Autoria do Prof. Rodolpho Caniato
Corria o ano de 1942. Eu morava no sítio dos Caniato, no bairro dos Fernandes, em Corrupira. Vez por outra alguém trazia da cidade notícias sobre a II Guerra Mundial. E uma abalou a todos. Era a notícia sobre o afundamento de navios brasileiros nas costas do Brasil. Submarinos alemães haviam torpedeado e afundado vários navios entre os quais o “Baependi”. Foram centenas de mortos, além da perda total das embarcações. O presidente Getúlio Vargas, que até então nutria certa simpatia pelo “Eixo”, foi levado, também pela pressão dos EEUU, a definir-se e a reagir àquele ato de guerra da Alemanha de Hitler. Havia também um clamor popular nacional de reação à ostensiva hostilidade e afronta à soberania do Brasil, que logo declararia guerra ao “Eixo”. Em muitos lugares do país ocorreram manifestações e campanhas patrióticas de apoio à sua entrada na Guerra, ao lado dos “aliados”. Chegou-se a fazer campanha de coleta de metais para a fabricação de armamentos. Eram as “montanhas da Vitória”. Também no nosso bairro chegou a notícia de um grande evento patriótico que seria um misto de manifestação político-patriótica e festa.
O ponto alto da festa seria um grande rodeio, cuja maior atração seria um burro (mulo) que se tornara famoso pela sua indomabilidade em rodeios anteriores. Nenhum peão tinha conseguido ficar por mais de poucos segundos no lombo daquela “fera” chamada “Ruano”, por sua cor (ruão, “baio” com crina muito mais clara). Era uma verdadeira lenda. O “clima” de patriotismo e o burro “Ruano” estavam eletrizando as expectativas em relação ao rodeio patriótico. Um famoso peão de Jundiaí, o Zico Peão, tido como o “maior” da região, aceitara o desafio de montar o “Ruano”. Para quem morava, como nós, em Corrupira, seria preciso tomar o trem de Louveira até Rocinha. Primeiro teríamos que fazer a caminhada de quatro quilômetros a pé, pelo “estradão” até a estação de Louveira. De lá pegaríamos o trenzinho “cata caipira”, o “misto”, para Rocinha. Nessa caminhada e viagem, com meus treze anos, acompanhei meu tio Joãozinho que também tinha “ares” e pretensões de “peão”. Da estação de Rocinha ainda seria necessária uma grande caminhada morro acima até o local onde teria lugar o grande acontecimento.
Quando lá chegamos já havia uma multidão ao redor do grande cercado de tábuas, a “arena” onde aconteceria o rodeio. Ao lado havia outro cercado menor, onde estavam confinados os animais, cavalos, mulos e bestas que seriam montados. Depois dos discursos patrióticos apresentaram-se as equipes de “laçadores”, “orelhadores” (peões encarregados de imobilizar aqueles animais xucros até que lhes fosse aplicado o “solfete”, (uma cinta com alça, único “arreio” no animal e “seguração” do peão). Depois do animal laçado, torciam-lhe as orelhas até que, creio que de tanta dor, bufando e resfolegando, ficasse imóvel. Outro peão aplicava um “cachimbo” (um pau roliço munido numa das extremidades, de um laço de couro cru trançado) no focinho do burro, que ia sendo torcido até que, quase afogado, se imobilizasse. Só depois de o peão estar montado, a equipe da “seguração” soltava, orelhas e o beiço do animal. Aos pulos, coices e corcoveando sem parar, aqueles animais xucros quase sempre conseguiam se livrar de suas montarias. Quando um peão aguentava um pouco mais a “pulação”, era ovacionado pela multidão. Todos os animais trazidos já haviam sido montados. Era a hora do grande final em que se defrontariam o Ruano, “invicto” nos rodeios, e Zico Peão, o desafiador e herói do espetáculo. Como aquele seria o final e apoteose da festa, antes do duelo falou a “autoridade” e a banda tocou mais um dobrado. Foram necessários vários laçadores, em diferentes direções para que os “orelhadores” conseguissem botar as mãos nas orelhas e no focinho do “Ruano”.
O burro era mesmo “endiabrado”. Só depois de muito esforço conseguiram segurar aquele bicho brabo, aplicar e garrotear o “cachimbo”. Aplicado o torniquete no focinho, aquela “fera” muar rosnava e estrebuchava aos arrancos. Finalmente a equipe da “seguração” conseguiu aplicar o solfete no “Ruano”. A multidão silenciou. Só se ouvia o rosnar do burro imobilizado quase até a asfixia. Sob palmas, entra Zico Peão para montá-lo. Ele segura o ”solfete”, joga o chapéu para o alto e grita… “larga”! Os pulos daquele animal tinham mesmo um ímpeto e uma fúria como nenhum dos anteriores. A multidão começou a aplaudir e a gritar o nome do herói. De repente, o burro, parando de pular, sai como uma flecha em direção ao tablado que limitava o espaço do rodeio. Sem corcovear, mas galopando a toda brida, o burro se atira de cabeça contra as tábuas do cercado, atravessando-o e deixando o Zico Peão desfalecido pela peitada contra a tábua superior do cercado. Desmaiado, muito ferido, mas vivo, Zico Peão foi levado pela ambulância de plantão, sem poder ouvir a ovação que recebeu pela sua bravura em resistir no lombo do “Ruano”. O animal, com certeza muito assustado e ferido, sumiu no poeirão da tarde.
A multidão, sem o “Ruano” e sem o herói “Zico Peão”, finda a festa, se dispersou. Era o epílogo inesperado do grande evento: um verdadeiro anticlímax pelo “empate” dos dois valentes, pela ausência dos dois principais protagonistas daquela memorável tarde na cidade de Rocinha. Nesse mesmo ano, o Brasil entraria na Segunda Guerra Mundial.
Nota: Extraído do livro “Corrupira”, ainda inédito, do autor.
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