Autoria de Lu Dias Carvalho
Diz que deu, diz que dá/ Diz que Deus dará/ Não vou duvidar, ô nega/ Diz que Deus diz que dá/ E seu Deus negar, ô nega/ Eu vou me indignar e chega/ Deus dará/ Deus dará. (Chico Buarque)
O sambista desceu o morro indignado com as notícias que há meses vinha lendo na tela de seu antiquado notebook. E ficou matutando sobre o caráter da imensa maioria dos políticos que dirigiam seu país. E pior, as últimas manchetes davam conta de que até a Justiça estava servil à quadrilha de corruptores e corrompidos. Em quem seu povo poderia buscar exemplo? Quando seu moleque de seis anos perguntou-lhe para que servia um juiz, ele fez que não entendeu, e levou o assunto para o juiz de futebol. Não que houvesse, nos dias de hoje, muita diferença entre um e outro vistos por aí, totalmente distanciados da conduta de um julgador decente. Estava quase tudo dominado pela velhacaria. Ele se lembrou do pai, o velho Antenor, dizer que Deus era brasileiro. Se o foi um dia, com certeza havia mudado de nacionalidade.
Pensando nas palavras de seu velho e honrado pai, o sambista sentiu vontade de dar na cara de toda aquela gente desonesta, mas dela jamais conseguiria se aproximar. Tomou Deus como desabafo para soltar toda a indignação que o corroía por dentro, questionando o porquê de ter nascido no seu Brasil: “Deus é um cara gozador, adora brincadeira/ Pois pra me jogar no mundo, tinha o mundo inteiro/ Mas achou muito engraçado me botar cabreiro/ Na barriga da miséria, eu nasci batuqueiro*/ Eu sou do Rio de Janeiro.”.
O homem, apesar da vida difícil que levava, jamais subtraíra qualquer coisa de alguém. Ao contrário, no morro dividia-se tudo: alimento, música, alegria e sofrimento. Ele não podia compreender como, além do exorbitante salário e de ajuda de custo até para moradia, aquela gente pudesse roubar seu povo tão necessitado de tudo. Irado, continuou seu diálogo com Deus, agora se dirigindo a seu filho: “Jesus Cristo inda me paga, um dia inda me explica/ Como é que pôs no mundo essa pobre coisica**.”. Desgostoso, achava que o melhor a fazer era dar o fora do país: “Vou correr o mundo afora, dar uma canjica/ Que é pra ver se alguém se embala ao ronco da cuíca/ E aquele abraço pra quem fica.”.
O sambista assentou-se no meio-fio e pôs-se a analisar seu tipo físico, resultado da penúria em que a família vivera anos a fio: “Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio/ Pele e osso simplesmente, quase sem recheio.”. Mas, por outro lado, lembrou-se que sempre tivera coragem pra defender os seus: “Mas se alguém me desafia e bota a mãe no meio/ Dou pernada a três por quatro e nem me despenteio.”. E arrematou: “Que eu já tô de saco cheio.”. E estava mesmo. Não aguentava mais ver tanta vileza e impunidade, estando os pobres sempre a pagar o pato.
O moço também sabia que tinha lá suas qualidades: “Deus me deu mão de veludo pra fazer carícia/ Deus me deu muitas saudades e muita preguiça/ Deus me deu perna comprida e muita malícia/ Pra correr atrás da bola e fugir da polícia.”. E até vaticinou: “Um dia ainda sou notícia.”.
Obs.: Esta letra foi censurada pela ditadura militar. Os asteriscos representavam:
*brasileiro
** pouca titica
Obs.: Ouça a música de Chico Buarque – PARTIDO ALTO
Nota: Favela, obra de Heitor dos Prazeres
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