Autoria de Lu Dias Carvalho
O blog VÍRUS DA ARTE & CIA. homenageia todas as mulheres do mundo na homenagem que presta a Henrietta Lacks.
Foram cultivados 50 milhões de toneladas de minhas células que, se enfileiradas, poderiam dar volta à Terra por três vezes. (Henrietta Lacks)
Se todas as minhas células, reproduzidas ao longo de seis décadas, se juntassem, teriam massa e volume suficientes para construir 1 bilhão daquela que fui eu um dia. (Henrietta Lacks)
Meu nome terreno é Henrietta Lacks, negra, pobre e descendente de cultivadores de tabaco. Diziam os conhecidos que eu era a mais bonita das filhas da família Lacks. Ainda adolescente, casei-me com David, meu primo-irmão, fato comum no meu povoado, onde quase todos eram parentes. Trabalhávamos para uma rica família branca. Para fugirmos do preconceito que nos fustigava e de uma vida insossa e sem esperanças, David e eu nos mudamos para uma cidade grande. A vida lá também foi cheia de dificuldades e o preconceito também existia, mas, pelo menos, tínhamos a esperança de construir uma vida mais alicerçada para receber a nossa prole.
Fui uma boa esposa e uma jovem e dedicada mãe. Tive três filhos e duas filhas, dentre eles Elzie, a mais velha, minha menina doentinha, que tanto precisava de mim. Mas fui obrigada a abandoná-los muito cedo, de modo que a minha Elzie foi à minha procura, quatro anos mais tarde, depois de ser jogada num hospício exclusivo para negros. Só Deus sabe o que passaram meus filhos, ainda pequeninos, com o vazio da minha ausência. Sei que o meu amor foi substituído por uma infância de agressões, abuso sexual, miséria, abandono e assassinato. Minhas pobres crianças! Por que uma mãe deve ter filhos, se não os pode criar? Melhor seria ter nascido estéril.
Em 1951, aos 31 anos e na flor da idade, como diziam as pessoas da época, fui dizimada por um câncer no colo do útero, uma bola de carne intumescente que me sugava a vida. Pesava, na época, minguados 49 quilos, carcomida pela doença. Os tumores, comprimindo os meus rins, levaram-me à morte por septicemia – o envenenamento do sangue. Como veem, meus caros leitores, a vida não me ofereceu muito. Mas é a partir de minha morte que minha história começa. Peço que abram o coração para ouvirem a voz do meu espírito.
O hospital, onde tentei burlar a morte, trabalhava com uma famosa faculdade de medicina. E era em seus laboratórios que trabalhava o incansável pesquisador George Gey, ainda nos seus 50 anos. Tentava arduamente conservar e reproduzir tecidos humanos em laboratórios. As células coletadas acabavam sempre morrendo, depois de se reproduzir umas poucas vezes, para tristeza de Gey. Não foram poucas as vezes em que o desencanto toldou sua esperança. Mas ele continuava perseverante em seu trabalho. Queria salvar vidas.
Meu corpo cedeu a George Gey um pequeno pedaço do tumor que me ceifou a vida. Suas células cancerígenas, ao serem cultivadas em laboratório, expandiram-se numa velocidade espantosa. E foram batizadas com o nome de HeLa. Observem que se referem às duas primeiras sílabas do meu nome. Elas se tornaram de suma importância para o mundo das pesquisas científicas. Foram e são responsáveis pelo avanço da medicina, possibilitando descobertas inestimáveis para a humanidade. Mas também trouxeram lucros exorbitantes para os laboratórios que, até os dias de hoje, as reproduzem e comercializam. Elas têm sido produzidas em escala industrial e contabilizam mais de 60.000 artigos científicos publicados, no momento, ao longo dos 60 anos após a minha partida. Dizem que basta entrar na internet, para encomendar uma amostra de minhas células e recebê-las pelo correio. Contudo, minha família continuou vivendo numa miséria impossível de ser descrita. Ninguém se preocupou em ajudá-la, embora ganhassem rios de dinheiro com as células de sua genitora.
