Arquivo da categoria: Mestres da Pintura

Estudo dos grandes mestres mundiais da pintura, assim como de algumas obras dos mesmos.

Caravaggio – MADALENA ARREPENDIDA

Autoria de Lu Dias Carvalho

madalena

Maria Madalena é aqui retratada com extremo afeto, não como uma figura religiosa ou uma mulher madura, mas como uma jovenzinha quebrantada pelo peso da culpa que carrega apesar da tenra idade. Encontra-se numa atitude de total abandono, com a cabeça inclinada para a esquerda e tombada sobre o peito. Com as mãos entrelaçadas no colo e os longos cabelos que lhe caem pelas costas e ombro queda-se num gesto de desalento.

Caravaggio usou como modelo a mesma jovem prostituta, Ana Bianchini, que havia posado para O Repouso Durante a Fuga para o Egito (ainda iremos ver), que ali faz o papel da Virgem Maria. E, ao transgredir os princípios da época, acabou criando uma grande polêmica em torno da obra, principalmente com a Igreja, que alegava falta de decoro por parte do artista. Mas, enquanto os contestadores viam na escolha da modelo uma provocação, o pintor objetivava apenas pintar Maria Madalena como uma pessoa comum, num contexto mais atual, de modo a tornar a mensagem sobre o arrependimento mais próxima do observador e, portanto, mais eficaz.

O biógrafo Giovanni Pietro Bellori alega que, para fazer a sua composição, Caravaggio inspirara-se na imagem de uma moça secando o cabelo. Outro historiador, Peter Robb, levantou a hipótese de que a pintura de Caravaggio fosse a lembrança do que acontecera à modelo, que havia sido açoitada por policiais e apresentada nas ruas sobre o lombo de um burro, costume muito usado pela Igreja para punir as prostitutas da época.

O ambiente onde se encontra Maria Madalena é austero. Há somente como móvel uma pequena cadeira, na qual ela se encontra sentada. Espalhados pelo chão estão um par de brincos e um colar de pérolas, uma pulseira cravejada com pedras preciosas e um colar de ouro, além do vidro de unguento. Ela usa uma indumentária da época.

Uma pequena lágrima escorre em direção ao nariz, no lado direito da face de Maria Madalena. Suas mãos estão juntas sobre as pernas, numa atitude de grande tristeza. Pelos atributos em evidência na composição (pedras preciosas, pérolas, ouro, um frasco de unguento) ela é representada como uma cortesã. Tais objetos também representam os prazeres mundanos e que agora estão sendo deixados de lado.

Caravaggio usa um facho de luz vindo do lado direito da composição, que clareia a imagem da moça arrependida. O efeito claro-escuro é fundamental na apresentação da cena. Maria Madalena é apresentada de corpo inteiro.

O mais admirável nesta obra de Caravaggio é a carga emocional com que ele retrata a dor psicológica de Maria Madalena. A dor física é reparada com remédios, mas a espiritual, social e existencial, tão presente na história da humanidade, é muito mais profunda, pois impregna cada célula do ser. E Caravaggio capta o momento angustioso da mulher com extrema fidelidade e realismo. Esta tela é também conhecida como Madalena Penitente.

Cortesã, segundo o Aurélio:

  1. Favorita do rei.
  2. Mulher dissoluta, que vive luxuosamente.
  3. Prostituta elegante.

Curiosidades:

  • Maria Madalena é descrita no Novo Testamento como uma das discípulas mais dedicadas de Jesus Cristo. É considerada santa pelas igrejas Católica, Ortodoxa e Anglicana, sendo celebrada no dia 22 de julho. É também comemorada pela Igreja Luterana com festividades no mesmo dia. A Igreja Ortodoxa também a celebra no segundo domingo após a Páscoa.
  • O nome de Maria Madalena descreve-a como sendo natural de Magdala, cidade localizada na costa ocidental do Mar da Galileia. Ela acreditava que Jesus Cristo realmente era o Messias. Ela esteve presente na crucificação e no funeral de Cristo, juntamente com Maria de Nazaré e outras mulheres. No sábado, após a crucificação, saiu do Calvário rumo a Jerusalém com outros cristãos, para poder comprar certos perfumes, a fim de preparar o corpo de Cristo da forma como era de costume funerário. Permaneceu na cidade durante todo o sábado, e no dia seguinte, de manhã, ainda muito cedo, foi ao sepulcro. Achou-o vazio, e recebeu de um anjo a notícia de que Cristo havia ressuscitado e lhe foi dito que deveria informar tal fato aos apóstolos. Nada mais se sabe sobre ela a partir da leitura dos Evangelhos Canônicos.

