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A HORA DOS RUMINANTES (FIM) – BOIADA E PARTIDA

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Pode ser que alguém dê um boi, para não entrar numa briga, e uma boiada para não sair, mas, quando a boiada extrapola os limites da racionalidade humana, aí a vaca vai pro brejo. E foi exatamente isso que aconteceu em Manarairema. Vamos aos fatos.

A população do povoado não levou muito a sério o fato de um boizinho aparecer ali, outro acolá, mais outro no quintal da casa e assim por diante. Os animais poderiam ter se soltado do campo de algum fazendeiro e ali estavam à procura de pasto novo. Além de tudo eram calmos, tranquilos e confiantes. Quando se cansassem iriam embora.

Mas, caro leitor, não foi bem isso o que ocorreu, para desespero dos manarairenses. Dupliquem a quantidade da cachorrada citada no último acontecimento e terá a real dimensão da quantidade dos ruminantes. E não seria nada mal, se acrescentassem mais um terço ao rol dos já imaginados. Todo o povoado era deles, assim como o horizonte. Todos os outros bichos estavam mortos por falta de espaço, ou puseram os pés no mundo, buscando ar para respirar. Os bois estavam gordos, luzidios e indiferentes. Só havia perigo quando brigavam entre si por mais espaço, pois tudo estremecia e as cercas dos quintais e paredes de adobe iam ao chão.

Contudo, um medo danoso tomava contava da gente do povoado: o estouro da boiada. Sabia que, se isso acontecesse nada ficaria de pé. À noite, quando todos os gatos são pardos, o pavor tomava conta da respiração das pessoas. Nem mesmo as orações, que varavam as cumeeiras das casas e se misturavam ao mugido dos bovídeos, traziam alento. Todos os habitantes estavam reclusos pela falta de espaço, até mesmo para pôr um pé, apenas, fora de casa. E pior, não havia sinal de que os animais fossem embora, fato que estava deixando o povoado numa grande inquietude. Aliado ao desânimo dos habitantes, tudo em volta havia se transformado num mar de urina e excremento, ocasionando dores de cabeça e vômitos. Manarairema morria aos poucos, atolada na merda.

Certa noite, houve um comportamento atípico dos bois, que pareciam espeloteados, berrando, arremetendo o rabo e cavando o chão. Os moradores não deram importância àquilo. Já não tinham mais uma réstia de esperança. Nada mais poderia fazer diferença. A morte seria o fim de tudo. E que ela chegasse. O melhor a fazer seria morrer dormindo.

E certas pessoas mal a madrugada chega e o corpo já pede para ficar na posição vertical. E assim reagiram certos moradores, mesmo sabendo que nada tinham para fazer. Nessa hora, os ouvidos se põem vigilantes, pescando tudo em derredor. E foram elas as primeiras a descobrirem que os ruminantes tinham partido. A notícia, apesar da madrugada, espalhou-se como palha seca ao vento. Era “gente chamando gente, sacudindo gente, arrastando gente para ver. Gente rindo, gente pulando, gente se vestindo às pressas, gente esmurrando portas, gente correndo pelas ruas e gente caindo no mar de urina e esterco”.

O dia seguinte amanheceu num lenga-lenga de chuva, que não dava para lavar a obra deixada pelos bois. À tarde, o sol deu as caras. Geminiano apareceu com a carroça carregada de utensílios. Serrote mal conseguia puxá-la. Diante da indiferença das pessoas gritou:

Na tapera tem muita coisa boa. É só pegar. Os sujeitos foram embora. Deram no pé de madrugada.

Diante da incredulidade das pessoas ele arrematou:

Juro por Deus. Quero ficar cego se estou mentindo. De viventes só ficaram as penosas e os porcos.

Não houve interesse pelo butim. À população de Maneirama era suficiente o consolo de ter se livrado daqueles estranhos intrusos. Fim!

Nota
O leitor deve estar insatisfeito com o final da história. Mas foi assim que aconteceram os fatos. Portanto, não há como dizer exatamente quem eram os homens misteriosos, porque escolheram o povoado de Manarairema, porque travaram amizade com Amâncio, porque enviaram as pestes (bois e cachorros), porque escravizaram Geminiano e porque queriam tanta areia.

