pequena iemenita Nujood Ali tinha apenas 10 anos. Mas a sua tenra idade não a impediu de buscar, mesmo sozinha, ajuda num tribunal de sua cidade, para se divorciar de um homem com três vezes a sua idade, com quem fora obrigada a se casar por imposição do pai. Fato que ganhou as páginas dos principais jornais em todo o mundo, dando-lhe fama, e que resultou num livro best-seller (co-escrito com o jornalista francês Delphine Minoui) que já foi traduzido em 30 idiomas (com o mesmo título deste texto).
O marido de Nujood Ali obrigou-a a ter relações com ele já na primeira noite, não cumprindo a promessa de que esperaria que ela se tornasse mais velha. Foi um ato de brutal violência. Mas o que espantou a família do marido não foi o fato de ver a pequena ensanguentada, mas a sua reação ao procurar a justiça, pois mulher alguma poderia levantar a cabeça contra o esposo.
Após a violência sofrida, Nujood escapou da tutela do marido e da sogra (talvez por desforra, as sogras são geralmente muito violentas para com as noras, agredindo-as fisicamente) voltando para a casa dos pais. O pai recebeu-a com indignação, alegando que a honra da família exigia que ela cumprisse sua obrigação de esposa. A mãe nada fez. Foi a segunda esposa do pai quem, condoída, deu-lhe dinheiro e a orientou a procurar um tribunal. A pequenina apresentou-se ao juiz, alegando que queria o divórcio. Teve a sorte de contar com a ajuda de uma excelente advogada iemenita, Shada Nasser, especialista feminista dos direitos humanos, cujo envolvimento no caso de Ali recebeu elogios. A história ganhou mundo.
A lei iemenita permite que meninas de qualquer idade possam se casar, mas proíbe o sexo com elas até que sejam consideradas “adequadas para uma relação sexual”, que na gíria brasileira podemos definir como “conversa para boi dormir”, bastando observar o procedimento do pai de Nujood Ali. No tribunal, a advogada Shada Nasser afirmou que o casamento da menina violou a lei, a partir do momento em que ela foi estuprada. Nujood foi categórica ao rejeitar a proposta do juiz, que a aconselhava a retomar a vida junto ao marido estuprador, após um período de três a cinco anos. Em 15 de abril de 2008, o tribunal concedeu-lhe o divórcio.
Nujood Ali viajou para os Estados Unidos, encantando todos com a sua seriedade e segurança. O pai, após ser muito criticado, recebeu a filha com resistência. Ela agora mora com a família e se encontra estudando. Nujood Ali conseguiu romper com uma antiquíssima tradição tribal, ganhando muitos aliados no próprio país e em todo o mundo. Ela é hoje uma bandeira para muitas garotas, obrigadas a se curvarem diante do matadouro em que são colocadas pelos próprios pais.
Alguns meses depois do divórcio de Nujood, Reem, uma garotinha de 12 anos também pediu a separação do marido. Obteve o divórcio. Na Índia, Sunil, quando tinha 11 anos (agora tem 13) ameaçou denunciar os pais à polícia e rachar a cabeça do pai, caso fosse obrigada a se casar com o noivo. Encontra-se estudando. Em Kandahar, um homem apunhalou a jovem esposa de 15 anos por desobedecê-lo. Posteriormente, ela foi morta pelo Talibã.
É lamentável ver crianças lutando por seus direitos. Na nossa mente fica a impressão de que os adultos estão todos adormecidos e omissos, ou voltados para o próprio umbigo.
Trecho retirado do livro de Nujood Ali
A minha cabeça girava sem parar – nunca tinha visto tanta gente junta. No pátio exterior do tribunal, uma multidão movimenta-se em todas as direções: homens de fato e gravata com pastas amareladas dobradas debaixo do braço, outros homens vestidos com a zana, a túnica comprida tradicional do Iémen do Norte, e todas aquelas mulheres a gritar e a chorar tão alto que não se percebe uma palavra. É como se eu fosse invisível. Ninguém me vê. Sou demasiado pequena para todas estas pessoas. Tenho apenas 10 anos, talvez nem tanto. Quem sabe?
As pessoas dizem que os juízes são quem nos ajuda quando precisamos. Por isso, precisava encontrar um juiz e contar-lhe a minha história. Estou tão cansada. Faz muito calor sob o véu, tenho uma tremenda dor de cabeça e estou cheia de vergonha.
Reparo num homem de camisa branca e fato preto a vir na minha direção. Um juiz? Advogado? «Desculpe, senhor, preciso de ver o juiz.» «Por ali, sobe as escadas», responde-me sem sequer me olhar, antes de se perder de novo na multidão. Os meus pés parecem chumbo quando, finalmente, chego ao chão de mármore no topo das escadas.
Vejo um grupo de homens vestidos de uniforme. Se me virem, são capazes de me prender. Uma mocinha que fugiu de casa. A tremer, agarro a ponta do primeiro véu que passa, na esperança de chamar a atenção da mulher por baixo dele. «Quero falar com o juiz.»
Dois olhos enormes com sombra escura olham-me com surpresa.
«De que juiz está à procura?» «Leve–me ao juiz – não me importa qual!»
Ela olha-me, espantada.
«Segue-me», diz por fim. A porta abre-se para uma sala cheia de gente, e ao fundo, por detrás de uma secretária, está um homem de rosto fino e bigode. É o juiz, finalmente. Sento-me, encosto a cabeça no espaldar da cadeira e espero a minha vez.
«E o que posso fazer por você?» Uma voz de homem tira-me do torpor em que caí. É uma voz estranhamente gentil. Esfreguei a cara e reconheci diante de mim o juiz do bigode. A sala está quase vazia.
«Quero o divórcio!»
Fontes de Pesquisas:
National Geographic/ Setembro/2011
Los Angeles Times
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