Ficha técnica:
Ano: c. 1596/1597
Material: óleo sobre tela
Dimensões: 135,5 x 166,5 cm
Localização: Galleria Doria Pamphilg, Roma, Itália

Fontes de pesquisa:
Grandes mestres da pintura/ Coleção Folha
Grandes mestres/ Abril Coleções
1000 obras-primas da pintura europeia/ Könemann
Wikipédia

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Caravaggio – JUDITE E HOLOFERNES

Autoria de Lu Dias Carvalho

holofernes 1

Recebi encomenda de um quadro sobre o tema de Judite e Holofernes. Os meus predecessores representaram-no após, quando Judite apresenta a cabeça cortada num prato. Eu queria bem mostrar o ato em si. Uma prostituta minha conhecida posou para a Judite e a criada velha do cardeal pela seguinte. Um ferreiro fez Holophernes. Para a expressão da cara fui ver muitas execuções públicas e observei muito bem as cabeças cortadas tombadas e guardei as expressões de terror. (Caravaggio)

Esta tela retrata a cena em que Judite, revoltada com as ameaças do general assírio — Holofernes — a seu povo, tentando obrigá-lo a adorar o rei assírio Nabucodonosor em vez de Javé, aproveita-se do estado de embriaguez do tirano, depois de seduzi-lo.  Aproxima-se de seu leito, segura-o pelos cabelos e decepa-lhe a cabeça, entregando-a para a serva que a joga num saco de provisões. Ela se converte depois em modelo para os judeus e em especial para os fanáticos religiosos.

Judite era uma viúva próspera e de boa conduta. Era bela nas formas e de presença encantadora. Para seduzir Holofernes, ela retirou os trajes de luto e botou uma vestimenta de festa e se introduziu no seu acampamento e bebeu com ele. O momento para assassinar o tirano era único, já que os judeus estavam prestes a se render diante das forças do inimigo que, após o crime, saíram em debandada. Depois ela regressou à Betulia com a cabeça do general e os judeus venceram o inimigo. Judite voltou da tenda do herege tão pura quanto ali chegara, sendo honrada por seu povo. Foi tida como uma heroína que deveria ser imitada. Esta passagem é narrada no Antigo Testamento, no Livro de Judite.

Caravaggio, ao pintar a cena não seguiu fielmente a versão bíblica. Dela diverge, quando traz a serva para perto de Judite no momento exato do crime. Ao colocar as duas mulheres juntas, contrasta a força da juventude com as cicatrizes da velhice. Enquanto a pele da heroína é sedosa e brilhante, a da serva é enrugada e opaca.

Judite demonstra determinação pelo modo como segura a espada e a cabeça de Holofernes. Também demonstra nojo ao afastar o corpo para trás, como se não quisesse se sujar com os respingos do sangue do tirano. Seu vestido dominical é simples, igual aos usados pelas mulheres do povo. Ela representa ao mesmo tempo sensualidade, brutalidade e coragem.

Do nariz da jovem parte uma ruga que vai morrer no meio da testa, passando entre as sobrancelhas contraídas, demonstrando concentração e firmeza. Seus olhos estão centrados no inimigo, ciente de que não pode cometer nenhum engano. O golpe é dado sem força na parte lateral do pescoço, ficando a autora o mais distante possível.

Embora a maioria dos pintores tenham representado Judite com a cabeça do tirano nas mãos, Caravaggio optou por retratar o momento exato da decapitação, já tendo a espada rompido 2/3 do pescoço, embora a vítima ainda pareça estar viva, com seus olhos aterrorizados e a boca aberta como a soltar um grito, deixando a obra cheia de realismo e crueza. É o mesmo grito visto em Cabeça de Medusa.