Na verdade, José J. Veiga deixou a sua obra aberta, para que o leitor se deleitasse com as dúvidas. É incrível a sua capacidade de transformar sua obra num livro interativo, já naquela época.

Os leitores, que me acompanharam nesta saga, deram respostas a todas as indagações do autor e, paralelamente, construíram histórias brilhantes, com as mais variadas interpretações. De modo que o livro de José J. Veiga foi ricamente reescrito. Ele deve estar muito feliz, lá do outro lado do rio…

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A HORA DOS RUMINANTES (6) – INVASÃO DOS CÃES

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Se alguém ainda tinha a doce ilusão de que os forasteiros eram pessoas de bem, caiu do cavalo, quando se deparou com um marzão de cachorros, a perder de vista, espalhados por toda o povoado e seus arredores.

Uns três dias antes do ocorrido, o povo de Manarairema captou certa cachorrice no ar. Mesmo de bem longe do acampamento, notou que os bichos estavam esfogueteados e abespinhadiços. Alguns achavam que os animais estavam afaimados e outros que se preparavam para uma caçada.

Segundo Gemi, o melhor conhecedor da situação do lado de lá do rio, aquilo não era cachorros, mas capetas de quatro patas, vindos diretamente do inferno, enviados por Belzebu. Ao ser indagado sobre o número deles, explicou que dúzia e meia morria por dia, o que já dava para se ter uma noção da quantidade da cachorrada dos estranhos.

De repente, não mais que de repente, o cachorrismo dos homens misteriosos se fez presente em todo o povoado. Eles não mais deixavam dúvidas na cabeça dos ingênuos que, até então, acreditavam que vieram trabalhar para o progresso do povoado. Os cachorros alucinados apareciam do nada, enchendo ruas, becos, buracos, calçadas, terreiros, muros, telhados e descampados, obrigando as pessoas a ficarem presas em casa. Até as necessidades fisiológicas a céu aberto, foram suspensas. Ninguém queria uma língua de lixa lambendo certas áreas pudendas.

Manarairema virou uma amotinação de pêlos, dentes, rabos, urina e cocô. Era uma inhaca só. E ainda tinha que conviver com o rosnado, uivos, choramingos e o raspa-raspa canino. Todas as aves domésticas foram estraçalhadas num piscar de olhos e os gatos sumiram o lugar. Não havia tiro de espingarda, água quente ou pedrada que os enxotasse. Se cinco saíam de perto de uma janela, outros dez tomavam o lugar. E pior, ninguém sabia o que buscavam.

Os habitantes do povoado, lacrados em suas casas, sem que um fiapo de ar entrasse pelas janelas ou portas e ainda com medo de que lhes caíssem os bichos sobre as cabeças, eram obrigados a engolir a fumaça do fogão à lenha, sob os ganidos incessantes dos cães. Ali, nada podiam fazer a não rezar por um milagre.

Depois de passada a laúza, houve gente contando que os bichos entraram em sua casa, sem que soubesse por onde passaram. Uns saíam arrastando chinelos e roupas pelos dentes, enquanto outros descarregavam a bexiga ou os intestinos em qualquer lugar da casa. A seguir saíam abanando o rabo, como se nada tivessem feito.

Como o que não tem remédio, remediado está, assim que a população percebeu que os animais não mordiam ninguém e tampouco estavam com pressa de ir embora, começaram a deixar suas casas para travar relacionamento com os cães, que passaram a ser aceitos como se fossem antigos moradores da cidade, recebendo toda sorte de mimos, causando humilhação nos legítimos cachorros do povoado, que passaram a ser tratados como cães de segunda classe.

Contudo, certa tarde, no principiar do entardecer, Manarairema teve uma súbita surpresa: os amigos caninos escafederam-se, sem despedidas ou ranger de dentes, como se guiados pela flauta de Hamelin, em direção ao acampamento dos forasteiros, deixando para trás um mar, ainda maior, de cacas e um bodum de revirar os bofes. Os cachorros foram, literalmente, soltos na gente do povoado e, depois, chamados de volta. Ninguém conseguia intrujar o motivo de tanta humilhação. Afinal de contas, o que queriam aqueles homens?

Apesar de tudo, Amâncio ainda teve o desplante de rosnar na porta de sua venda:

Eu estou com os homens, o resto é muxingo de gongomé macho. Quem não gostar, que tire a ceroula e pise em cima.

