Autoria de Lu Dias Carvalho
A pequena varanda abria-se para o leste, de onde a mulher podia ver o nascer do sol e o brotar da lua de dentro das montanhas verdejantes de sua Belo Horizonte. Uma larga porta de vidro separava a sala do pequeno terraço, onde beija-flores esvoaçavam em busca de pólen nas touceiras de russélia de flores vermelhas e amarelas, e sabiás, bem-te-vis, maritacas, dentre outras aves, passavam em voos rasantes, vindos das muitas árvores que se espalhavam em derredor. Nas tardes azuis, outro céu desenhava-se no vidro da porta, igualzinho ao que se estendia de frente para ela. A mulher sentia-se feliz naquele pedacinho do mundo, onde mantinha contato permanente com as coisas da natureza, embora vivesse no coração de uma cidade grande.
Era tarde de sábado. O céu estava azulado com algumas nuvens de carneirinhos brancos. Um vento frio balançava as folhas das árvores, chegava até a sacada e ia adentrando pelo apartamento através de uma pequena abertura da porta de vidro. A mulher lia, acomodada em sua poltrona verde. Três bichanos estendiam-se pelo tapete florido, tirando uma gostosa soneca. Na sala de televisão, o marido comprazia-se vendo seu time jogar, embora se mostrasse ansioso por um gol. Se aquilo fosse uma amostra do mundo, poder-se-ia dizer que a vida transcorria na mais absoluta paz, numa comunhão entre homens, bichos e natureza.
Um baque surdo interrompeu a paz do ambiente descrito. Homem e mulher levantaram-se assustados, temendo que alguém pudesse ter caído de um dos andares acima. Os bichanos, sempre mais ágeis, tentavam passar pela pequena abertura da porta de vidro. Foi então que marido e mulher viram, ali no chão do terraço, o pombinho com um dos olhos fora da órbita, descendo pela carinha torturada pela dor e mesclada de sangue, mas ainda preso por um nervo que parecia ter se esticado. Meu Deus, o que fazer?
O bichinho nem se mexia, apenas deixava transparecer um ruído quase inaudível, que aos ouvidos da mulher chegava como um grito desesperado de socorro. Se a dor é torturante nas pessoas que conhecem os meios de saná-la – pensava a mulher- imagine num animalzinho sem nenhum tipo de proteção, solto ao deus dará. A dolência foi também tomando conta do coração da mulher, e ela foi se fazendo mais impotente e mais frágil. A princípio pensou que desmaiaria. Isso não! Primeiro era preciso socorrer a avezinha. Teria que tomar as rédeas da situação. Enrolou o bichinho numa fralda limpa, umedeceu sua cabecinha com água fria e, com ele no colo, pôs-se a procurar, através do telefone, por lugares que cuidassem de animais. Mas ninguém atendia. Maldito sábado! Uma amiga falou-lhe sobre um local que ficava aberto initerruptamente, num bairro mais distante.
Agora era preciso convencer o marido a deixar o jogo do time de seu coração e levar o animalzinho ferido até à Sociedade Protetora dos Animais (SPA). Não que ele tivesse um coração insensível, mas o fato é que homem vê sempre as coisas sob outra ótica, com uma naturalidade que faz raiva. Para ele era apenas mais um pombo, entre os milhares que voam pela cidade. Mas para ela não! Tratava-se de um bichinho que caíra na sua varanda, ao confundir o céu estampado no vidro da porta com o céu azul verdadeiro. Ela sentia que tinha a obrigação de salvá-lo. A ave não caíra ali à-toa, seu apartamento fora o escolhido. A bondade e o apreço da família pela vida estavam sendo testados, pois nada acontece por acaso. Ela falou disso tudo ao marido, e muito mais, e completou:
– Amado, tudo que fizermos pelo bem, ainda que seja pela menor das formas de vida, receberemos em dobro. Esta é a lei da vida. Lembre-se dos ensinamentos de Buda. Portanto, pegue um táxi, pois nem tem ideia de onde seja o local, e leve este bichinho que está se esvaindo em dor.
O marido, um ser humano primoroso, atendeu os queixumes da mulher, para que seu coração pudesse ficar em paz. Tomou o bichinho nas mãos e foi em busca do local indicado, onde ficam animais abandonados. Lá chegando, foi atendido por um veterinário que lhe disse que iria retirar o olho da ave, fazer uma curetagem e devolvê-la. Antes que ele pudesse cumprir o prometido, o homem partiu, pois não teria onde colocá-la, principalmente porque tinha gatinhos. Ao chegar à sua morada, o homem contou à mulher tudo que havia acontecido e complementou:
– Meu bem, já comecei a receber o que gastei com táxi, conforme sua teoria. Achei R$0,25 (vinte e cinco centavos) na entrada de nosso prédio. O resto foi compensado com os dois golos que meu time fez.
A mulher ainda pensa naquele pombo, imaginando se continua vivo ou se foi devorado por alguma ave de rapina, uma vez que passara a ter a metade da visão. Mas o que fazer contra os reveses da vida? Ainda assim seu coração continua em paz, por não ter se omitido.
(*) Imagem copiada de pt.euronews.com
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