À época (Contrarreforma), existia um manual que aconselhava os artistas a observar o condenado, ao ser enforcado, para estudar as convulsões e o movimento dos olhos. Em muitos de seus quadros Caravaggio apresentou cenas de decapitação (O Sacrifício de Isac, A Decapitação de S. João Batista, Salomé com a Cabeça de S. João Batista, Davi com a Cabeça de Golias…), mas para muitos esta é uma das obras mais medonhas do pintor.

Na composição os personagens parecem emergir das sombras, ganhando destaque com a luz que focaliza cada gesto. O drama desenvolve-se num primeiro plano fechado. Como em “A Morte da Virgem” uma cortina vermelha projeta-se entre Judite e Holofernes, dando ainda mais teatralidade à cena da execução.

Fachos de luz iluminam os braços e a parte direita do rosto de Holofernes que agarra com desespero o lençol já manchado de sangue e destacam com pungência a bela Judite. A serva — atenta ao gestual de Judite — não expressa horror ou comoção, ao contrário, mostra aprovação, como se o ato fosse de vital importância. Nas suas mãos está o saco erguido, com a boca aberta, onde será colocada a cabeça do tirano.

A modelo escolhida por Caravaggio para representar Judite é a cortesã Fillide Melandroni, a mesma que posou para Santa Catarina de Alexandria e outras composições. Um ferreiro foi escolhido como modelo para Holofernes, embora algumas fontes digam que tenha sido o próprio Caravaggio.

Judite e Holofernes ou A Decapitação de Holofernes é uma das mais famosas obras de Caravaggio. A decapitação de Holofernes por Judith tem sido objeto de muitas pinturas e quadros desde a Idade Média. Artistas das mais diferentes formas de arte vêm reproduzindo a história de Judite e Holofernes ao longo dos tempos, representando os seus diferentes momentos. Podem ser citados: Cristofano Allori, Donatello, Sandro Botticelli, Andrea Mantegna, Giorgione, Lucas Cranach, o Velho, Palma Vecchio, Michelangelo, Caravaggio, Tiziano, Antonio de Pereda, Goya, Horace Vernet, Gustav Klimt, Artemisia Gentileschi, Jan Sanders van Hemessen, Hermann-Paul, Gustav Klimt, entre outros. A cena do banquete foi igualmente retratado por Rembrandt no quadro Artemisa. A história também inspirou um poema medieval em inglês, a ópera Betulia Liberata de Mozart e uma opereta de Jacob Pavlovich Adler, dentre muitas outras representações.

Ficha técnica:
Ano: c. 1597/1600
Material: óleo sobre tela
Dimensões: 145 x 195 cm
Localização: Galleria Nazionale d`Arte Antica, Roma, Itália

Fontes de pesquisa:
Los secretos de las obras de arte/ Taschen
Grandes mestres da pintura/ Coleção Folha
Grandes mestres/ Abril Coleções

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Caravaggio – DESCANSO NA FUGA PARA O EGITO

Autoria de Lu Dias Carvalho

jose do egito

Esta composição foge à regra das telas pintadas por Caravaggio, sendo um exemplo de seu estilo inicial, antes de abraçar o tenebrismo, técnica que revolucionou a arte europeia. Trata-se de uma pintura idílica e de uma representação individualista do pintor. Nela podemos perceber uma imensa paisagem, com tonalidades luminosas (bosque de carvalhos e álamos), que se estende por trás dos personagens,  bem ao contrário dos fundos neutros tão comuns em suas composições. O artista ainda era muito jovem, quando fez esta pintura.

A Sagrada Família é composta por pessoas simples. A pintura é feita com cores fortes e claras, com pouco uso da sombra e com uma atenção esmerada aos detalhes de superfície, principalmente em se tratando das asas do anjo.  Caravaggio fez uso da figura alada com o intuito de dividir a composição em duas partes. O anjo sereno e sensível encontra-se no centro do grupo.

O conjunto de figuras insere-se dentro de um retângulo, com o anjo ao meio, tornando o lado esquerdo da composição ligeiramente desequilibrado. Ao abrir mão dos personagens representados com meio corpo, ou isoladamente, Caravaggio apresenta uma cena sacra com maior complexidade.