 A seguir o capítulo final.

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A HORA DOS RUMINANTES (5) – RETORNO DE AMÂNCIO

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Um rumorejo espalha-se por todo o povoado de Manarairema, em razão da visita de Amâncio aos homens misteriosos. A demora é vista como um sinal de bons presságios, pois “conversa demorada é briga adiada”. Sem falar que “para saber se numa moita tem onça é preciso chegar perto”. E de longe, corre-se o risco de confundir veado com jaguar.

O carroceiro Geminiano transformara-se num enigma para a gente do povoado. Muitas pessoas estavam de acordo que ele “andava escondendo leite”, de modo que poderia dizer com segurança, se se tratava de onça ou veado. Outros o defendiam, dizendo que os forasteiros não iriam lhe contar nada.

Amâncio surgia como a salvação da lavoura. Era muito esperto para ser posto para trás. Além disso, não era funcionário dos intrusos. Enquanto a turma, reunida na venda do audaz pesquisador, discutia o assunto, um menino, que chegara na garupa de uma besta de carga, contou que vira os homens jogando peteca com o vendeiro. A notícia gerou um reboliço geral. Aquilo era invencionice do moleque que não tinha o que falar. Pois, se fosse verdade, estaria “tudo confuso, trançado, sobrando pontas”.

Com o sol já a pino, Amâncio entra na venda, trancado no seu antigo palavrório. Parece querer martirizar as pessoas, botando mais curiosidade nelas. Ao ser indagado sobre a ida ao acampamento, apenas responde “Fui e voltei. Não fui mordido. Proseamos, brincamos. Gente aberta, sem pé-atrás”. E tratou logo de botar outro rumo na conversa. Ao ser atochado por Manuel, acrescentou: “Compadre, eu vou lhe dizer uma coisa. Todo mundo estava comendo gambá errado. Se todo mundo aqui fosse como eles, Manarairema seria um pedaço de céu, ou uma nação estrangeira.”.

Tal como as gentes pensavam de Geminiano, também passaram a pensar de Amâncio. Ele estaria escondendo o leite, ou querendo ser bajulado pelos intrusos. O melhor seria dar o caso por encerrado e não tentar tirar dele nenhuma bisbilhotice. Seria chover no molhado, e ainda deixá-lo se sentido o tal. O caso estava morto morrido!

Quando o sol já ia dando de banda, a carroça de Geminiano estacionou na porta do vendeiro. Dela apearam três dos intrusos, muito bem vestidos, sendo recebidos com muito aprazimento pelo vendeiro. Logo após, a porta foi fechada. E o mais estranho é que essas visitas, de tanto se repetirem, acabaram caindo na rotina. Se havia algum freguês na venda, ele saía assim que os homens chegavam. Ninguém mais se preocupava com o que acontecia ali. Tudo já fazia parte da usança do povoado.

Um fato incomum começou a mexer com o ramerrão de Manarairema. O carroceiro Geminiano, antes tão calado e confiante, começou a rezingar. A princípio, suas lamúrias foram vistas como parte de se cansaço num serviço que nunca tinha fim. Até seu bom burro Serrote andava “desespiritado”. O caldo entornou, quando a carroça quebrou e metade da areia vazou para o chão. Desesperado, Geminiano deitou a soluçar como criança. Suas lágrimas misturavam-se a seus rogos: “O que é que eu faço, meu pai. Como vou sair desta prisão? Não aguento mais. O meu remédio é um tiro na cabeça ou um copo de veneno”.

O carroceiro, pranteando, consertou a carroça, ajuntou a areia e partiu para o acampamento com seu fiel amigo Serrote. Seus amigos ficaram para trás, tentando decifrar a causa da tristeza e revolta de Geminiano. Um deles falou condoído: “Tempo de escravo já acabou.” O outro completou: “Por que não manda os homens pentear macaco?”. Mas Dildério, sempre comedido, arrematou “Cada um sabe, onde morde o borrachudo.”.

O fato é que não mais existia o Geminiano de antes. Alguma coisa o impedia de largar aquele serviço. E, se assim fosse, estaria comendo o pão que o diabo amassou com o rabo. Mas, “se ele entrou no rio com os próprios pés, por que não saía também com os próprios pés, se não estava chumbado?”.

