ÍNDIA – PARADOXO DE LUXO E MISÉRIA

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Autoria de Lu Dias Carvalho

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A Índia tem povoado os nossos sonhos desde a infância, quando estudamos a descoberta casual de nosso país, pois os portugueses estavam atrás dos caminhos para a Índia e não de um novo continente. Tanto é que a palavra índio, que designa os primitivos habitantes do continente americano, também conhecidos por silvícolas, veio da palavra Índia. O nosso intrépido Pedro Álvares Cabral, com tanta sede de aportar no continente indiano em busca de suas especiarias, nem percebeu que pisava em outras terras. E assim herdamos a paixão pela Índia desde a nossa mais tenra idade. Tornamo-nos íntimos e encantados com aquele país.

Na Índia real existem dois países: a Índia da Luz e a Índia da Escuridão. E é sobre essa última que falaremos agora, uma vez que a primeira é conhecida além da conta, a ponto de fazer sombra sobre a segunda.

A Índia da Escuridão é aquela que mergulha no Rio Ganges e de lá sai com a boca cheia de fezes, de palha, vê partes de corpos humanos encharcados, búfalos em decomposição, além de ser banhada por sete diferentes ácidos industriais, e ser coberta por um cheiro de carne em putrefação. É aquela em que as pessoas nas aldeias ainda não sabem quantos anos têm. E em que as liteiras de bambu transportam o cadáver embrulhado num pano de cor de açafrão, cuja cremação é de acordo com o montante de achas de lenha que se pode pagar. No ponto em que as águas do Rio Ganges tocam as margens, nessa Índia, debaixo das plataformas, onde as toras ficam empilhadas, há um grande lamaçal pardo, cheio de guirlandas de jasmim, pedaços de tecidos, pétalas de flores, ossos enegrecidos pelo fogo, cães fuçando por toda parte.

Na Índia da Escuridão vivem os condutores de riquixás, proibidos de circular nos bairros luxuosos de Nova Delhi, na Índia da Luz, para não impressionar os estrangeiros ricos, dando-lhes uma má impressão sobre o país. Esses homens são, na verdade, bestas de carga humana, que mal se aguentam de pé, pois muitos estão vitimados pela tuberculose ou avitaminose. Nessa parte da Índia é possível encontrar uma criação de porcos. Quem o faz é tido como a escória da escória, o nitrato do cocô do cavalo do bandido. Os salários pagos aos funcionários públicos são baixíssimos, de modo que, para seguir a tradição, as famílias endividam-se ao ter que pagar o dote para casar suas filhas. Como resultado, os membros da família da noiva são obrigados a trabalhar para o senhor emprestador como servos, tirando, inclusive, os filhos da escola, para aumentar a mão de obra. Fato que acontece em todas as categorias pobres, ocasionando muitos assassinatos e revolta, quando o dote não é pago. Não se perdoa uma dívida naquele pedaço da Índia.

As meninas não são desejadas na Índia da Escuridão. Para tanto, basta um empurrão num poço aberto, uma lata de querosene e um fósforo ou a venda para um bordel. E a família não tem que se preocupar com dotes. Por isso, a Índia pulula de homens em busca de mulheres. Ficar grávida é uma desonra para a família. Mas é fácil resolver o problema. Bastam apenas uns chutes rápidos na barriga da devassa ou jogar a pequena vítima nas águas do Ganges, que tudo cura e santifica. A Índia da Escuridão busca água na torneira comunitária, enfrentando filas enormes e muita agressão na disputa por um espaço para que possa encher o seu pote. Sem falar nas filas para o uso do banheiro comunitário, pois não há como controlar o intestino, de modo a evitar as péssimas condições do local, onde se deve ficar de cócoras para defecar. E ainda é preciso fazer malabarismo para caminhar pelo pouco espaço, onde ficam os excrementos humanos, que os moradores das favelas deixam no chão de barro do banheiro comunitário ou nas ruas próximas.

Ao fedor encontrado na Índia da Escuridão ajuntam-se centenas de moscas, fazendo revirar o estômago de qualquer um, apesar de as mulheres intocáveis (dalit) receberem algumas miseráveis rúpias dos moradores das favelas, para recolherem montes de fezes, diariamente. Elas nunca dão conta do serviço, pois os corpos dos seres humanos expelem tudo que não desejam, principalmente quando comandados pela diarreia. As mulheres intocáveis ficam de cócoras, posição muito comum àqueles que não podem se assentar em cadeiras ou sofás, enquanto vão varrendo montanhas de excrementos para dentro de seus cestos de vime, forrados com jornal, sem luvas e descalças. Apesar de viverem nas favelas, a grande maioria dos moradores, pertencentes às sub-castas ou castas baixas, sente-se superiores aos intocáveis. Usa para com eles do mesmo desprezo despendido pelas castas ricas. Ali, nem a miséria irmana. Na Índia da Escuridão, a miséria é ainda mais visível durante a luz do dia, quando é possível ver as valas a céu aberto, com seu cheiro forte e podre, os homens magérrimos de boca aberta, deitados nas calçadas, o estupor da embriaguez carregada por muitos, os barracos rotos, desalinhados, com tetos remendados de placa de zinco, os casebres desalinhados de estrutura de papelão, lata e lona, em meio à imundície, à bruma de poluição e ao bodum.

Nessa parte da Índia, o espetáculo da pobreza diz muito mais que os filmes de Bollywood e tem personagens reais, que nunca mudam de papel: as crianças com suas pernas de palito correndo pelas ruas, idosos curvados sob o peso da canequinha em que recebe a esmola, pessoas fazendo suas necessidades fisiológicas nas ruas, aleijados nos mais diferentes estilos, corpos carcomidos pela lepra e por uma infinidade de doenças não tratadas, olhos famintos e mãos cadavéricas tentando penetrar nos carros que param nos semáforos em busca de esmolas. Aí também vivem milhões de crianças, menores de quinze anos, casadas ou viúvas. Vêm ao mundo diariamente dezenas de milhares de crianças, sendo que grande parte delas jamais chegará aos cinco anos de idade ou jamais conhecerá a Índia da Luz. Na Índia da Escuridão, ainda se acredita que o celular corrói o cérebro humano, encolhe os testículos e seca o sêmen. E os shoppings não aceitam a entrada de pobres.

A Índia da Luz já é muito conhecida por todos nós, a ponto de nos embotar a noção de realidade. É a Índia das quatro mais importantes castas, do Taj Mahal, dos marajás, dos palácios e templos, dos grandes comerciantes, do desenvolvimento tecnológico, da bomba atômica, de Ganesha e Lakshmi, das peças trabalhadas em ouro e onde a corrupção vive à solta, enquanto a outra…

Nota: Imagem copiada de http://blogs.odiario.com

Fonte de pesquisa:
O Tigre Branco/ Aravind Adiga
O Sári Vermelho/ Javier Moro

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