A ESCORRÊNCIA DA BELA RITINHA

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Autoria de Lu Dias Carvalho

rita

Ritinha chegou à casa de meus avós ainda no frescor de sua adolescência, trazida por meu avô, em uma de suas viagens às origens, no sertão mineiro. Contou-nos ele que a mocinha, filha de um casal de agregados de certo compadre seu, necessitava de tratamentos mais avançados, só encontrados na capital. Apesar de seus 15 anos, ela ainda não menstruara e, por isso, tinha dores de cabeça que a deixavam, durante três a quatro dias, sem poder ver a luz do sol. Enquanto eu, meninota de 14 anos, há dois anos recebendo, mensalmente, tão sanguínea visita, misto de satisfação, se me julgava moça feita com direito a namoricos, e tristeza, por me obrigar a usar certos aparatos tão incômodos para quem ainda gostava de subir nas mangueiras e coqueiros de nosso sítio. Por isso, ora me sentia penalizada com a situação da mocinha, ora a tinha na conta da garota mais feliz do mundo por não ter que lidar com o dilúvio vermelho.

Depois de dois meses de tratamento, o fluxo sanguíneo de Ritinha desceu intempestivo, trazendo muitas cólicas para ela e uma grande alegria para toda a nossa família, como se o “fluxo radiante” dissesse respeito a cada um de nós. Comemoramos as boas novas com uma garrafa de vinho do Porto guardada para uma ocasião especial. Até mesmo meu priminho Nando, ainda nos seus parcos sete aninhos, acompanhou com inusitada alegria o debute de Ritinha no mundo da mulher. E veio a primeira ablução, e outra, e mais outra, de modo que o fluido carmesim de Ritinha passou a correr suavemente pelo canal da vida, sem nenhum embargo. As dores de cabeça escafederam-se e com elas a timidez da ilustre adolescente.

Ainda me lembro nitidamente de como Ritinha chegou à capital. Mirrada, ela mais parecia uma franguinha de asas quebradas. Fazia o possível para que ninguém a notasse. Respondia apenas ao que lhe era perguntado, quando não podia balançar a cabeça como lagartixa, se a resposta não fosse “sim” ou “não”. Porém, após a primeira regra, a menina-mulher desabrochou junto com seus birrentos ovários. Virou outra pessoa. Crescia e engordava a olhos vistos e se tornava falante e esperta. Foi quando todos na família perceberam que ela tinha uma linguagem bem peculiar.

Ritinha passou a ser o centro de atenção da casa. Ficávamos em alerta, sempre que ela abria a boca, pois, em cada frase proferida, pelo menos duas palavras exigiam maior trabalho mental para a sua compreensão. Ela transformava substantivos masculinos em femininos, verbos irregulares em regulares, resumindo todos eles em duas pessoas: primeira do singular e terceira também do singular. Só usava, mal e mal, o presente e o pretérito perfeito do modo indicativo. O plural inexistia na língua de Ritinha. As palavras traziam a mesma escassez impressa na sua vida de adolescente incompleta, sem fluxo sanguíneo, até chegar ali. O mais comovente é que ninguém ousava corrigir a mocinha, com medo de quebrar o encantamento que sua linguagem causava em todos nós, os ditos civilizados. Tampouco alguém ria. Ficávamos apenas ansiosos pela próxima palavra ou frase. Encantada, cheguei a criar um dicionário com as palavras usadas pela gentil e ingênua mocinha.

Seis meses após a chegada da doce Ritinha, iniciou-se o ano escolar. Sem que soubéssemos, minha avó matriculou nossa maravilhosa estrangeirinha num grupo escolar próximo à nossa casa. Aos poucos, ela foi perdendo a magia e o encantamento, até se transformar em um membro dos ditos civilizados. Aí então, Ritinha virou gente comum para sempre. Que enfado!

Eu nunca consegui perdoar minha avó por tamanha maldade.

Nota: Retrato de Madalena Doni/ c. 1506, Rafael Sanzio

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