Passa o tempo e os fatos se repetem: Geminiano carreteando areia, cada vez mais deprimido e taciturno. Amâncio recebendo os homens do acampamento e fechando a porta, tão rebarbativo como as suas visitas. E a gente do povoado sem saber qual era a incumbência dos visitantes em Manarairema.

Peço a meus nobres colaboradores que me ajudem a desvendar as seguintes pendências:

1. O que aconteceu, para aproximar o vendeiro Amâncio dos homens misteriosos, a ponto de se tornarem amigos?

2. Qual é a causa da depressão de Gemininiano?

3. A que fim se destina a areia?

A seguir o capítulo 6…

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A HORA DOS RUMINANTES (4) – LEITORES DETETIVES

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Quando os homens misteriosos e intrigantes armaram barraca em Manarairema, tratei de pedir ajuda aos gentis leitores, para que trouxessem luz àquela situação, pois nenhum habitante do povoado, por mais que matutasse, tivera ainda uma resposta, mas, apesar da boa vontade de todos, o caso ainda se encontra insolúvel, embora muitas pistas tenham sido dadas, o que já é meio caminho andado. Vejamos as possibilidades.

O nosso consagrado perito Manoel Rodrigues apresentou três hipóteses: a) seriam os ditos alienígenas; b) compradores de terras petrolíferas; c) roteiristas de filme. Ficou de estudar o caso com mais acuidade, mas, em função de outros compromissos, não foi possível trazer-nos outros dados.

A aclamada delegada Rosali Amaral levantou a possibilidade de que tais sujeitos sejam militares que se instalaram no povoado, para estudar a gente da região com seus costumes e implantar ali uma reforma agrária, entre aspas. Pois, o motivo real dessa invasão, aparentemente inofensiva, está guardado a sete chaves pelos forasteiros. Há naquelas terras um tesouro escondido por antigos desbravadores, desconhecido pela população local. As escavações feitas, na verdade, têm como único objetivo encontra-lo. De modo que muita água irá correr debaixo da ponte, digo, no acampamento.

O advogado criminalista, Gutierritos, sentiu-se intrigado com o fato de os estranhos permanecerem distante da população local. Segundo ele, tais elementos irão molestar os habitantes do pacato e feliz povoado. A desconfiança tomará conta dos habitantes locais, deixando-os nervosos. Daí os boatos, o mudar dos costumes, a expectativa, tudo envolto em clima de mistério. O fato é gravíssimo. O nobre criminalista também com as forças do além, pedindo ajuda a The Ghost, um espírito desencarnado seu velho conhecido. Num caso desses, qualquer ajuda é bem vinda.

O perito Moacyr Praxedes dá ao fato uma visão mais romanesca. Acha que se trata de um circo, que chegou ao povoado e, como a faina para armá-lo é grande e demanda tempo, ninguém ainda poderá deixar o local. De modo que o povo de Manairarema está fazendo tempestade em copo d`água.

Aninha Timotheo, outra autoridade no caso, alega que a cidade possui abundância de metais. O acampamento instalou-se ali, para divisão de trabalho numa espécie de garimpo. Os forasteiros, sonhadores, instalaram-se no local, de boca fechada, para que a notícia da riqueza não se espalhasse. Quanto menos pessoas fizerem o serviço, maior é o lucro. Logo, bico fechado!

Maria Tereza Allagio, uma sapiência em tecnologia de ponta, apresenta a versão de que os invasores desceram de pára-quedas, numa operação militar, de madrugada, monitorados pelo GPS. O local foi escolhido por ser pouco povoado. Baseados nos mapas da NASA, os militares estão à procura de fragmentos de um satélite secreto, em missão fracassada, levando objetos altamente tóxicos e radioativos.

O nosso pesquisador de OVNIS, Manoel Matos, trabalha com a possibilidade de que os visitantes são extraterrestres de outro sistema solar. Como o planeta deles vai ser engolido por um buraco negro, estão procurando outro lugar, para viverem. Eles conseguem assumir o aspecto físico de qualquer outro ser. E são bem piores do que os terráqueos.

A auxiliar da delegada, Sinara Santos, diz que se trata de um grupo terrorista, que está enriquecendo urânio ali, para construir uma bomba atômica e por isso não quer ser visto ou incomodado.

E, por último, a famosa pesquisadora, Terezinha Pereira, diz não ter chegado a um parecer final. Prefere rever as pistas dos colegas para chegar a um parecer mais conclusivo.