A Virgem, que ocupa o lado mais bonito da paisagem com o céu acima, não tem cabelos claros ou dourados, como aparece tradicionalmente, mas é ruiva, com os seus cabelos avermelhados presos em forma de trança. Ela encosta a sua cabeça sobre a cabecinha do filho ainda bebê, que dorme profundamente, expressando o seu cansaço. O pintor quebra aqui mais um paradigma da época, ao mostrar a exaustão da Madona, pois um ser divinal jamais apresenta cansaço, atitude extremamente humana.

São José é um velho camponês de pés descalços, usando roupas de tons da terra. À sua direita, no chão, encontra-se uma garrafa de vinho, próxima a uma trouxa. Atitude inimaginável para um santo, à época. Mostra-se envelhecido e cansado. Atrás dele está o burro, quase imperceptível, ao se misturar com a folhagem marrom. O animal serve de transporte para ele e sua família na fuga para o Egito, pois Herodes planeja matar seu filho recém-nascido. O terreno onde São José pisa é pedregoso, de modo que ele descansa um pé sobre o outro, para diminuir o desconforto que sente. Observem a perfeição da embalagem da garrafa.

O anjo ruivo e seminu, coberto ligeiramente por um manto branco e de costas para o observador, acompanha a partitura que São José segura, tocando seu violino. O jovem modelo é o mesmo que posou em O Trapaceiro. A música apresentada na partitura é legível e reproduz um motete que homenageia a Virgem. Não existe precedente para um anjo tocando violino na história bíblica ou no simbolismo artístico passado, sendo aqui uma invenção do artista. Ao colocar São José segurando a partitura, Caravaggio trouxe graça e leveza para a composição. Observem que o anjo apresenta-se nu frontal para São José.

O Descanso na Fuga para o Egito é considerada a primeira tela complexa da história da obra religiosa de Caravaggio. O quadro foi realizado pelo pintor nos seus primeiros anos em Roma. É uma composição grandiosa, tanto pelo tema como por apresentar os personagens de corpo inteiro e pela inovação iconográfica do anjo músico, com suas grandes asas pretas.

Curiosidades:

  • Ana Bianchini, uma prostituta amiga do pintor, presente como modelo em Madalena Arrependida serve de modelo para a Madona.
  • A música que José detém em suas mãos foi escrita por Noel Bauldewijn em honra de Maria: Quam pulchra es, “Como você é linda”, baseada em um verso do Cântico dos Cânticos.

Ficha técnica:
Artista: Michelangelo Merisi da Caravaggio
Título: Repouso na fuga para o Egito
Data: 1596-7
Técnica: Óleo sobre tela
Dimensões: 133,5 x 166,5 cm
Localização: Galleria Doria-Pamphili – Roma

Fontes de pesquisa:
Grandes mestres da pintura/ Coleção Folha
Grandes mestres/ Abril Coleções
1000 obras-primas da pintura europeia/ Könemann

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Caravaggio – CRUCIFICAÇÃO DE SÃO PEDRO

Autoria de Lu Dias Carvalho

sao pedro     sao pedro cruz

Caravaggio é o mestre das trevas. Ele as entreabre somente o suficiente para não diminuir seu trágico e viril pessimismo. Tudo nesta tela ocorre como uma evidência inconsciente de que cada um cumpre a sua tarefa. A desolação reside no acontecimento puro e simples. E o santo, bom modelo conhecido na via Margutta, já fincado à cruz, exibe um olhar calmo, consciente, de herói laico moderno. (Roberto Longhi)

Relatam certas fontes antigas que a primeira versão da Crucificação de São Pedro, pintura que mostra o martírio do santo, feita para a a Capela de Tibério Cerasi, foi recusada, tendo Caravaggio que substituí-la, mas nunca não foi encontrada a primeira versão da pintura, se é que algum dia existiu.

O artista apresenta São Pedro como um velho camponês  já pregado à cruz, com os três carrascos tentando colocá-la de pé. O santo levanta a cabeça, que se destaca no fundo escuro. Seus pés, tendo bem visíveis os dois pregos neles fincados, encontram-se numa posição mais alta, na extremidade esquerda da tela, captando o olhar do observador, ressetido com a brutalidade dos carrascos e com a candura emanada do santo. A resignação do mártir dá-lhe uma aura de santidade diante de tamanho sofrimento.

