Autoria de Lu Dias Carvalho
A imagem de Cristo com seus cabelos longos e loiros, pele branca e grandes olhos azuis, mesmo sendo um galileu, está tão enraizada na mente dos cristãos que a grande maioria deles se esquece de que nada se encontra na Bíblia que se refira à aparência física de Jesus. Os Evangelhos não o descrevem. Segundo Isaías, é possível dizer que Cristo era feio, mas o Salmo 45 refere-se a ele como “a mais bela das crianças dos homens”. Na arte vista nas catacumbas Cristo era representado por figuras simbólicas: o monograma formado pelas duas primeiras letras de seu nome grego (Kristos), o peixe, o cordeiro, o pescador de almas, o Bom Pastor.
As imagens conhecidas hoje tratam, na verdade, de meras criações dos artistas do passado que tiveram como fonte unicamente a imaginação. Apesar disso, qualquer mudança nas imagens tradicionais leva muitos religiosos a qualificar o artista como ímpio e profanador. Como veem os leitores, é nas pinturas bíblicas que residem os mais arraigados preconceitos. Não se aceita que outros artistas possam ter uma visão diferenciada da que tiveram os do passado, num impiedoso conservadorismo. O Prof. E. H. sempre afirmava que “Não existe maior obstáculo à fruição de grandes obras de arte do que a nossa relutância em descartar hábitos e preconceitos”.
O grande mestre italiano Caravaggio (1571–1610) foi vítima de uma dessas formas de preconceito que ocasionou, na sua época, um grande escândalo, quando recebeu a encomenda de um quadro de São Mateus — um dos quatro evangelistas — que deveria ornamentar o altar de uma igreja romana. Na sua obra o santo deveria ser representado enquanto escrevia o Evangelho. O objetivo do quadro era ensinar aos fiéis que os Evangelhos eram a palavra de Deus e, para que a composição ganhasse maior veracidade, um anjo deveria também estar representado na obra, como fonte de inspiração para a escrita do evangelista.
Caravaggio representou São Mateus como se fosse um velho e pobre trabalhador (ilustração à direita), já com a cabeça calva, a testa enrugada, denotando preocupação e dificuldade na escrita, com os pés descalços e sujos de terra, ou seja, em sua real condição humana, inclusive sem o uso da auréola que denotaria sua santidade. O santo escreve com o caderno escorado sobre a perna esquerda na falta de uma mesa. A seu lado, o artista pintou um anjo que docemente conduz sua mão, ajudando-o a contornar a dificuldade encontrada na transposição do Evangelho para o papel, tarefa que lhe parece árdua. Observem que o anjo não desce do céu, mas se encontra humildemente no chão, recostado ao santo, numa atitude bem infantil.
Após a entrega da obra encomendada, Caravaggio foi duramente criticado por autoridades eclesiásticas e pessoas de alto poder aquisitivo que viram na sua pintura uma total falta de respeito para com a Igreja e para com o evangelista. A obra foi imediatamente devolvida ao pintor, cabendo-lhe a incumbência de pintar outra com a mesma temática. O artista prontamente obedeceu, pois precisava do dinheiro.
Na segunda pintura de Caravaggio, São Mateus encontra-se bem vestido, embora descalço, empunhando com facilidade a pena e um pouco surpreso com o anjo que vem do alto e que não o toca, como se interrogasse sobre qual seria o motivo de ele se encontrar ali. Agora ele escreve sobre uma enorme mesa, tendo a perna esquerda recostada num banco. Sua cabeça está cingida por um halo para demonstrar a sua divindade. Enquanto o anjo do primeiro quadro parece ensinar o santo a escrever, o do segundo parece apenas lhe dar explicações sobre os assuntos teológicos, enumerando-os com os dedos. A nova pintura foi plenamente aceita.
A humildade e a compaixão estão bem mais visíveis na primeira composição de Caravaggio, enquanto na segunda o que se destaca é a surpresa com a chegada do anjo, como se a sua presença fosse desnecessária. Portanto, o primeiro quadro suplanta o segundo em sensibilidade, energia, amor e verdade. Enquanto na primeira obra o belo alia-se à simplicidade e à pobreza do retratado, na segunda o belo diz respeito à sua condição de homem bem vestido e versado nas escrituras.
Exercícios
1. Por que é nas representações bíblicas que residem os mais arraigados preconceitos?
2. Muitos artistas representam Cristo de acordo com a sua própria raça (negra, asiática, indígena, etc). O que você pensa sobre isso?
3. Qual dos dois quadros mais o emociona? Por quê?
Fontes de pesquisa:
A História da Arte/ E. H. Gombrich
Cristo na Arte/ Manuel Jover
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