MEU PAI – UM EXEMPLO DE VIDA

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Autoria de Luiz Cruz

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Meu pai, Antônio Faustino da Cruz, ou Antonio Joanito, como era conhecido pelos velhos amigos, nasceu em 1919, em Tiradentes, e faleceu no dia 5 de julho de 2014, em São João del Rei. Foi uma das figuras mais queridas de Tiradentes, em sua história contemporânea, testemunho de diversos fatos e da revitalização da cidade. Dono de memória privilegiada, conhecia cada família local e também do povoado de Bichinho, onde tinha muitos amigos. Gostava de anotar tudo, com letra desenhada e traço impecável. Tinha o hábito da leitura diária. Trabalhou como vendedor, barbeiro, servente, carteiro. Foi enfermeiro prático, voluntário, e, através dessa atividade, salvou muitas vidas.

Na tenra idade de cinco anos, ele vendeu pastel no cinema e teatro, atualmente Museu Casa Padre Toledo, circulando com um pequeno balaio, antes e durante as sessões. Não conhecia os números, mas recebia ajuda para lidar com o dinheiro. O ganho era revertido para a família numerosa. Aos seis anos, tornou-se coroinha, ajudando nas missas. Acompanhou o padre José Bernardino em muitas jornadas, tanto na zona urbana de Tiradentes quanto na rural. O transporte usado era o cavalo da paróquia, denominado Aventureiro. Ia à garupa. Tornou-se sineiro da Matriz de Santo Antônio. Trabalhou no Hotel São José, onde muitos dos hóspedes eram tuberculosos que vinham se tratar no Balneário de Águas Santas. Com a transferência do hotel para São João del Rei, ele o acompanhou. Ali, trabalhou como entregador de mantimentos e servente de pedreiro, juntamente com seu pai, Joanito. Os dois iam e voltavam a pé.

Aos doze anos, meu pai foi enviado à Barbacena para fazer um curso de auxiliar de enfermagem e, ao retornar, assumiu a antiga função de cuidar dos enfermos de Tiradentes e do povoado de Bichinho. Circulava por todos os cantos a pé ou de bicicleta, aplicando injeção e ministrando outros medicamentos, após seu trabalho. Aprendeu o ofício de barbeiro e teve um salão durante longos anos. Cuidava dos presos da Antiga Cadeia de Tiradentes, barbeando-os e lhes aplicando medicação, quando necessário. Foi tentar a vida no Rio de Janeiro, onde teve dificuldade para encontrar trabalho. Tornou-se vendedor de doces. Ao retornar, continuou com suas atividades anteriores, tanto em Tiradentes quanto em Bichinho. E, ao cuidar do senhor Vicente José da Costa, o Vicente Firmino, quando doente, e o visitar durante bom tempo, acabou se casando com sua filha mais velha, Antônia Augusta, a Dona Nica. O casal teve doze filhos, dos quais sobreviveram dez. Moraram em diversos locais até comprar uma casa na Rua Direita, onde nasceram alguns filhos e a família vive há mais de meio século. Enquanto os filhos dormiam, o casal tecia colares e pulseiras em prata, trabalhando até a exaustão, o que rendia um complemento orçamentário para a família.

Meu pai tornou-se funcionário dos Correios e Telégrafos, fazendo o serviço sozinho, recebendo e entregando a mala diariamente na estação. Tudo chegava e saia via trem. Entregava as correspondências e tinha cuidado especial com os telegramas. Entrou na política e foi eleito vice-prefeito, experiência partidária ímpar em sua vida. Ao se aposentar dos correios, reabriu seu salão de barbearia, onde ainda trabalhou vários anos. Paralelamente, fazia colchetes (fechos) para pulseiras e colares e também bolinhas para os terços. Adorava futebol, não perdendo uma partida do Aimorés Futebol Clube ou do Grêmio Esportivo, times rivais. Foi fidelíssimo aos amigos. Era chamado pela comunidade de Vitoriano Veloso como “o médico do Bichinho”. Tanto lá quanto em Tiradentes fez diversos partos. Além da saúde física, também cuidava da espiritualidade. Preparou muitos enfermos para a passagem desta para a outra vida. Concedeu extrema-unção. Banhou e barbeou defuntos. Muitas vezes foi a pé a São João del Rei comprar um caixão, trazendo-o nas costas, para fazer um enterro, propiciando um mínimo de dignidade a muitos conterrâneos.