Os três homens rudes, malvestidos e descalços, aparentando cansaço diante do empenho extremado, tentam concluir a ação. Eles sentem dificuldades em levantar a cruz. Seus esforços são visíveis. Nenhum deles mostra o rosto, o que os identifica como pessoas sem destaque, que ali estão apenas para levar a cabo uma incumbência certamente remunerada. Um deles está de costas para o observador, apoiado numa pá, que se encontra no chão, perto da roupa de São Pedro, no lado direito da tela, enquanto seu ombro esquerdo sustenta a cruz, funcionando como um apoio, na tentativa de erguê-la.

O homem de pé, também de costas para o observador, segura a corda com as duas mãos, apoiando-a no meio das costas. O corpo arqueado denota o seu grande esforço físico. O modo como o terceiro homem abraça os pés de São Pedro, no intuito de ajudar os dois companheiros a levantarem a cruz, mostra proximidade para com a vítima e, ao mesmo tempo, indiferença.

Os três verdugos, extremamente impessoais, parecem alheios ao sofrimento de São Pedro, como se ali estivessem apenas para cumprir um trabalho qualquer, sem  questionarem se o que fazem é correto ou não.

Não se vê a presença de sangue na tela, apesar dos pregos fincados nas mãos e nos pés do santo. Também não existem testemunhas presentes à crucificação, a não ser o sentimento de compaixão que toma conta do observador.

Caravaggio, como é do seu estilo, limita-se ao uso do essencial. Além da cruz, onde se encontra São Pedro, a composição, elaborada na diagonal, forma com seus personagens uma segunda cruz. Observem a foto menor, acima, para entenderem melhor.

São Pedro, cujo modelo foi encontrado na rua pelo artista, apresenta-se velho, porém forte, com o rosto marcado pelas rugas e pelo sofrimento. Não há revolta em seu semblante, mas aceitação. Observem que os três homens tentam levantar a cruz, deixando São Pedro de cabeça para baixo. Dizem que o próprio santo pediu para ser crucificado de cabeça para baixo, pois não queria imitar seu mestre Jesus Cristo.

Ficha técnica:
Artista: Caravaggio
Ano: 1601
Tipo: Óleo sobre tela
Dimensões: 230 cm × 175 cm
Localização: Santa Maria del Popolo, Roma

Fontes de pesquisa:
Grandes mestres da pintura/ Coleção Folha
Grandes mestres/ Abril Coleções
A história da arte/ E. H. Gombrich

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Caravaggio – A VOCAÇÃO DE SÃO MATEUS

Autoria de Lu Dias Carvalho

mateus

Partindo Jesus dali, viu sentado na coletoria um homem chamado Mateus, e disse-lhe: Segue-me. E ele, levantando-se, o seguiu. (Mt. 9,9)

A Vocação de São Mateus — também conhecida como Invocação de São Mateus ou O Chamamento de São Mateus — retrata o momento em que Mateus é convocado por Jesus para segui-lo. Ao receber a encomenda da tela que ornaria a capela Contarelli da igreja São Luís dos Franceses, o pintor também recebeu ordens para se basear nos versículos bíblicos (ver acima). Trata-se de uma obra de grandes dimensões em que o pintor combina um tema cristão com uma pintura de gênero (pintura que mostra uma cena da vida diária).

Caravaggio procurou seguir as instruções recebidas, mas sem abrir mão de sua visão realista. Tanto é que ambientou a cena em que Jesus faz o chamado a Mateus num local bem conhecido à época, chamado telônio (Aurélio: Agência onde se fazia o câmbio de moedas entre os judeus no tempo de Cristo.). Mas ao pintar o quadro, tornou o local bem parecido com uma taverna. Há fontes que dizem se tratar realmente de uma taverna romana, levando em conta a maneira como o pintor arruma as figuras.

