Autoria de Lu Dias Carvalho
Pode ser que alguém dê um boi, para não entrar numa briga, e uma boiada para não sair, mas, quando a boiada extrapola os limites da racionalidade humana, aí a vaca vai pro brejo. E foi exatamente isso que aconteceu em Manarairema. Vamos aos fatos.
A população do povoado não levou muito a sério o fato de um boizinho aparecer ali, outro acolá, mais outro no quintal da casa e assim por diante. Os animais poderiam ter se soltado do campo de algum fazendeiro e ali estavam à procura de pasto novo. Além de tudo eram calmos, tranquilos e confiantes. Quando se cansassem iriam embora.
Mas, caro leitor, não foi bem isso o que ocorreu, para desespero dos manarairenses. Dupliquem a quantidade da cachorrada citada no último acontecimento e terá a real dimensão da quantidade dos ruminantes. E não seria nada mal, se acrescentassem mais um terço ao rol dos já imaginados. Todo o povoado era deles, assim como o horizonte. Todos os outros bichos estavam mortos por falta de espaço, ou puseram os pés no mundo, buscando ar para respirar. Os bois estavam gordos, luzidios e indiferentes. Só havia perigo quando brigavam entre si por mais espaço, pois tudo estremecia e as cercas dos quintais e paredes de adobe iam ao chão.
Contudo, um medo danoso tomava contava da gente do povoado: o estouro da boiada. Sabia que, se isso acontecesse nada ficaria de pé. À noite, quando todos os gatos são pardos, o pavor tomava conta da respiração das pessoas. Nem mesmo as orações, que varavam as cumeeiras das casas e se misturavam ao mugido dos bovídeos, traziam alento. Todos os habitantes estavam reclusos pela falta de espaço, até mesmo para pôr um pé, apenas, fora de casa. E pior, não havia sinal de que os animais fossem embora, fato que estava deixando o povoado numa grande inquietude. Aliado ao desânimo dos habitantes, tudo em volta havia se transformado num mar de urina e excremento, ocasionando dores de cabeça e vômitos. Manarairema morria aos poucos, atolada na merda.
Certa noite, houve um comportamento atípico dos bois, que pareciam espeloteados, berrando, arremetendo o rabo e cavando o chão. Os moradores não deram importância àquilo. Já não tinham mais uma réstia de esperança. Nada mais poderia fazer diferença. A morte seria o fim de tudo. E que ela chegasse. O melhor a fazer seria morrer dormindo.
E certas pessoas mal a madrugada chega e o corpo já pede para ficar na posição vertical. E assim reagiram certos moradores, mesmo sabendo que nada tinham para fazer. Nessa hora, os ouvidos se põem vigilantes, pescando tudo em derredor. E foram elas as primeiras a descobrirem que os ruminantes tinham partido. A notícia, apesar da madrugada, espalhou-se como palha seca ao vento. Era “gente chamando gente, sacudindo gente, arrastando gente para ver. Gente rindo, gente pulando, gente se vestindo às pressas, gente esmurrando portas, gente correndo pelas ruas e gente caindo no mar de urina e esterco”.
O dia seguinte amanheceu num lenga-lenga de chuva, que não dava para lavar a obra deixada pelos bois. À tarde, o sol deu as caras. Geminiano apareceu com a carroça carregada de utensílios. Serrote mal conseguia puxá-la. Diante da indiferença das pessoas gritou:
– Na tapera tem muita coisa boa. É só pegar. Os sujeitos foram embora. Deram no pé de madrugada.
Diante da incredulidade das pessoas ele arrematou:
– Juro por Deus. Quero ficar cego se estou mentindo. De viventes só ficaram as penosas e os porcos.
Não houve interesse pelo butim. À população de Maneirama era suficiente o consolo de ter se livrado daqueles estranhos intrusos. Fim!
Nota
O leitor deve estar insatisfeito com o final da história. Mas foi assim que aconteceram os fatos. Portanto, não há como dizer exatamente quem eram os homens misteriosos, porque escolheram o povoado de Manarairema, porque travaram amizade com Amâncio, porque enviaram as pestes (bois e cachorros), porque escravizaram Geminiano e porque queriam tanta areia.
Na verdade, José J. Veiga deixou a sua obra aberta, para que o leitor se deleitasse com as dúvidas. É incrível a sua capacidade de transformar sua obra num livro interativo, já naquela época.
Os leitores, que me acompanharam nesta saga, deram respostas a todas as indagações do autor e, paralelamente, construíram histórias brilhantes, com as mais variadas interpretações. De modo que o livro de José J. Veiga foi ricamente reescrito. Ele deve estar muito feliz, lá do outro lado do rio…
Views: 3
Muito bom, gostei muito!
Marcos
Vejo que leu toda a história.
Fico feliz que tenha gostado.
Também escrevi sobre Vidas Secas, mas em versos.
Obrigada por sua visita a este cantinho.
Venha sempre e traga seus amigos.
Abraços,
Lu