Em sua casa, na Rua Direita, meu pai teve uma farmácia. Distribuía remédios aos doentes. Comprava grandes vidros de comprimidos atendendo aos que o procuravam, dia e noite, pedindo socorro e medicamento. Tornou-se Ministro Extraordinário da Eucaristia, levando a comunhão aos enfermos, bem como a palavra de Fé e Esperança. Participou de quase todos os Jubileus da Santíssima Trindade, ajudando a coletar as intenções das missas, apresentando-as ao iniciar as celebrações. Anualmente, ele preparava os santos protetores do ano, com sua bela caligrafia, e os distribuía nas primeiras missas de cada ano. Ao final das missas, de que participava, puxava a sua oração preferida: Alma de Cristo.

O dia que meu pai considerava mais importante era o de Corpus Christi. Para celebrá-lo, colocava seu terno branco e se revestia de alegria. Passava o ano todo picando papel branco para enfeitar a rua para a procissão do “Corpo de Deus”, celebração que considerava ser o evento mais importante da Igreja Católica. Devoto fervoroso de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, tinha sua imagem em frente a sua cama. Diariamente, rezava três terços. Foi ao Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida muitas vezes, de onde sempre trazia uma imagem sacra diferente. Gostava de receber visitas e apresentar aos turistas o seu quarto, com seus quadros de santos e imagens. Circulava por lugares inusitados, onde havia amigos. Adorava contar os casos antigos de Tiradentes aos visitantes. No seio de sua família, soube trilhar o cotidiano, utilizando seu sentido mais refinado, a audição. Ouviu cada um com seus problemas. Sempre teve uma palavra e uma oração para ajudar. Nunca deu ordem, apenas orientou e ofereceu seus ombros para o consolo.

Meu pai sempre foi um homem doente. Passou por diversas cirurgias. Sentia prazer em circular pelos quartos do hospital, visitando e rezando com os enfermos. Preparou-se para partir! Em sua última noite no Hospital Nossa Senhora das Mercês dizia que tinha uma viagem marcada. Arrancou os equipamentos e queria se levantar para a viagem. Após orações, acalmou-se. Dormiu e acordou melhor, tomou café, conversou. Depois passou mal, teve duas paradas cardiorrespiratórias e partiu. Iria completar noventa e cinco anos. Teve uma vida longa, com uma vasta história. Como um dos muitos exemplos deixados por ele, a solidariedade humana é, sem dúvida, o mais forte. Ele foi solidário a muitas pessoas e famílias nos momentos de tristeza e de dor. Soube, como poucos, amenizar o sofrimento físico e levar o conforto espiritual, através da palavra de Deus.

Adeus, meu saudoso pai! Seu exemplo é a maior herança deixada para seus filhos.

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25 comentaram em “MEU PAI – UM EXEMPLO DE VIDA

  1. Rogério Paiva

    Que história de vida! Que existência rica e proveitosa! Seu Antônio foi, de fato, um tiradentino de valor. Parabéns pelo texto. É inspirador.

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  2. Luiz Cruz

    Muito obrigado! A humanidade anda precisando de bons exemplos, especialmente de solidariedade. Meu pai foi uma pessoa, acima de tudo, solidária! Vamos torcer para que seus exemplos toquem corações.
    Para você meu abraço forte e amigo,
    Luiz Cruz

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  3. Maria Lucia de Carvalho

    Tio Luiz Cruz seu pai foi uma pessoa fantástica, um exemplo de vida e dignidade e que será sempre lembrado.

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  4. Luiz Cruz

    Olá Adalberto,
    É muito bom receber o seu retorno e saber que gostou da leitura de meu texto. Ao me propor fazer este texto, mergulhei profundamente nas minhas memórias, que na verdade, boa parte é a própria memória de meu pai. Pena que ele mesmo não foi captado pelo texto memorialístico. Gostava de escrever textos religiosos e até poesia.

    Na verdade nossos pais tiveram experiências parecidas, devido à contemporaneidade e nisso os locais, as distâncias e o próprio tempo se confundem e nos vemos projetados nas histórias, quando somos tocados de alguma maneira.
    Para você meu abraço amigo,
    Luiz Cruz

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  5. Adalberto D. Martins

    Luiz
    A história do seu pai nos faz criança de novo, mergulhando em cada passagem da vida do Sr. Antonio Faustino, como se tivesse contando a história do meu pai. Obrigado por nos trazer de volta ao passado, fazendo brotar eternas saudades.