A composição é realizada em torno de dois planos paralelos, sendo que o superior é ocupado por uma janela coberta com um oleado (muito usado antes do uso universal do vidro) e o inferior apresenta a cena propriamente dita, na qual Jesus chama Mateus para a evangelização. A posição dos pés de Jesus e de São Pedro é indicativa de que eles já se encontram em direção à saída. A composição é formada por dois grupos de personagens:

 1º grupo — posicionado à direita. É composto por Cristo (apenas sua cabeça, a mão direita e os pés são visíveis) e São Pedro que se encontram de pé. Os dois representam o mundo espiritual.

2º grupo — posicionado à esquerda. Sentados em torno de uma mesa rude encontram-se cinco elementos, incluindo Mateus, de barbas e com barrete. O grupo representa o mundo terreno.

A composição está dividida em duas partes. Os valores permanentes e corretos formam um retângulo vertical (primeiro grupo), e aqueles temporários e mundanos, reunidos em torno da mesa, formam um retângulo horizontal (segundo grupo). Existe um espaço vazio entre os dois grupos, como a diferenciar os dois mundos: o terreno e o espiritual. É a mão de Cristo que graciosamente faz a ligação entre eles, numa forte simbologia. A mão está quase exatamente como a pintada por Michelangelo em Criação de Adão. No entanto, Caravaggio não copia Deus com os dedos energéticos do Pai, mas em vez disso ele traça a mão frouxa de Adão.

Os cinco indivíduos posicionados ao redor da mesa apresentam idades variadas. Mateus parece ser a figura mais importante do grupo de amigos. Encontra-se elegantemente vestido, traje que condiz com a sua posição de arrecadador de impostos. Seus amigos também estão bem vestidos, de acordo com a época do pintor, e parecem desfrutar de uma situação privilegiada. Usam tecidos brilhantes e luxuosos, contrastando com a simplicidade das vestes de Jesus e de São Pedro, ambos descalços.

Embora Mateus seja a figura principal da composição presente no segundo grupo, o olhar do observador é puxado para as figuras de Cristo e Pedro, pela intensidade da luz que cobre o rosto do Mestre, e alastra-se pelas costas de seu discípulo, emanada deles próprios. A divindade de Jesus é reforçada pelo halo sobre sua cabeça que tem uma parte absorvida por outra fonte de luz. O corpo do Mestre é ofuscado pelo corpo de seu apóstolo Pedro que se encontra à sua esquerda. Apenas seu rosto e a mão que aponta para Mateus estão iluminados. O facho de luz — acima de ambos — parece uma seta a indicar o coletor e futuro discípulo.

O facho de luz, entrando pela parte superior do lado direito, foca Mateus e seu grupo com intensidade, como se quisesse mostrar que ali está o escolhido pelo Mestre. Mateus aponta para si, surpreso com o convite, pois sua única preocupação era coletar impostos. Dois de seus amigos voltam-se curiosos para Jesus e São Pedro, enquanto os outros dois continuam entretidos na contagem do dinheiro, sem perceber a presença de Cristo e de seu apóstolo.

A iluminação é irreal nesta composição. A luz é o elemento responsável por divinizar a cena, ao lado da auréola sobre a cabeça do Mestre. Sem ela a composição perderia todo o seu caráter religioso. Também evidencia o gesto de Jesus que aponta o seu dedo para Mateus. A luz que ilumina a cena não vem da janela, mas de um ponto fora do quadro.

O pintor barroco dispõe a cena do minimamente necessário, pois o que importa para ele são os personagens. O mais jovem do grupo, com o braço direito sobre Mateus, como se buscasse a sua proteção, usa um luxuoso traje e chapéu de plumas, (trata-se de Mario Minitti, amigo do pintor, já visto em outras telas). O outro personagem que se encontra à sua frente parece mais velho e mais intrépido. Encontra-se armado com uma espada e apresenta-se meio ameaçador, virando-se  para  São Pedro e Jesus.