Dias atrás, assombrei-me com a informação de que, se todas as minhas células, reproduzidas ao longo de seis décadas, se juntassem, teriam massa e volume suficientes para construir 1 bilhão daquela que fui eu um dia. Traduzindo em números, foram cultivados 50 milhões de toneladas de minhas células que, se enfileiradas, poderiam dar volta à Terra por três vezes. Mesmo não tendo ressuscitado, como prega meu credo, eu me tornei imortal. Mas poucos souberam disso, e ainda são poucos a saber.
É fato que Gey e eu nunca nos encontramos. Tampouco me pediu permissão ou eu lha dei para que fizesse pesquisas com partes de meu corpo doente. Nem sequer fui informada da subtração de uma pequena parte de minhas células cancerosas. Não que elas tivessem qualquer importância para mim, ao contrário. Mas seria bom ser respeitada ainda que à beira da morte. Eu teria morrido feliz, se soubesse que a minha vida teve sentido, embora tenha sido tão passageira. Somente 22 anos após a minha partida, meus filhos tomaram ciência dos fatos. E de uma maneira cruel.
Sinto-me agora em paz, ao saber que milhões de pessoas se beneficiaram com as células HeLas, que contribuíram para os avanços científicos na área médica, sendo responsáveis pela vacina contra a poliomelite, a vacina contra o vírus do papiloma humano (HPV), e os testes feitos com o vírus HIV, em busca de uma vacina, e, principalmente, por se encontrar na base da pesquisa do câncer. Minhas células já foram clonadas, hibridizadas com plantas, expostas à radioatividade e levadas ao espaço para verificar seu crescimento na falta de gravidade.
Contudo, lamento profundamente a indiferença com que as instituições científicas trataram minha família. Meus filhos nunca foram informados de que uma pequena parte do corpo da mãe continuava viva, multiplicando-se velozmente nos laboratórios. Somente nos anos 70, os fatos chegaram até eles por vias informais. Tempos depois, a divulgação dos fatos foi de uma crueldade impensável em relação aos meus entes queridos. Eu passei a ser coisa. Meramente coisa. Deixei de ser sujeito para me transformar em objeto. Minha família sofreu muito. A família dos heróis de guerra, por muito menos, são condecoradas e recebem ajuda do governo. E a minha era extremamente pobre e negra. Eram os tempos da sordidez da segregação racial. Prontuários médicos referentes ao meu tratamento foram publicados sem que minha família tivesse autorizado qualquer consulta a esses. Tornei-me patrimônio nacional, não como pessoa, mas como número. Quando pediram à minha filha Deborah para doar sangue, ela pensou que estavam preocupados com sua saúde e queriam verificar se ela teria o mesmo câncer que me matou. Na verdade, tratava-se de mais pesquisas. Queriam o DNA dos meus para fazer o mapeamento genético de minhas células.
A pobreza foi uma constante na vida de minha família. Sempre fomos pobres e sem instrução. Talvez, por isso, nunca nos levaram a sério. Meu filho mais novo, Zakariyya, cumpriu pena por assassinato. Minha filha Deborah tornou-se uma mulher simplória e extremamente sofrida. Chegou a pensar que havia uma vila inteira na Inglaterra, povoada com clones de sua pobre mãe. Em 2009, minha pequena Deborah morreu vitimada por um ataque cardíaco.
Um livro com a minha história foi publicado com o título A Vida Imortal de Henrietta Lakes, com bastante sucesso, já tendo recebido vários prêmios. Como diz o velho adágio: “Antes tarde do que nunca”. Dizem que é uma reparação a mim, pelo que representei para a medicina. Um esforço para me arrancar do anonimato em que sempre vivi. Gostei, em especial, da passagem em que meu filho Zakaryyah, acompanhado por sua irmã Deborah, ao visitar o laboratório Johns Hopkins, surpreendeu-se com a cor de minhas células e perguntou:
– Por que elas não são pretas, se minha mãe era uma mulher negra?
Fiquei comovida com a observação de Deborah ao vê-las:
– Como elas são bonitas!