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  6. Luiz Cruz

    Fernanda,
    Você não imagina minha alegria em receber sua mensagem, os sentimentos acabam se entrelaçando de vez.
    A perda nos gera circunstâncias que nos levam a refletir, rememorar, mergulhar nas mais recônditas lembranças.
    Como escrevi e percebo em sua mensagem, PAI é sempre um porto de segurança, mesmo que seja na memória, ou ainda redesenhado pelas circunstâncias. Afinal, cada um tem o seu. E vamos traçando nossas caminhadas através daquilo que aprendemos e herdamos deles. Eu também tenho muito de meu pai, como você também. Por isso, temos que nos orgulhar sobremaneira dessas heranças e modos de vidas.
    Gratíssimo por seu retorno e atenção.
    Forte abraço,
    Luiz Cruz

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  7. Fernanda de Moraes

    Luiz,
    suas sensíveis palavras demonstram um amor incomensurável e a leveza de fazer emergir, de uma vida dura de trabalho e dedicação, as alegrias que seu pai viveu, compartilhou e proporcionou. Fez-me lembrar muito de meu pai, que também trabalhou com tantas coisas, que percorreu tantos lugares, que foi tão devoto e que me fez muito do que sou.
    A saudade que fica e não se esvai dói, mas vai se transformando no que seu texto expressa: uma sensação de presença, de anjo da guarda, de vida perpetuada na semeadura de toda uma existência, colhida pelos que dela participaram. Mas também compartilhada com outros, como eu, que não tiveram a oportunidade de conhecer seu pai em vida, mas sentem o valor e a benção de sua existência.

    um abraço grande e apertado

    Fernanda

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  8. Walquir R. Avelar Junior

    Luiz, a ternura com amor se traduz com propriedade numa ou, talvez, na mais bela homenagem que já pude ler de um filho para seu pai. Você disse certo: o maior legado do saudoso “Antônio Joanito” é com certeza seu exemplo de solidariedade humana. Parabéns pela sua homenagem. De tão bela me permita compartilhá-la, pois é de um conteúdo tão rico, mas de simplicidade no relato de uma vida, que comove a todos que leem.

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    1. Luiz Cruz

      Olá Walquir,
      Sua presença aqui é significativa para mim. Você que é um profissional que trabalha com a escrita, sabe o quanto é difícil lidar com as palavras no papel. Acho que para melhor expressar, temos que nos valer do mais simples, daquilo que realmente nos toca e possamos transformar em comunicação. Escrever este texto foi um exercício introspectivo, de rememoração tanto minha quanto do meu próprio pai, que tinha prazer em sentar comigo e contar suas histórias, as quais sempre anotei.
      Meu pai foi muito solidário e muitas das vezes fez até o impossível para ajudar. Ao compartilhar este texto, com certeza você também estará homenageando o “Antônio Joanito”.
      Segue para você o meu abraço amigo,
      Luiz Cruz

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  9. Elsa M. d'Amico

    Olá Luiz,
    Que belo e emocionante texto. A história de vida de seu pai vai se perpetuar como um exemplo de vida. Fique orgulhoso por ser filho de um grande homem, e, certamente, as suas qualidades estão circulando também no sangue de seus filhos.
    Abraço

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    1. Luiz Cruz

      Olá, Elsa
      Que bom receber seu retorno. Melhor ainda é saber que leu o meu texto e gostou.
      Meu pai foi uma grande figura, você tem toda razão, devemos ter muito orgulho de sua história e de seus exemplos que, aliás, em tempos de pós-modernidade, andam cada vez mais reduzidos.
      Para você meu abraço amigo,
      Luiz Cruz

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  10. Roberto B. Reis

    Meus sentimentos caro amigo Luiz!
    Ao ler o texto lembrei-me de meu pai que faleceu em 2012, certamente fará muita falta como o meu tem feito.
    Consola-nos a certeza de que deixaram bons frutos nesta terra.
    Abraços
    Roberto Reis

    Responder
    1. Luiz Cruz

      Meu caro Roberto
      Que bom receber seu retorno e saber que leu o texto sobre meu pai.
      Você que perdeu o seu recentemente, bem sabe o quanto é difícil e a falta que nos faz.
      Os bons frutos plantados por nossos pais é o que nos dão força e ajudam a nortear nossa caminhada.
      Receba meu abraço amigo,
      Luiz Cruz

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  11. Terezinha

    95 anos muito bem vividos.
    Luiz, gostei muito de conhecer a história de seu pai. Que pena, que o vi algumas vezes e não cheguei a falar com ele.
    Parabéns pelo belo texto.
    Terezinha

