Autoria de Lu Dias Carvalho
Se alguém ainda tinha a doce ilusão de que os forasteiros eram pessoas de bem, caiu do cavalo, quando se deparou com um marzão de cachorros, a perder de vista, espalhados por toda o povoado e seus arredores.
Uns três dias antes do ocorrido, o povo de Manarairema captou certa cachorrice no ar. Mesmo de bem longe do acampamento, notou que os bichos estavam esfogueteados e abespinhadiços. Alguns achavam que os animais estavam afaimados e outros que se preparavam para uma caçada.
Segundo Gemi, o melhor conhecedor da situação do lado de lá do rio, aquilo não era cachorros, mas capetas de quatro patas, vindos diretamente do inferno, enviados por Belzebu. Ao ser indagado sobre o número deles, explicou que dúzia e meia morria por dia, o que já dava para se ter uma noção da quantidade da cachorrada dos estranhos.
De repente, não mais que de repente, o cachorrismo dos homens misteriosos se fez presente em todo o povoado. Eles não mais deixavam dúvidas na cabeça dos ingênuos que, até então, acreditavam que vieram trabalhar para o progresso do povoado. Os cachorros alucinados apareciam do nada, enchendo ruas, becos, buracos, calçadas, terreiros, muros, telhados e descampados, obrigando as pessoas a ficarem presas em casa. Até as necessidades fisiológicas a céu aberto, foram suspensas. Ninguém queria uma língua de lixa lambendo certas áreas pudendas.
Manarairema virou uma amotinação de pêlos, dentes, rabos, urina e cocô. Era uma inhaca só. E ainda tinha que conviver com o rosnado, uivos, choramingos e o raspa-raspa canino. Todas as aves domésticas foram estraçalhadas num piscar de olhos e os gatos sumiram o lugar. Não havia tiro de espingarda, água quente ou pedrada que os enxotasse. Se cinco saíam de perto de uma janela, outros dez tomavam o lugar. E pior, ninguém sabia o que buscavam.
Os habitantes do povoado, lacrados em suas casas, sem que um fiapo de ar entrasse pelas janelas ou portas e ainda com medo de que lhes caíssem os bichos sobre as cabeças, eram obrigados a engolir a fumaça do fogão à lenha, sob os ganidos incessantes dos cães. Ali, nada podiam fazer a não rezar por um milagre.
Depois de passada a laúza, houve gente contando que os bichos entraram em sua casa, sem que soubesse por onde passaram. Uns saíam arrastando chinelos e roupas pelos dentes, enquanto outros descarregavam a bexiga ou os intestinos em qualquer lugar da casa. A seguir saíam abanando o rabo, como se nada tivessem feito.
Como o que não tem remédio, remediado está, assim que a população percebeu que os animais não mordiam ninguém e tampouco estavam com pressa de ir embora, começaram a deixar suas casas para travar relacionamento com os cães, que passaram a ser aceitos como se fossem antigos moradores da cidade, recebendo toda sorte de mimos, causando humilhação nos legítimos cachorros do povoado, que passaram a ser tratados como cães de segunda classe.
Contudo, certa tarde, no principiar do entardecer, Manarairema teve uma súbita surpresa: os amigos caninos escafederam-se, sem despedidas ou ranger de dentes, como se guiados pela flauta de Hamelin, em direção ao acampamento dos forasteiros, deixando para trás um mar, ainda maior, de cacas e um bodum de revirar os bofes. Os cachorros foram, literalmente, soltos na gente do povoado e, depois, chamados de volta. Ninguém conseguia intrujar o motivo de tanta humilhação. Afinal de contas, o que queriam aqueles homens?
Apesar de tudo, Amâncio ainda teve o desplante de rosnar na porta de sua venda:
– Eu estou com os homens, o resto é muxingo de gongomé macho. Quem não gostar, que tire a ceroula e pise em cima.
A seguir o capítulo final.
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