Curiosidades

  • Dentre os personagens, São Mateus foi sempre tido como o homem de barba que aponta para si, como se questionasse sobre ser ele ou não o indicado por Cristo. O seu gesto é traduzido como se ele perguntasse: “Quem, eu?” Uma interpretação mais atual sugere que o homem barbado, na verdade, aponta para o jovem que se encontra de cabeça baixa, imerso na contagem do dinheiro, de modo que a pergunta do homem de barba seria: “Ele?” Outros críticos de arte acham que Caravaggio deliberadamente deixou a composição ambígua, cabendo ao observador a escolha.
  • Levi era o nome de São Mateus antes de ele se tornar um apóstolo de Cristo.
  • A luz é muito bem manipulada pelo pintor: a janela visível coberta com oleado, muito provavelmente para fornecer luz difusa ao estúdio do pintor; a luz superior, para iluminar o rosto de São Mateus e do grupo sentado; e a luz por trás de Cristo e de São Pedro, introduzida apenas com eles. Pode ser que esta terceira fonte de luz é pretendida como milagrosa. Caso contrário, por que São Pedro não lançou sombra sobre o jovem defensivo à sua frente?
  • Caravaggio compôs esta tela com cores vivas, usando contrastes ousados de vermelhos, dourados e verdes e texturas diferentes de veludo e pele macia. Ele também contrasta gestos e expressões.

Ficha técnica:
Data: 1599 -1600
Técnica usada: óleo sobre tela
Dimensões: 340 cm × 322 cm
Localização: Igreja São Luís dos Franceses, Roma

Fontes de pesquisa:
Grandes mestres da pintura/ Coleção Folha
Grandes mestres/ Abril Coleções
1000 obras-primas da pintura europeia/ Könemann

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Caravaggio – A CEIA EM EMAÚS

 Autoria de Lu Dias Carvalho

ceia

Aproximando-se da aldeia para onde iam, deu ele a entender que ia para mais longe. Mas eles o constrangeram, dizendo: Fica em nossa companhia, porque é tarde e o dia já declinou. Ele entrou para ficar com eles. (Lucas 24:28-29)

Esta cena religiosa é uma das mais belas pinturas de Caravaggio. Narra a passagem bíblica em que Cléofas e Pedro (possivelmente), entristecidos com a morte do Mestre, resolvem caminhar até a aldeia de Emaús. Durante o trajeto, um desconhecido agrega-se à companhia dos dois. Ao chegar a Emaús, o pequeno grupo detém-se em uma estalagem para comer. Antes da ceia, os dois discípulos surpreendem-se ao ver o desconhecido abençoar o pão. A seguir, descobrem que se trata do Cristo ressuscitado, que repete o mesmo gesto feito na Última Ceia.

Na composição, que se estrutura em torno do gesto eucarístico do Mestre, Caravaggio retrata quatro personagens: Cristo, os dois apóstolos e o estalajadeiro, todos a meio corpo. A cena é mostrada no exato momento em que Jesus abençoa os alimentos. Para qualquer um dos personagens que se olhe,  seus gestos apontam ao observador a figura de Jesus.

Cléofas, de barba preta e vestes rotas, sentado de costas para o observador, à esquerda da tela, faz menção de se levantar, segurando os braços da cadeira com suas mãos fortes e rudes. Uma rasgadura no seu casaco mostra um pedaço do tecido branco de sua camisa, técnica usada por Caravaggio para acentuar o escorço (Aur.: Art. Plást. Desenho ou pintura que representa objeto de três dimensões em forma reduzida ou encurtada, segundo as regras da perspectiva.). Cléofas é o único apóstolo mencionado pelo nome na versão de Lucas.

Pedro, à esquerda de Jesus ressuscitado, abre os braços em forma de cruz, lembrando o martírio do Mestre. Seus cabelos estão ralos e sua barba esbranquiçada. A concha em suas vestes identifica-o como peregrino. Sua mão esquerda parece precipitar-se para fora da tela e a direita para dentro. O que leva a acreditar que se trata do apóstolo Pedro é a presença de uma concha em suas roupas.

Cristo encontra-se no centro da composição, de frente para o observador, com os olhos voltados para a mesa, enquanto ergue o braço direito para abençoar o pão. É representado como um jovem forte, imberbe, com os cabelos cacheados caindo sobre os ombros, contrastando com o aspecto envelhecido e esfarrapado dos dois apóstolos. Sua sombra projeta-se na parede, às suas costas, criando uma auréola que evidencia ainda mais a sua figura divina. Não se trata de um Cristo distante e inalcançável, mas sim de um Cristo que pode ser visto, ouvido e abraçado. E tudo na composição aponta para ele.