Vamos aos fatos:

Antes de concluirmos o processo sobre o motivo da vinda dos misteriosos visitantes a Maneirama, deparamos com dois fatos novos: 1- a decisão de Geminiano de trabalhar para os invasores; 2- Amâncio decide visitá-los, custe o que custar. O fato é que tivemos que nos ater a novos pareceres do inquérito. Vejamos:

Gutierritos louva o fato de que Amâncio esteja buscando uma explicação sobre o que fazem os sibilinos visiteiros nas cercanias do povoado, mas acha que o vendeiro vai ficar só no papo furado e nada vai fazer. Talvez ele volte contando vantagens, mas sem sequer entrar no território inimigo.

Por sua vez, o senhor Moacyr continua insistindo na história do circo. Diz que o Amâncio será barrado pelo vigia do acampamento com a explicação de que, por enquanto, não será permitida a entrada de ninguém, para não estragar a surpresa, que está sendo preparada para o povo do vilarejo. Assim, o vendeiro voltará de mãos abanando e contará o ocorrido para todos.

A senhorita Sinara alega que a valentia de Amâncio vai acabar logo que ele vir os homens armados com metralhadoras, cercando o local. Irá voltar com as calças borradas.

Rosali Amaral acredita que Amâncio, um cabra por demais avarento e legítimo representante do poder econômico do lugarejo e, sendo sua venda um local, onde o fluxo de negócios é mais acentuado, quer ser o primeiro a usufruir de algum benefício, que porventura aqueles forasteiros possam trazer. Por isso, resolveu, na valentia, visitar os desconhecidos e, assim, desvendar, de uma vez por todas, o mistério; ver de perto o que se passa do outro lado do rio, e saber qual o motivo da mudança de atitude do carroceiro Geminiano, que agora, de bico calado, passou a prestar serviços de carreteiro para “os homens”, na maior subserviência.

Portanto, amigos, tudo continua como dantes no quartel de Abrantes. Não sabemos por que aqueles homens estranhos foram parar em Manairarema, nem o porquê de Geminiano ter aceitado trabalhar para os tais e tampouco se o Amâncio terá acesso a eles.

Só nos resta aguardar!

A seguir o capítulo 5

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A HORA DOS RUMINANTES (3) – AMÂNCIO E OS PEBAS

Autoria de Lu Dias Carvalho

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No capítulo passado, em que narrei a chegada dos sibilinos visiteiros ao povoado de Manarairema, vimos que houve um pacto entre os moradores, para que dissimulassem a curiosidade acerca dos intrusos. Pacto esse que não logrou criar raízes, pois a bisbilhotice das pessoas era maior de que a palavra dada.

O fato é que, ainda nos primeiros dias, algumas pessoas grudaram-se à cerca próxima ao acampamento, no intuito de entabular relações com os forasteiros. Nem mesmo o sol aferventando e os mosquitos nadando em sangue fresco eram motivos para que arredassem pé dali. Fome elas não sentiam, porque levavam consigo a matula. Mas os visitantes não davam a mínima. Continuavam com os seus afazeres ou descansavam da labuta. E, quando os curiosos voltavam, sem nenhuma novidade no embornal, para não ficarem com cara de tacho, punham-se a inventar um palanfrório, que jamais houvera sido dito.

Aperreados com aquele bando de curiosos, os sombrios sujeitos começaram a estender roupas, que jamais recolhiam, diante da cerca, de jeito a tapar a visão dos moradores intrusos. De modo que o acampamento voltou a ser observado de longe, como antes.

Quando o povoado apagava as suas luzes na hora de dormir, o barracamento ficava visível sob o fulgor de fogueiras e lampiões. Cansado de esmiuçar a vida dos estranhos, sem ver nisso nenhum resultado satisfatório, o povo largou os nojentos de lado, como se eles fizessem parte de Manarairema. Até Amâncio Mendes não levava mais a sério uma conversa sobre eles. E, nem o fato de Geminiano passar a trabalhar para eles, carregando areia, trouxe grande interesse para o povoado. Bem diz um ditado que a gente acaba se acostumando com qualquer coisa.

