Autoria de Luiz Cruz
No tempo da escravidão/ Quando o senhor me batia/ Eu rezava para Nossa Senhora/ Meu Deus, como a chibata doía! (Cantiga de Congado)
O arquiteto e pesquisador Sylvio de Vasconcellos foi um dos pioneiros a estudar a ocupação do território que veio a ser Minas Gerais. Ele resumiu seus estudos em um esquema fácil para a compreensão, dividindo o período em etapas: 1ª: 1700/1720 – o estabelecimento de um arraial, ao longo de um caminho e em torno de uma capela; 2ª: 1710/1750 – a edificação da matriz e a elevação do arraial à categoria de vila; 3ª: 1750/1800 – a saída das irmandades da matriz para a construção ou ampliação de suas capelas; 4ª: 1800/( ? ) – o retorno das irmandades para a matriz devido a circunstâncias econômicas, principalmente em consequência da queda da produção de ouro.
O esquema proposto por Sylvio Vasconcelos coincide exatamente com a construção da Capela de N. Sr.ª. das Mercês, de Tiradentes, em meados do século XVIII. Ela se encontra no largo com o mesmo nome da padroeira do templo, sendo considerada um primor do rococó mineiro. A edificação está alocada no meio do terreno, cujo acesso dá-se através de pequena escada. A capela encerra a paisagem do largo. No adro, fechado por mureta e portão em ferro batido, há uma calçada em blocos irregulares de pedra xisto verde, e no entorno da capela está o cemitério da irmandade.
A fachada da capela é simples, com a porta principal em almofadas e quatro janelas rasgadas, numa delas está a sineira. O frontão possui pequeno óculo central e uma cornija linear, que termina em volutas, encimadas por dois pináculos. O centro é elevado com cruz ladeada por dois pináculos menores. No tímpano do frontão encontra-se o brasão mercedário em argamassa. A fachada frontal tem embasamento em grandes blocos de pedra arenítica e é divida pelos cunhais em três tramos. No conjunto destaca-se a seteira retangular, com alisar em pedra. Nas fachadas frontal e laterais há embasamento do mesmo material; na posterior, apenas no tramo central não foi utilizada a pedra e nesse pano há apenas uma seteira vertical. Ainda no embasamento estão as aberturas dos respiradouros. Nos cunhais frontais laterais foram instalados dois grandes lampiões em ferro fundido, cujo braço é formado por um corpo de dragão que lança enorme labareda. Seu corpo dilui-se formando rocalhas. O telhado é em blocos, um para a capela-mor e outro para a nave, ambos em duas águas, e seus beirais são em cachorros. Nas laterais, o telhado é em água única, com beiral em beira seveira.
A capela abriga o altar-mor decorado com talha rococó e pinturas. O douramento do entalhe, as pinturas artísticas e as decorativas são de autoria de Manuel Victor de Jesus (c. 1755/60 – 1828). O camarim é pintado com rocalhas robustas, movimentadas, coloridas, com ramalhetes e vasos florais, além de frisos. No trono está a policromada imagem de N. Srª das Mercês, com os braços abertos, segurando o manto. Lá também se encontra imagem de São Gonçalo do Amarante. O frontispício do altar-mor abriga dois nichos laterais com as imagens de São Pedro Nolasco e São Raimundo Nonato, fundadores da Ordem Mercedária. A mesa do altar foi decorada com entalhes dourados, pinturas florais e rocalhas pintadas com pó de ouro e tinta marrom para destacar o sombreado e a volumetria. Para o altar, o presbitério, que é mais elevado, três degraus em pedra xisto verde conectam os espaços da capela-mor. A talha dourada, colunas, caneluras, faiscados, florões, sacrário com o Cordeiro de Deus sobre nuvens e o escudo mercedário compõem o frontispício.
O forro da capela-mor é formado por caixotões apresentando cenas alusivas a N. Senhora. Intercalando os quadros emoldurados com frisos, pinhas e folhas douradas, criando contraste entre os tons fortes, o branco e o ouro. Nas laterais, o forro é arrematado por cimalha faiscada com rosáceas e folhas entalhadas e douradas, compondo a demarcação dos caixotões. O frontispício e o forro são iluminados por um par de óculos das laterais. Há um barrado em tom azul forte, descoberto durante a última obra de restauro, que se encontrava debaixo de várias camadas de tintas. O arco-cruzeiro é bem alto, decorado com marmorizados ou pedra de fingimento, frisos e caneluras douradas. No seu centro há um escudo bem ao gosto do estilo rococó.
