Autoria do Prof. Pierre Santos
O mestre da pintura Alberto da Veiga Guignard foi um dos mais importantes alicerces sobre o qual se apoiou a arte moderna brasileira para o seu florescimento, juntamente com Portinari, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Oswaldo Goeldi e outros. De seus ensinamentos, que até hoje têm dado frutos, saíram artistas como Yara Tupynambá, Mário Silésio, Chanina, Sara Ávila, Amílcar de Castro, Jefferson Lodi e tantos outros.
Guignard, um dos mais importantes pintores do país, dentro do modernismo, tinha um defeito congênito: lábio leporino da forma a mais prejudicial para quem vem ao mundo com ele. Desde cedo foi submetido a várias cirurgias e nada resolvia o problema, sequer o minorava. A medicina ainda não tinha desenvolvido as técnicas que, se não curam completamente, pelo menos atenuam de forma bem satisfatória o problema, a ponto de levarem o portador a comer e a falar com uma naturalidade bem próxima do normal. Nosso pintor não teve a sorte de poder contar, em seu tempo de vida, com tais soluções, que só começaram a tornar-se realidade uns vinte e poucos anos depois de sua morte.
Esse defeito trouxe a Guignard sofrimento físico e psicológico. Deixou-lhe a voz fanha, às vezes cavernosa, quando aliada a alguma constipação ou inflamação da garganta. Era difícil entender o que falava e só quem estivesse bem acostumado a ouvi-lo podia consegui-lo. Por causa disso, ele desenvolveu, ao longo da vida, um método muito característico de desenhar no espaço, com as mãos, através de ampla gesticulação, o que pretendia dizer, numa linguagem gestual sempre controlada e comedida. Vinícius de Morais, que era seu amigo, dizia que ele era a única pessoa de seu conhecimento, que possuía a capacidade de descrever qualquer quadro seu somente com as mãos. Também Iberê Camargo, que fora seu aluno, disse-me que o mestre era sem igual, pois ensinava tudo sobre arte, pronunciando tão somente poucas, curtas e mais fáceis palavras, mas passando o essencial apenas com os gestos. Sara Ávila, que fora sua aluna, falou-me sobre a facilidade e competência que o mestre tinha de falar com as mãos. Naturalmente, neste aspecto, Guignard, o mágico do gesto, era um fenômeno.
Não era só a fala que amargurava o artista e fazia-o padecer. Por não ter tido o palato, seus maxilares não tinham a força necessária para a mastigação dos alimentos, principalmente os mais compactos. Para comer a carne, tinha que picá-la em pedaços miúdos, numa mastigação mais demorada, pois era obrigado a ajudar o processo com os dedos. A deglutição também era falha e fraca, e não raro o bolo alimentar regurgitava. Quando estava só, deixava a regurgitação cair numa vasilha e continuava a refeição, mas, quando acompanhado por pessoas não íntimas, usava um lenço mantido pela mão esquerda na frente da boca, enquanto com a outra auxiliava a mastigação. Em caso de regurgitação, tinha que fazer o alimento voltar garganta abaixo, coisa para si bastante dolorosa. Além disso, o vão do palato costumava ficar inflamado, seja em decorrência da mastigação forçada de alimentos mais resistentes, seja por causa de alguma gripe. Quando isso acontecia, ficava acamado. Se estivesse morando em casa de algum conhecido tinha assistência, se em pensão, era acudido pelos amigos, que lhe levavam alimentos mais palatáveis, remédios e o que mais fosse necessário.
Apesar de tudo isso, o artista estava sempre de bom humor. Não me lembro de tê-lo visto, uma vez sequer, amuado ou com azedume, apesar de seus angustiosos problemas. Estava sempre com aquele sorriso de criança nos lábios para saudar os amigos, beijando a mão de todas as mulheres que encontrava pela frente, e desejando a todos “Feliz Natal”, o ano inteiro. Sempre se mostrava alegre e comunicativo, como se, perante a dádiva de estar aqui, bem vivo, todas as mazelas da vida se tornassem definitivamente insignificantes e sem peso, pois todo aquele sofrimento ia sendo, a cada dia, superado pela mágica beleza de suas pinturas e de seus desenhos, até mesmo pelas singelas decorações que amava fazer em móveis ou nas casas das pessoas que o acolhiam. Sem dúvida, foi considerando este contraste entre a tortura e a beleza, que Portinari chamava-o de “São Guignard”, e Cecília Meireles preferia referir-se a ele em seus textos e em suas poesias como “Guignard, o Santo”.