Mas, para tudo há um limite. E esse limite foi ultrapassado quando, após um mês, Geminiano e seu burro continuavam na mesmíssima faina. Já era tempo demais, fazendo a mesma coisa. Tornava-se necessário descobrir a finalidade de tanta areia. As pessoas, curiosas, começaram a esmiuçar o carroceiro para que lhes desse maiores informações. Mas o coitado só era capaz de dizer que os homens misteriosos estavam fazendo obras. O que levou à suposição de que os forasteiros iriam ficar no povoado para sempre. E pior, como o alimento vinha lá de cima, eles jamais iriam até o povoado, frustrando o sonho de vingança dos moradores, por terem sido tão desprezados.

Amâncio surpreendeu os amigos, quando disse que iria fazer uma visita ao acampamento no dia seguinte. Precisava saber o que “aqueles pebas estavam urdindo”. Aos que se mostravam preocupados, respondia que “Eles não são bicho, nem eu carrapicho”. Melhor seria que fosse o Dr. Nelório, pois se aqueles homens estavam em terras manarairemenses e, portanto, sujeitos aos ditames do município. Poderia ser também o Marianito do cartório. Amâncio era o menos indicado, com o seu jeito rixento de quem não leva desaforo para casa.

Quando alguns dos moradores propuseram a Amâncio levar mais alguém consigo, ele esbravejou com valentia, dizendo que “não nascera com rabo”. E quando Justino Moreira levantou a hipótese de que “os homens” poderiam não gostar da visita, respondeu na lata: “Se não gostarem, que tomem bicarbonato depois. Enquanto eu estiver lá, eles têm de me engolir.”.

Tentar convencer Amâncio a abrir mão daquela empreitada era tarefa difícil, principalmente depois de uma noite de cachaçada e doidice. Não havia sujeitinho mais encasquetado do que ele. Mexer com quem está quieto pode trazer tempestade. Quem sabe uma boa noite de sono limpasse aquelas suas caraminholas amalucadas. E, de mais a mais, ele era senhor de seu próprio umbigo. Se queria sarna para coçar, que tomasse conta da coceira sozinho, depois do acontecido.

Conforme prometera, no dia seguinte apareceu vestido de branco, de chapéu, também branco e botina de couro cru, seu traje de cerimônia. Pediu ao amigo Manoel Florêncio que, vez ou outra, desse uma olhada em sua venda. E partiu para seu destino sob o olhar curioso e ressabiado das pessoas nas portas, janelas e calçadas. Alguns até comentavam: “Aquele ali tira leite em onça, e vai entrar pela frente”.

E se os forasteiros recebessem o vendeiro a pedradas e, como vingança, não deixassem o povoado ter mais quietação? Estaria Amâncio apenas fazendo exibição? Chegaria ele arrotando afoiteza, falando que fez e aconteceu? Ou voltaria escorraçado? Os homens estranhos receberiam o vendeiro e conversariam com ele?

 Capítulo 4 a seguir…

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A HORA DOS RUMINANTES (2) – DÚBIOS VISITANTES

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Manarairema, aos poucos, ia sendo engolida pela noite, que trazia consigo uma friagem, que ficara escondida durante o dia. Os ouvidos das gentes estavam aguçados com a escuridão, para compensar a falta de uma visão mais ampla. O ladrar dos cachorros, o choro de crianças, o coaxar dos sapos, o barulho das asas dos morcegos esvoaçando, o zurro de um jumento, o cricrilar dos grilos e o nhenhenhém dos pernilongos tomavam uma dimensão, que seria imperceptível durante o dia.

Naqueles dias, o toucinho, produto de primeira necessidade, andava em falta no vilarejo. Muitos até diziam que chegaria os tempos em que o sal não tardaria a faltar. E, depois, faltaria tudo. Com certeza poderia ser o prenúncio do fim do mundo. Por isso, a visão de cargueiros na estrada trouxe esperanças para os dois homens que se encontravam na estrada. Até o sacolejar das bruacas podia ser ouvido com agrado.

As esperanças dos dois sujeitos sumiram com a evaporação dos aguardados cargueiros. De modo que se puseram a matutar sobre o acontecido. Era bem sabido que, quando se quer muito uma coisa, ela pode tomar vida em pensamento. Mas isso só aconteceria, se fosse só um a ver o sucedido, pensaram eles. Poderiam ser apenas animais soltos no mato. Mas, mesmo que fossem, eles não se escafederiam com tanta rapidez. Poderia ter havido um engano, pois, “no escuro toda corda é cobra e todo padre é frade”, já dizia o ditado. E o caso pareceu parar por aí.