Obs.:
Apenas os dados referentes à vida de Henrietta Lacks, incluindo sua doença e sua família foram coletados e postados no meu texto. Fiquei profundamente comovida com sua história e resolvi apresentá-la a meus leitores, usando a primeira pessoa, o que não acontece no livro. Portanto, o restante do texto não corresponde ao livro. Provém de minha imaginação.
Nota: Imagem copiada de http://scienceblogs.com.br
Sugestão de leitura:
A Vida Imortal de Henrietta Lacks/ Rebecca Scott
Tradução de Ivo Korytowski
Companhia das Letras
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Que texto maravilhoso, Lu!
Fiquei indignado e me fazendo questionamentos. Parabéns pelo texto e Dia das Mulheres.
Que a Henrietta esteja em paz.
André
Existem coisas que realmente mexem com a nossa sensibilidade e nos deixam indignados.
Dentre elas estão as injustiças.
Abraços,
Lu
Sei que a pergunta não foi dirigida a mim. Porém, Hannah Arendt foi uma pensadora (filósofa) alemã de origem judia que foi banida de seu país pelo nazismo.
Muito antes que o dia 8 de março fosse instituído como sendo o Dia Internacional da Mulher, ela já lutava pela igualdade e também mesmo antes que a ONU publicasse a tal DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS,ela já levantava sua voz contra as atrocidades que ocorriam e ainda ocorrem ao redor do mundo.
Foi baseando-se em sua história e na vida de Madre Teresa De Calcutá que o ano de 1975 foi designado pela ONU como sendo o Ano Internacional da Mulher.
Desculpe a intromissão .
Fique em paz!
Ju
Nosso blog é ecumênico.
Somos uma família em que todo mundo pode dar o seu pitaco.
A vida de Hannah Arendt despertou a minha curiosidade.
Deve ter sido mesmo uma grande mulher.
Muito obrigada pelas informações.
Abraços,
Lu
Belo texto Lu.
Só podemos agradecer a Henrietta e que descanse em paz.
Beijinhos
Celita Linda
A humanidade possui uma dívida de gratidão muito grande com HL.
Graças a ela, a Ciência progrediu muito no campo em questão.
Abraços,
Lu
Ei Lu, lindo texto.
Henritta e sua células avançaram rumo à ciência, e sua família pobre e sem conhecimento continuou no esquecimento. Típico dos poderosos. Apesar de desconhecida por grande maioria, a origem da HELA jamais será alterada.
Pat
É incrível como o ser humano pode ser tão indiferente ao sofrimento do outro.
As indústrias farmacêuticas são extremamente ambiciosas, visam apenas o lucro.
A família de HL jamais poderia ser esquecida.
Abraços,
Lu
Lindo!
Um desabafo e ao mesmo tempo um protesto e um alerta.
Muitas heroínas anônimas e injustiçadas, dedicam sua vida ao bem da humanidade e nem sequer são mencionadas pelos seus favorecidos.
Algumas mulheres da capital do Quênia – Nairóbi – para burlarem a miséria, a fome e outros cânceres filhos do orgulho e do egoísmo humano, submetem seus corpos a “homens” sem escrúpulos.
Elas se tornaram conhecidas da sociedade científica por serem imunes ao vírus HIV. Mesmo tendo relações sexuais com pessoas que já desenvolveram a AIDS e sem os devidos cuidados elas não contraem o vírus mortal.
Tal qual aconteceu com Henrietta Lacks, elas não são citadas em nenhum estudo científico, engano-me, certa vez uma matéria foi feita sobre elas com o título , podem acreditar, “AS PROSTITUTAS DE NAIRÓBI”, a manchete deveria ter sido outra, ” A ESPERANÇA QUE VEM DE NAIRÓBI “.
“A graça é um reflexo do amor sobre um fundo de pureza. A pureza é a própria mulher.”
Jules Michelet
Ju
Você tem toda a razão.
Existe num mundo uma inversão desumana de valores.
Enquanto isso, ídolos fúteis são consagrados pela mídia e outras fontes.
Os verdadeiros heróis e heroínas, em sua grande maioria, passam despercebidos pela História, sendo muitas vezes citados apenas como números.
