Autoria do Prof. Rodolpho Caniato
Nos tempos de minha infância em Copacabana, no Rio de Janeiro, quase só se andava de bonde. Havia poucos automóveis. Muitos deles eram carros das embaixadas e representações diplomáticas próximas. Vê-los de perto, com suas marcas, insígnias ou bandeiras, já despertava em mim a ideia da existência de outros países. Eu tinha paixão em vê-los de perto, saber-lhes a marca e a origem. Eu os conhecia até por suas buzinas.
Os bondes eram o grande meio de transporte de quase todo mundo, quase sempre dirigidos por bigodudos “motorneiros” portugueses, sempre uniformizados de azul marinho e quepe. Toda a cidade e bairros eram servidos por esse eficiente meio de transporte. Esses “elétricos” eram identificados por um número e pelo nome da linha. Uma das primeiras coisas a aprender era, portanto, reconhecer o seu bonde. “12 Ipanema/Túnel Novo”, “13 Ipanema/Túnel Velho”, “5 Leme”, “10 Gávea”, “7 Humaitá” e assim por diante. As viagens nesses coletivos se constituíram para mim e, creio, para muita outra gente, a primeira escola: um método de alfabetização direto e sem dor. O processo foi tão lúdico e eficiente que eu e muitos de meus amigos das calçadas, quando entramos para a escola, já estávamos plenamente alfabetizados. Esses bondes eram todos revestidos em sua parte interna, bem visível para os passageiros, por “reclames”, a propaganda da época.
Os “reclames” eram muito simples e ingênuos, constituídos de uma figura do produto e, ao lado, seu nome e suas virtudes. Visualmente todos conheciam os principais e mais difundidos produtos pela sua imagem: “Emulsão de Scott”, “Xarope São João”, sabonetes “Eucalol” e “Carnaval”, “A Saúde da Mulher”, “Mitigal” e “Regulador Xavier”. Esse com dois números: número “1” para “escassez” e número “2” para “excesso”. O “excesso” e “escassez” ficamos devendo, sem saber o que era aquilo. O antológico “Rhum Creosotado”, como tantos outros muito conhecidos, trazia até aqueles famosos e antológicos versinhos.
A associação entre a imagem do objeto e seu nome sugeria que logo se decifrasse o nome com a identificação das letras e das sílabas. O passo seguinte era ler as propriedades ou virtudes do produto. Isso era possível e quase inevitável, porque se passava muito tempo dentro dos bondes, no trajeto de ida e volta entre a cidade e a casa, tendo bem diante dos olhos aquelas sugestões ou desafios.
Geralmente, naquelas viagens, os adultos, principalmente as mães, acabavam conversando com outras mães, o “passageiro ao lado”, enquanto a gente ficava olhando e decifrando os “reclames”. Essa experiência se repetia com a grande frequência com que se tinha que viajar e de ter diante dos olhos aqueles chamados à atenção. Essa aprendizagem e as aulas de “caligrafia” de minha mãe fizeram com que eu entrasse para o primeiro ano e não para o “Kinder Garten” do Colégio Teuto Brasileiro, na rua Siqueira Campos, a escola mais próxima do “nosso” Atalaia, hotel onde meu pai era gerente.
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Lu
Gostei muito dos comentários de seus leitores.
Agradeço a todos!
Professor Caniato
Depois da internet, as crianças, mesmo nos ônibus, estão presas a seus joguinhos de computador, sem dar conta do que passa em derredor. Nem mesmo a natureza chama-lhes a atenção. Fiz uma viagem a uma cidade histórica e os garotos que se encontravam no grupo não desgrudavam os olhos do celular, enquanto fazíamos o trajeto turístico. Ler o que o senhor escreve sobre os bondes dá uma vontade danada de viver naquela época. O senhor é mesmo um grande mestre.
Abraços,
Moacyr
Esse episódio nos revela o verdadeiro professor. É aquele com vocação para aprender e repassar seus conhecimentos da maneira mais prazerosa possível.
Prof. Caniato,
Viajei no bonde e em sua companhia. Seu texto é precioso. Eu me lembrei do memorialista Pedro Nava que descreveu suas primeiras viagens de bonde indo estudar no Colégio Pedro II. Ele produziu um texto também precioso, pois nos revela os detalhes da “alfabetização” do lugar, o Rio e seus encantamentos.
Seu texto me fez refletir o quanto as transformações podem ser positivas ou negativas. Hoje grande parte viaja com plugs nos ouvidos ou com o celular nas mãos, conectada o tempo todo, mas perdendo oportunidades de “alfabetização” da urbanização, da paisagem, da comunicação visual, do prazer da viagem.
Muito obrigado em compartilhar o texto.
Um grande abraço,
Luiz Cruz
Prof. Caniato
Estou sempre a aprender com seus textos. Eu nunca havia ouvido falar nos “reclames”, nome antigo para “propaganda”. O Regulador Xavier, tanto para “escassez” quanto para “excesso”, deixava as crianças sem entender bulhufas… E nem me fale na bendita Emulsão Scott, que hoje possui até sabor. Ainda bem que inventaram as cápsulas. Quanto aos bondes, é uma pena que esses tenham desaparecido, assim como os trens, para dar lugar à máfia dos ônibus.
Adorei seu texto!
Abraços,
Lu