Nota: Guignard, Autorretrato,1961, osm, 37 X 45 cm, MAM-RJ
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Prof. Pierre
Que bom conhecer, por tua excelente narrativa, o lado mais doloroso do pintor Guignard, que muitos admiradores desconhecem.
Esse lado tão difícil foi o grande desafio que sua vontade maravilhosa enfrentou, o poder de sua mente, o mais extraordinário recurso humano, soube transpor e, com todo seu drama, triunfar na arte. E ainda conseguia se comunicar e bem, através de gestos, pois tinha dificuldades para falar, como colocaste muito bem, e com riqueza de detalhes, em teu maravilhoso texto.
Não sou, como sabes, um conhecedor da arte da pintura. Porém, interesso-me e me delicia ver os belos quadros e tentar entender as obras que mais admiro.
Na minha adolescência, eu tive um professor de trabalhos manuais, no Ginásio, prof. Luiz Beraldo, que era um extraordinário pintor e que nos mostrou sua arte, privilegiando-me com explicações. Ainda vou escrever sobre ele, pois foi uma figura marcante em minha vida.
Sei, assim, que o artista revela, sempre, o que existe em sua alma, seu interior, como evidenciava meu professor.
Ao ler teu texto, revelando o drama de Guignard, pesquisei na Internet e vi alguns quadros, inclusive, é claro, o seu autorretrato, tanto jovem, como o da ilustração, quando já estava na terceira idade, mostrando-nos que não temia sua imagem e que não a anatematiza, convivia com ela e não se complexava com isto.
Também, vendo os demais quadros, sensibilizou-me a quantidade de cores vivas, alegres, contagiantes em suas obras e o apego, ao que me parece, (perdoa-me se estiver falando bobagem) ao lugar onde morou, área urbana, construções coloridas, mostrando muitas igrejas (penso que ele era religioso ou convivia muito bem com a religião), festivas imagens, muitas flores, muitas paisagens.
Percebo que ele era amigo do mundo em que vivia. Não vi, talvez esteja enganado, nenhuma obra dele mostrando que a sua vida era triste. Pelo contrário, seus quadros exalavam alegria e uma profunda felicidade.
Diante do sofrimento que ele carregava, desde o seu nascimento, é muito profundo perceber que o artista vivia em paz com o mundo exterior. Esta conclusão, chego pelo que demonstrou nas telas, seu mundo interior.
Obrigado, prof. Pierre, por teu texto, que muito me emocionou, pois é bastante importante avaliar que, mesmo diante do sofrimento e de uma vida difícil, podemos ser felizes. Guignard, penso, foi um homem feliz.
Professor Pierre
Eu quase nada conhecia sobre a vida de Guignard. Mas vejo que ele, além de grande artista, era também uma pessoa admirável. Gostei muito de seu texto.
Abraços
Manoel
Prof. Pierre
Fiquei emocionada com seu texto retratando um pedacinho da vida de Guignard.
Não há como não ficar apaixonada com esse homem simples e de talento inquestionável.
Quanta bondade e pureza havia naquele coração, apesar de todos os problemas que carregava.
Lindeza de texto!
Abraços,
Lu
Pois é, Lu: Guignard era assim mesmo. Jamais pensava em si, em tirar proveito de alguma coisa, fosse o que fosse que lhe pudesse beneficiar. Tudo fazia para agradar aos amigos, aos conhecidos, a todos que dele dependiam dentro do campo artístico. Sua única preocupação era criar belezas que retratassem o mundo e enfeitassem a vida. Era um homem puro, ingênuo por um processo de pureza e, ao mesmo tempo, de uma sabedoria imensa, que sabia ensinar com os gestos e criar com a limpidez da alma. Nem mesmo as grandes provações, que a vida lhe impôs, tiraram-lhe a alegria de aqui estar, criar e fazer tudo quanto fez ao longo de sua existência. Embora fosse religioso, não foi um místico e eu lhe juro, minha amiga, que, se o tivesse sido, hoje estaria canonizado, tais a grandiosidade e o desprendimento com que a todos sempre se doava. Obrigado, minha cara, por suas palavras carinhosas.