Autoria de Lu Dias Carvalho
Nada me encantava mais do que passar o Natal na cidadezinha onde viviam meus avós. Mal entrava dezembro já começava a azucrinar meus pais para que me dessem a data exata de nossa viagem. Se a demora era muita, implorava para que me deixassem ir à frente, coisa que nunca acontecia, mas que não me custava tentar. Não pensem os leitores que o meu desassossego devia-se à comilança que se instalava naquele mês, ou por ficar encarapitada com os primos nas árvores frutíferas do pomar ou à beira do forno de biscoitos, provando cada leva que saía fumegando, ou ainda em volta dos tachos de cobre, borbulhantes de doces das mais diferentes qualidades. O meu encantamento estava bem além do paladar.
A minha fascinação desmedida era pelos presépios. Começava desde a hora em que se preparava o material até o momento em que eram armados. Havia um ritual próprio:
- Primeiro, preparavam-se as rochas: folhas de jornal eram dispersas pelo chão e sobre elas era passado um grude feito de farinha de mandioca..
- Imediatamente vinham com o carvão e a malacacheta (mica) moídos e espalhados sobre as folhas. Algumas pessoas, em vez de carvão, costumavam usar borra de café. A diferença ficava apenas na cor das rochas: com carvão ficavam bem pretinhas, com borra de café ficavam ocras. O mais importante era a malacacheta que dava o toque final às supostas pedras que faiscavam como se verdadeiras fossem.
- As folhas eram colocadas ao sol. Devia-se ter o cuidado de revirá-las de um lado para o outro, para que ficassem bem secas e resistentes.
- Tendo tudo preparado, vinha a armação do presépio propriamente dita. A sustentação era feita com caixotes ou caixas de papelão.
- Em volta e subindo pelas paredes (normalmente o presépio era feito tomando-se o ângulo entre duas paredes) vinham as rochas que eram feitas afofando – com a mão fechada por dentro – as folhas de jornal pintadas de modo a tomar o formato de pedras.
- As pedras simuladas eram colocadas – uma a uma – bem juntinhas, com pregos ocultos, de modo que se tinha a impressão de estar diante de um rochedo.
- No ponto mais alto era instalada a estrela Dalva que tinha por finalidade guiar os três reis magos: Belchior, Baltazar e Gaspar.
A segunda parte do presépio era a mais primorosa: arrumar o local da gruta onde nasceria o Menino Jesus.
- Cerca de 10 dias antes o arroz já tinha sido plantado em pequenas vasilhas de jeito que, ao armar o presépio, ele já se encontrava grandinho e verdejante. Os pequeninos vasos eram belamente organizados entre as rochas, como se o arroz ali tivesse nascido.
- Bacias de musgo também enfeitavam a gruta.
- Areia fininha e branca era colocada em toda a entrada.
- No meio da gruta, punha-se uma vasilha com água e, dentro dela, um espelho dando a impressão de um lago.
- Dentro do lago eram colocados sapos, peixes, cisnes, patos e outros bichinhos aquáticos.
- Fora, na areia, espalhavam-se bois, vacas, carneiros, pombinhos e tudo o mais que fosse bicho. Alguns presépios tinham até dinossauros.
A manjedoura não podia faltar no presépio, sendo uma peça de fundamental importância. Em volta dela – além dos animaizinhos – havia imagens de Maria, José, os Reis Magos e todos os santos que tivessem na casa. Alguns presépios eram bem ecumênicos, pois traziam Iemanjá, Buda, Shiva, Super-Homem e outros mais. O Menino Jesus só era colocado depois da Missa do Galo, ou seja, depois da meia-noite, quando a família reunida rezava o terço e fechava a cerimônia cantando Noite Feliz.
Durante o período em que os presépios ficavam montados, grupos da comunidade saíam tocando e cantando de casa em casa, visitando o Menino Jesus. Após a cantoria, saudando o real dono da festa, havia um gostoso café, acompanhado de queijo, requeijão, biscoitos variados, bolos, broas, queijadinhas, beijus e pão de queijo. Para os chegados aos aperitivos, não faltava uma branquinha, assim como quinados e licores. Da casa mais modesta à mais rica, todos eram recebidos com imensa alegria, como se formassem uma só família. Também é impossível esquecer-me das pastorinhas que animavam as noites de dezembro e início de janeiro, não apenas na cidade, mas nas roças e sítios.
Quando o desmanche do presépio aproximava-se, os reis magos eram colocados de frente para a saída da gruta, ou seja, de costas para a manjedoura. Para minha tristeza, dia 6 de janeiro era o prazo para que todo aquele encantamento se evaporasse e a vida voltasse ao normal. Restava-me o consolo de que outros natais viriam pela frente. Mas era preciso esperar muito tempo. A tristeza só não era maior, porque começavam os preparativos para o Ano Novo, embora eu me revoltasse com a morte de alguns dos animaizinhos representados nos presépios. Minha cabeça de criança não conseguia entender, como podiam matar os bichinhos do Menino Jesus. Achava que Ele ficava muito triste com as pessoas. E ainda acho! Em protesto, passei a não comer carne.
Nota:
Agradeço a participação do meu tio Antônio Avelino e da minha tia Davina que me ajudaram a reviver estas lembranças, ao detalharem todo o processo do Natal de tempos idos.
Nota: Cerâmica do Vale do Jequitinhonha
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