Mas como “problema enterrado é problema plantado”, o fato é que em Maneirama quase todo mundo tivera a mesma visão. Essa era a conversa em cada palmo do lugar, naquela noite. A maioria persistia na certeza de que eram vendedores de toucinhos. Com certeza o toucinho era pouco e eles iriam vendê-lo para quem pagasse mais. Daí o silêncio danado de demorado.

Como “esperteza se vence com esperteza”, os moradores combinaram levantar-se bem cedinho e irem ao encalço dos cargueiros. Mas, ao se levantarem, depararam com um acampamento frenético do outro lado do rio. Com cerca de poucos minutos toda a cidade havia tomado conhecimento do fato. Com focos de lanternas, com todos os tipos de facho, todos os olhares estavam direcionados para o acampamento, curiosos para desvendar o mistério.

Alguém deduziu que poderia ser ciganos, mas um morador mais experiente explicou que os ciganos armam suas barracas espalhadas e nelas penduram panos em desordem. Os visitantes, ao contrário, acamparam em linha, duas fileiras certíssimas, com um largo no meio. Além disso, tinham cachorros. Coisa que cigano não usa ter. Seriam eles engenheiros, ou mineradores ou gente do governo? Quiçá!

A princípio os moradores pensaram em ir lá, para saber do que se tratava. Depois optaram por não ir. Se aqueles pareciam soberbos, eles também não iriam se oferecer. Seria melhor dar um tempo para daquela gente se assentar. Com certeza, logo depois viriam visitar o povoado. E também, se ali fossem, poderiam correr o risco de voltarem com o rabo entre as pernas, caso não fossem bem aceitos pelos forasteiros.

Os moradores de Manarairema esperaram impacientes pela visita. Todo mundo permaneceu de butuca nas janelas e portas esperando os visitantes. Nem mesmo comiam direito. E não aparecia uma vivalma. Os que moravam mais próximos ao acampamento iam transmitindo tudo para os mais distantes, feito um telégrafo.

A noite chegara outra vez, sem que houvesse novidade por parte dos estranhos. Os comerciantes ficaram com suas lojas abertas, para servir aos visitantes, caso precisassem de alguma coisa. Era uma forma de serem gentis e conservar o bom nome da cidade. Mas nada aconteceu, de modo que só restou à população ir dormir. Alguns até se levantaram no meio da noite para espiar o acampamento, em busca de novidade.

Os homens misteriosos continuaram fazendo obras no terreno, onde estavam acampados, de jeito que, vez ou outra, esbarravam em alguém da cidade, como da vez em que um deles quis comprar a carroça de Geminiano, que era um cara risonho mas sarçoso por dentro. Diante da insistência do visitante em lhe comprar a carroça, esse lhe dera as costas. E quando o forasteiro disse que “quando um burro fala, o outro pára para escutar”, ele lhe respondeu na lata que “não entendia conversa de burro”.

A história do encontro de Geminiano espalhou-se como penas ao vento. Recebendo ele muitos elogios por ter posto o visitante em seu devido lugar. Mas Amâncio Mendes da venda botou-se contra ele, fato que não foi tido como incomum, pois ele era sempre do contra. Já enraivado com o ocorrido, o carroceiro resolveu tirar satisfações com o vendeiro. Antes disso encontrou o Padre Prudente e relatou o sucedido. O padre deu-lhe conselhos de modo a deixar Amâncio de lado. Disse-lhe que “quando a conversa de um desmoraliza o outro, é porque o outro já estava desmoralizado”. Portanto, nada pegaria nele, que era um homem bom.

Geminiano ficou satisfeito com as palavras do vigário e pôs-se a matutar, gerindo a seguinte frase filosófica: “a fala de cada um devia ser dada em metros, quando ele nasce. Assim quem falasse à toa, ia desperdiçando sua metragem, um belo dia abria a boca e só saía vento”.

Nota:
Caros leitores, eu também não sei quem são esses visitantes misteriosos. Quem vocês pensam que sejam? O que estão fazendo em Manarairema? Por que ainda não tiveram contato direto com o povo do lugarejo?

Capítulo 3 a seguir…

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