    Responder
    1. Luiz Cruz

      Terezinha
      Minha amiga de tantos tempos e tantas histórias em Tiradentes.
      Meu pai circulou por todos os lugares. Participou todos os dias da Novena da Santíssima Trindade deste ano. Acompanhou tudo com uma lucidez inacreditável. Foi pena você não ter dito um dedinho de prosa com ele.
      Que bom que gostou do texto e está recomendando sua leitura.
      Meu abraço forte para você.
      Luiz Cruz

      Responder
    1. Luiz Cruz

      Olá, Lidoane
      Grato pela leitura e pelo retorno. Escrever não é nada fácil. É “lutar com as palavras” e nos momentos em que somos estremecidos pelas lembranças, tudo fica mais complexo.
      Fico feliz por você ter gostado da homenagem ao meu pai.
      Meu abraço amigo para você,
      Luiz Cruz

      Responder
  12. Andre Dangelo

    Prezado Luiz, lindo depoimento de vida. Digno de um pessoa dedicada à história e á memória como você é. Passa realmente para nós a figura iluminada que foi seu pai e a sua vida, plena de solidariedade aos próximo e cultivador dos valores tradicionais da nossa cultura. Tiradentes perde uma grande figura, mas deixa um represente à altura dessa herança. Nossa solidariedade a você a toda sua família. Podem ficar tranquilos que seu pai já está no descanso dos justos.

    Abraços,

    Andre Dangelo

    Responder
    1. Luiz Cruz

      Meu Caro André,
      Muito obrigado pela leitura do texto e por seu retorno, que chega em momento ímpar. Meu pai teve uma vida longa e devemos compreender que todos devem partir um dia. Mas como dói! Como é difícil a perda de um ente querido!
      Tiradentes perdeu seu mais velho ancião e uma figura tão plural.
      Receba meu abraço amigo,
      Luiz Cruz

      Responder
  13. Luiz Cruz

    Matê,
    Grato pelo seu retorno, meu pai foi uma figura ímpar em termos de Fé e Caridade, conforme você colocou.
    Um abraço amigo,
    Luiz Cruz

    Responder
  14. Ivan Alves Filho

    Querido Luiz
    Este texto, por si só, justifica a existência de seu pai. Você é, sem dúvida, uma das maiores obras dele.
    Com o abraço do amigo
    Ivan

    Responder
    1. Luiz Cruz

      Meu querido amigo Ivan,
      Grato pelo retorno e pela leitura do texto. Você que circula pelas ruas de Tiradentes, agora poderá imaginar a figura de meu pai com sua longevidade toda e sua história fascinante. É um belo personagem da história contemporânea da cidade.
      Meu abraço forte,
      Luiz Cruz

      Responder
  15. Matê

    Você pode se orgulhar de ser filho de um homem tão virtuoso, que só praticou a Fé e a Caridade. Ele teve a nobreza de caráter para levar uma vida em que só espalhou o Bem. Com admiração, deixo aqui meu voto de pesar.
    Abraço,
    Matê

    Responder
  16. Luiz Cruz

    Lu
    Gratíssimo por sua atenção de sempre.
    Ao ler o texto aqui, juntamente com seus comentários, fui invadido por uma forte emoção. A perda dói e nos entristece profundamente. Realmente, o meu pai foi um exemplo de cidadão solidário e soube como poucos ajudar naqueles momentos difíceis.
    Um forte e amigo abraço para você,
    Luiz Cruz

    Responder
  17. LuDiasBH Autor do post

    Luiz

    Estou profundamente comovida com o texto que você fez sobre seu pai. Por pouco não cheguei às lágrimas. Que homenagem mais linda! Quanta sensibilidade!

    Ao ler a história de vida do senhor Antônio Faustino da Cruz senti uma grande vontade de tê-lo conhecido. Ainda assim eu o amei, através de suas palavras. Sugiro que a vida dele seja transformada em livro, pois tem muito a ensinar às gerações de hoje e às futuras.

    Encantou-me, sobretudo, a sua solidariedade para com as pessoas, a bondade que emanava de sua alma, como uma fonte perene de amor e sabedoria que, com certeza, continuará a jorrar muitas dádivas no coração de sua família e daqueles que o conheceram. Ele foi, realmente, um homem na exata concepção da palavra.
    Ponho-me a imaginar quantos homens do tipo dele ainda podem ser encontrados neste nosso mundo…

    Destaco aqui a frase:
    “Nunca deu ordem, apenas orientou e ofereceu seus ombros para o consolo.”.

    Aceite os meus sentimentos.
    Grande abraço,

    Lu

    Responder

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