Também concordo consigo quanto ao título dado às mulheres de Nairóbi.
O índice de AIDS nos países africanos é alarmante.
É um milagre que elas consigam ficar imunes ao vírus.
Grande abraço,
Lu
Lu Dias
Parabéns pelo dia e pela homenagem que fizeste.
Eu homenageio Hannah Aredent. Conhece?
Abração
Mário Mendonça
Mário
Obrigada!
Eu não me lembro de quem seja Hannah Aredent.
Fale um pouquinho sobre ela.
Abraços,
Lu
Lu Dias
Conheci essa filósofa judia-alemã num filme a que assisti recentemente, onde ela fala sobre a banalidade do mal
Abaixo um breve relato sobre ela:
http://outraspalavras.net/posts/a-atualidade-brutal-de-hannah-arendt/
Mário
Realmente Hannah Aredent foi uma grande mulher.
Depois quero dedicar um post a ela.
Obrigada!
Abraços,
Lu
Lu,
Parabenizo a todas as companheiras deste blog, leitoras e colaboradoras, pelo seu Dia. Sejam felizes no dia a dia, com pequenos e grandes acontecimentos!
Agradeço a você pelo belo texto acima, muito bem elaborado na 1ª pessoa, como foi destacado. Trata-se de uma história da humanidade, a serviço de todos nós. Comovente!
Quero destacar neste espaço algumas mulheres de relevância na arte literária, que com suas escritas encantam gerações, pois são todas imortais. São elas, entre tantas: Lygia Fagundes Telles; Ruth Guimarães; Lya Luft; Cecília Meireles; Clarice Lispector; Heloisa Seixas; e Adélia Prado. Desta última, coloco um poema magistral, que realça o companheirismo e o amor:
Casamento
(Adélia Prado)
“Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.”
Abraço, Alfredo Domingos.
Alf
Recebo comovida a sua homenagem.
Meus agradecimentos em nome de todas as mulheres que aqui chegam.
O poema é terno… maravilhoso.
As citadas são mesmo grandes mulheres.
Abraços,
Lu
LuDias
Maravilhoso! Emocionante!
Talvez tenha sido este o seu escrito mais comovente e que me trouxe muitas outras indagações, reflexões sobre o ser humano.
É incrível a leitura que você fez da vida de Henrietta Lacks, dando-lhe voz, na primeira pessoa, para contar a grande injustiça que a ela e a toda a sua família foi feita pela sociedade.
Triste constatação de que ela foi coisa, porém, uma coisa maravilhosa, extraordinária, que mudou os rumos da medicina, graças a um cientista, mas que levou também fortuna a alguns, embora legado saúde a milhares e milhares de pessoas.
Henrietta Lacks não foi tão somente aquela coisa presente de Deus aos seres humanos, foi muito mais do que isto. Foi isto que seu texto nos trouxe à lume.
A vida de Henriquetta foi uma grande lição, mostrando que todos somos importantes no contexto da humanidade como um todo. Se ela não tivesse existido, com certeza, George Gey não teria chegado ao sucesso nas suas pesquisas e milhares de pessoas não teriam sido salvas.
É importante entendermos que não podemos cultivar o egoísmo, mas, acima de tudo, devemos ter como fundamento de nossa vida a compaixão e a solidariedade, palavras que tanto gosto de usar, pois, infelizmente mesmo com o sucesso de George Gey, não houve ninguém que trouxesse à família Lacks apoio. Só pensaram no projeto, no lucro que iriam obter, vendendo a descoberta.
Acredito que sequer houve, com exceção de George Gey, qualquer pensamento voltado àqueles sentimentos acima mencionados, talvez porque o amor seja uma palavra que não consta no dicionário do capitalismo.
Parabéns!
Ed
Eu também me emocionei muito ao ler sobre a vida de Henrietta Lacks.
E, para transmitir a minha emoção, eu assumi sua identidade, pois assim escreveria com o coração.
Ao terminar o texto, fiquei comovida o que havia escrito.
Penso que senti-me como ela, enquanto escrevia sua história.
Abraços,
Lu