Autoria de Lu Dias Carvalho
É lamentável perceber que os poderosos são os mesmos em todos os tempos, como se a maldição do poder estivesse entranhada na alma humana, sem nenhuma possibilidade de cura. Observe o querido leitor que, para os virtuosos da Igreja, a pintura de Botticelli tinha por finalidade a disseminação da fé, enquanto para os nobres e os influentes burgueses, ela representava o poder, o domínio e o privilégio. Mas que tipo de poder? Agradar aos mais poderosos e a possibilidade, ainda que ilusória, de barganharem com Deus. Pois sabiam os tais senhores que eles levavam uma vida descomedida, guiada pela usura e pelos prazeres da carne, sem se importar com o povo. Ao terem que deixar a vida terrena, o fardo a carregar seria extremamente pesado. Portanto, nada melhor do que amenizá-lo antes da partida sem volta. E um quadro votivo (ofertado em cumprimento de voto ou promessa) haveria de fazer com que Deus se enternecesse e abrandasse o julgamento do patrono da oferenda.
É interessante notar que, mesmo nas obras predominantemente religiosas, lá estavam eles, os votivos, a lembrarem ao Senhor o quanto foram piedosos e devotados à fé, durante a vida terrena, portanto, deveriam ser recebidos no “paraíso” de braços abertos, em razão de tamanha magnanimidade. Era um tipo de barganha.
Na Adoração dos Reis Magos, de Sandro Botticelli, podemos ver o “suborno” explicitado com bastante clareza. Na sua pintura, o artista reproduz o rosto de vários membros da família Médici e seus amigos. Até mesmo o responsável pela encomenda exigiu que também fosse retratado. E, se Deus se esquecesse da fisionomia de um deles? Melhor seria se acautelar, pois um homem prevenido vale por dois. O artista também é retratado na pintura. Observem:
- Guaspare di Zanobi, o aristocrata, que encomendou a tela, aparece no grupo da direita, com o olhar fixo no observador, segurando com a mão enluvada de branco a borda de sua veste azul e dourada.
- Os Médici são representados nas vestes dos Reis Magos, os mais importantes depois do Menino Jesus e seus pais.
- O rei, que toca o pé do Menino no colo da Virgem, traz as feições de Cosimo, o Velho.
- Os dois homens, ajoelhados no centro e à direita, trazem a fisionomia de Piero, o Gotoso e de Giovanni, seu irmão.
- Lorenzo, o Magnífico, pensativo, está trajando preto e vermelho, no grupo da direita.
- Giuliano, irmão mais novo de Lorenzo, encontra-se empertigado na extrema esquerda da pintura, armado de uma espada.
- O próprio pintor Botticelli está representado no grupo da direita, envolto por um manto de cor dourada, observando o espectador.
- Os demais personagens, embora representem a nobreza e os grandes burgueses, apoiadores da família dominante, são de difícil reconhecimento.
Nesta pintura é possível perceber a profunda relação que existia entre Sandro Botticelli e os poderosos da família Médici. A reverência era tão grande que Cosimo, o Velho, e seus filhos Piero e Giovanni, são retratados como os Reis Magos. Tanto ontem quanto hoje, tudo continua igual. Nossa espécie não tem mesmo jeito.
Ficha técnica:
Data: 1475
Técnica: óleo sobre tela
Dimensões: 111 x 134 cm
Localização: Galleria degli Uffizi, Florença, Itália
Fonte de Pesquisa:
Grandes Mestres/ Abril Coleções
1000 obras primas…/ Könemann
A Arte em Detalhes/ Robert Cumming
A História da Arte/ Sextante
Views: 28