O hospedador, que figura entre Cristo e Cléofas, observa sereno  e atentamente o Mestre, enquanto apoia sua mão esquerda no cinto, sem compreender o que se passa ou quem sejam aquelas pessoas. Sua tranquilidade contrasta com o espanto e a afobação dos dois discípulos, ao descobrirem que é o Mestre quem está ali entre eles.

Sobre a mesa estão: uma cesta de frutas, a carne dentro de um prato, duas jarras, sendo uma de louça e outra de vidro e um cálice. Todos os objetos projetam sombra na mesa, sendo que a cesta com frutas projeta uma sombra em forma de peixe, símbolo dos primeiros cristãos. E todos os elementos possuem uma simbologia. O pão e o vinho referem-se à Eucaristia. As uvas referem-se ao vinho. A maçã machucada e os figos já estragados simbolizam o pecado original, ou seja, a Queda do Homem, enquanto as romãs simbolizam o triunfamento de Cristo que, ao ressuscitar, acabou vencendo o mal. Alguns veem um rabo de peixe na sombra que a cesta com frutas projeta na mesa, à direita, considerando-o o símbolo dos primeiros cristãos.

A cesta de frutas em primeiro plano, traz a sensação de que poderá cair da mesa a qualquer momento, oscilando na sua beirada. A toalha branca sobre a mesa, o guardanapo no colo de Pedro e o lenço amarrado no braço direito do hospedeiro dão luminosidade à composição. A visão frontal e a parca profundidade da cena, assim como o lugar vago bem em frente ao Mestre, fazem com que o observador sinta-se convidado a sentar-se à mesa ou se sinta na cena inserido.

Caravaggio transpôs a cena para o seu tempo, ambientando-a numa taberna romana. E mais uma vez criou polêmica ao representar Cristo jovem, gordo e um pouco feminino, sem barba, tendo à frente, sobre a mesa, frutas que estariam fora da estação. O realismo com que tratava os temas religiosos, como apóstolos que se parecem com trabalhadores, angariou a reprovação veemente do clero.

Na obra, Caravaggio usa sua técnica concebida, o tenebrismo, que consiste no uso de um fundo escuro, algumas vezes completamente negro, onde faz a incidência de focos de luz sobre os detalhes da pintura que quer destacar.

Curiosidades:
1.Caravaggio pintou uma segunda versão da Ceia em Emaús (hoje na Academia de Belas Artes de Brera , Milão), em 1606, onde acrescenta mais uma personagem: a mulher do estalajadeiro. Em comparação com a primeira, os gestos das figuras são muito mais contidos, tornando a presença mais importante do que o desempenho. Esta diferença possivelmente reflete as circunstâncias da vida do pintor, naquele momento (ele havia fugido de Roma como um fora da lei após a morte de Ranuccio Tomassoni), ou se trata apenas da contínua evolução de sua arte.

2. Ceia de Emaús é uma das primeiras aparições de Jesus após a ressurreição e à descoberta do túmulo vazio. Relata uma refeição que Jesus teve com os dois discípulos após o encontro na estrada, tornando-se um tema muito popular na arte. O episódio está descrito em Lucas 24:13-35, onde se lê também a expressão “fica conosco, Senhor” (em latim: Mane nobiscum Domine), que inspirou diversos textos, orações e canções.

3. Entre outros artistas, que pintaram o jantar, estão Jacopo Bassano, Pontormo, Vittore Carpaccio, Philippe de Champaigne, Albrecht Dürer, Benedetto Gennari, Jacob Jordaens, Marco Marziale, Pedro Orrente, Tintoretto, Titian, Velázquez e Paolo Veronese. O jantar também foi tema escolhido por um dos mais bem-sucedidos falsários de Vermeer, Han van Meegeren.

Ficha técnica:
Autor: Caravaggio
Data: 1601
Técnica: óleo sobre tela
Dimensões: 141 x 196 cm
Localização: Galeria Nacional de Londres

Fonte de pesquisa:
Grandes mestres da pintura/ Coleção Folha
Grandes mestres/ Abril Coleções
A história da arte/ E. H. Gombrich

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