Na nave, dois púlpitos em madeira, instalados frontalmente, receberam pinturinhas de autoria ignorada. Um pequeno cancelo torneado em jacarandá, em bolachas, separa a nave da capela-mor. O coro é desprovido de decoração, com apenas a balaustrada torneada, e duas janelas com caixilhos com vidros coloridos. Dele se tem acesso à sineira. O forro da nave traz pintura arquitetônica, de origem ítalo-portuguesa, simplificada com apenas um balcão, com protuberâncias nas quinas, onde se encontram figuras de anjos. Ainda no balcão aparecem figuras, vasos floridos, ramalhetes, rocalhas, guirlandas e até fragmentos de corrente. Nas seções menores do retângulo do forro, junto ao arco-cruzeir, está São Raimundo Nonato; junto ao coro está São Pedro Nolasco. No centro está a imagem de N. Srª das Mercês coroada, sobre bloco de nuvens, cercada por nuvens e anjos. Na base da moldura encontram-se cinco anjos de corpo inteiro, ladeados por cabeças de anjos, aladas. O forro em berço é arrematado por cimalha robusta em faiscado branco, azul e vermelho.
A nave é iluminada por dois pares de óculos, através dos quais podemos apreciar a solidez e largura dos muros da igreja, edificados em taipa de pilão. Na sacristia destacam-se um arcaz de madeira, com entalhes em rococó, sobre o qual um oratório abriga um crucifixo e um lavabo em pedra xisto, com arremate em argamassa. Há um conjunto de gravuras antigas, entre elas litografias de exímia qualidade. O forro é artesoado, embora simples e pintado com cores fortes.
A Irmandade de N. Srª das Mercês pertencia aos Pretos Crioulos, ou seja, aos pretos nascidos no Brasil e também aos mulatos. Até o presente, a irmandade mantém a tradição de acompanhar o cortejo fúnebre de seus irmãos e faz o dobre de sino. O paisagismo do cemitério foi projetado pelo artista Roberto Burle Marx na década de 1980.
O Projeto Educação Patrimonial – IHGT/BNDES – realizou visitas guiadas à Capela de N. Srª das Mercês, durante e após o restauro, fundamentais para a compreensão desse monumento sacro, cultural e arquitetônico, e, para se ter ideia da complexidade do trabalho de restauro artístico que é oneroso e requer mão de obra altamente especializada. Foi restaurada através de projeto que teve a Oficina de Teatro Entre & Vista como proponente. A Paróquia Stº Antônio e o IPHAN acompanharam a obra com o apoio financeiro do BNDES. O restauro artístico coube à empresa Anima Conservação, Restauro e Arte, o arquitetônico com a Tempus Empreendimentos. Sua entrega ocorreu no dia 26/07/2015, com a participação de 16 ternos de congados das seguintes localidades: Tiradentes, Dores de Campos, Carandaí, Ouro Branco, Miguel Burnier (Ouro Preto), Congonhas, Senhora de Oliveira, Conceição da Barra de Minas, São João del-Rei, Santa Cruz de Minas, Santana do Jacaré, Raposos e Conselheiro Lafaiete, que integraram o 2º Encontro de Congados de Tiradentes.
Nota: fotos do autor do texto
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Admiro muito seu trabalho.Parabéns. Elisa Regolin (SJBVista)
Mais um primoroso texto do escritor Luiz Cruz, valorizando a cultura e história de Tiradentes!
Parabéns e afetuoso abraço,
Maristela Knowles
Olá Maristela,
Gratíssimo por sua presença aqui no Virusdaarte.net e por acompanhar os temas relacionados com Tiradentes. É importante registrar e compartilhar o que vem ocorrendo de bom com nosso Patrimônio Cultural e Artístico. Assim que puder, venha nos visitar.
Abraço amigo e saudoso!
Luiz Cruz
Luiz
Como sempre, seus textos são primorosos e carregados de qualidade. Sinto-me honrado em ser seu amigo e ter o privilégio de aprender tanta coisa boa com você. Parabéns!
Thonny,
É um prazer saber que está acompanhando minhas publicações aqui. Quando tiver tempo, venha visitar a Capela de Nossa Senhora das Mercês que está uma beleza!
Abraço,
Luiz Cruz
Luiz
Encanta-me o amor e o cuidado que você dedica ao Patrimônio Histórico de Tiradentes. É uma pena que não surjam outras pessoas como você, à frente de nossas cidades históricas.
Fiquei deslumbrada com a descrição que faz da Capela Nossa Senhora das Mercês. Que história linda! Que bem precioso!
Ela já se encontra na minha agenda, ao visitar Tiradentes.
Abraços,
Lu
Mais uma boa contribuição sua, Luiz. Parabéns!
Com o abraço do
Ivan.
Meu querido amigo Ivan,
Tiradentes está com mais uma igreja totalmente restaurada. A Capela das Mercês recebeu um trabalho de restauro fantástico. A situação de conservação era crítica, devido ao ataque de cupins e águas pluviais.
Assim que passar por Tiradentes, não deixe de visitar este templo, que é um primor do rococó mineiro.
Abraço,
Luiz Cruz