Autoria de Lu Dias Carvalho
Quando cheguei a Araçuaí, tudo era tão diferente da minha terra, a língua, a cultura, a maneira de tratar as doenças… Ouvia aquela gente se referir a problemas de saúde como “carne quebrada”, “vento virado”, “espinhela caída” e “mau-olhado”. Comecei a ficar curioso. (Frei Chico)
O Jequitinhonha mudou o meu modo de pensar sobre a verdadeira religião: aprendi que quem pretende entender a religiosidade popular e ter o direito de explicar seus significados há de se tornar simples com os simples e pobre com os pobres. (Frei Chico)
Para poder servir, eu tinha que conhecer aquele povo… A riqueza cultural do Vale do Jequitinhonha deu sentido à minha permanência no Brasil. (Frei Chico)
Filó gostava de cantar e resolvi gravar as músicas em fitas cassetes, as mesmas que serviram para o repertório do Coral dos Tangarás. Há 43 anos, tive a honra de fundar o grupo, que continua até hoje. (Frei Chico)
O franciscano Frei Chico, Francisco van der Poel, chegou à cidade de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, nas Minas Gerais, lá pelos idos de 1967, vindo da Holanda. Naquela época, o Vale, como carinhosamente é chamado, situava-se entre as localidades mais pobres do mundo, de modo que suas viagens pela região eram realizadas no lombo de burro. Mas nem tudo era apenas pobreza, pois, aquela gente tinha uma riqueza cultural invejável, o que deixou o frade estupefato.
Durante a sua permanência como pároco da diocese Araçuaí, Frei Chico acumulou mais de 15 mil folhas que registravam a cultura relacionada com a fé e a espiritualidade daquela gente. A essa rica pesquisa, o frade somou outras realizadas em Portugal, onde foi em busca de arquivos, tentando achar caminhos que o levassem a compreender melhor a sabença do povo simples do Vale do Jequitinhonha. Acabou coroando seu trabalho de longos e incansáveis anos de pesquisa com o lançamento do Dicionário da Religiosidade Popular: Cultura e Religião no Brasil, através do qual pretende fazer com que o leitor viaje através da cultura popular da gente do Vale do Jequitinhonha. Sobre suas pesquisas ele diz: Consultei livros de história, de farmacopeia medieval e até de bruxaria. Reuni 2 mil volumes. Quando concluí o dicionário, doei esse material para a biblioteca pública da PUC Minas, em Belo Horizonte.
Frei Chico conta que sua inspiração nasceu com o canto belo e incomum de Filó, cozinheira da casa paroquial, em Araçuaí. Depois disso foi agregando outros achados. A ceramista Maria Lira Marques, conhecida pelo apelido carinhoso de Lira, pois, todo mundo no Vale carrega um apelido, foi um deles. Sobre ela ele diz: “Lira abriu as portas da sabedoria popular para mim, o estrangeiro que acabara de chegar.”.
O Dicionário da Religiosidade Popular: Cultura e Religião no Brasil é uma obra ímpar, que tomou forma quando Frei Chico entrou em contato com o folclorista Câmara Cascudo e com o antropólogo da Unicamp, Carlos Rodrigues Brandão. Nele está presente o saber do povo, através de entrevistas, cantos e histórias.
Frei Chico diz se sentir satisfeito com o resultado obtido, depois de mais de 40 anos de pesquisas que resultaram num riquíssimo trabalho, talvez o mais rico já feito sobre a cultura e a fé de nosso povo. Sobre o produto final ele diz: “Passei por uma reciclagem de ideias. Deparei-me com saberes marcantes e eles mudaram a minha noção de historiografia, a maneira de me relacionar com Deus e com o próprio significado da palavra cultura.”
Dados
Dicionário da Religiosidade Popular: Cultura e Religião no Brasil
Autor: Francisco vand der Poel (Frei Chico)
Editora Nossa Cultura
1.150 páginas/ 8,5 mil verbetes? 6 mil notas de rodapé/ 350 ilustrações
Ilustrações: Lira Marques
Informações sobre o Dicionário: (www. nossacultura.com.br)
Este primeiro Dicionário da Religiosidade Popular tem todas as características de um ‘abecedário’, no seu sentido humanista. Desde o fim da Idade Média, o Humanismo se distingue pela maneira aberta e tolerante de pesquisar, pensar e explicar. Durante quarenta anos, o autor reuniu e organizou em verbetes uma grande variedade de informações sobre a vida e a experiência religiosa do povo brasileiro. Buscou a coerência de suas culturas e não tanto a lógica total e racionalista. Tanto recorreu às ciências e às artes, quanto procurou estar presente lá onde as coisas acontecem. Pesquisou também arquivos, no Brasil e em Portugal. Na análise da relação entre cultura e religião, alguns temas são constantes: as raízes indígenas; a memória da escravidão e da mãe África; a forte influência lusa; a brasilidade mestiça; a dialética entre o oficial e o popular, hoje e no passado; migração e urbanização; a situação socioeconômica; a mídia; a união na diversidade; a comunidade de base; instituições religiosas e a fé viva do povo. Assim, à diferença de outros, este não é um dicionário de folclore no sentido que não enfoca apenas o tradicional, mas a múltipla experiência religiosa do povo brasileiro no passado e no presente.
Foi privilegiada a fala do povo através dos seus representantes: o mestre da folia, a rezadeira, o capitão do congado, a mãe de santo, o cordelista e tantos outros. Suas histórias, depoimentos, provérbios, cantos e orações estão impressos em itálico, destacando assim a parte mais importante do Dicionário.
Na religiosidade popular, aparecem assuntos tais como a espinhela caída, simpatias para curar, transe, visagens, que não cabem nas teorias oficiais e, neste Dicionário, há uma preocupação essencial: compreendê-los, sem recorrer a explicações como as da parapsicologia.
O povo do Jequitinhonha, querendo entender a vida ou resolver algum problema urgente, dizia ao autor: “morei no assunto” ou “pus aquilo no sentido”.
Caro leitor, é isso mesmo, a verdade é vivida, compartida e concreta e não começa com teorias prontas. Grande é a riqueza cultural e religiosa dos pobres. Na busca da verdade, saibamos ficar satisfeitos com os caquinhos que alcançamos.
Sobre o Autor:
Francisco van der Poel, franciscano, membro do corpo docente do Instituto Jung, em Belo Horizonte (MG); do Conselho do Centro da Memória da Medicina, na UFMG; do corpo docente do Instituto Santo Tomás de Aquino, de teologia; da Comissão Mineira do Folclore; do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais; da Ordem dos Músicos do Brasil; formado em Teologia, na Holanda; licenciado em Filosofia, em São João del Rei (MG); publicou seis livros; é palhaço do Teatro Terceira Margem, em Belo Horizonte.
Fontes de pesquisa:
Estado de Minas//Pensar / 8-06-2013
www. nossacultura.com.br
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Foi preciso que um estrangeiro percebesse o quanto é rica a nossa cultura popular e também o quanto é importante mostra-la. Parabéns Frei Chico, não sou da região, mas me identifico muito com o vosso trabalho e essa belíssima e sofrida região das nossas Minas Gerais!
José Marcos
Seja bem-vindo a este espaço. Sinta-se em casa.
Frei Chico é realmente um dos grandes nomes da cultura popular do Vale do Jequitinhonha, bem mais brasileiro do que muitos que neste país nasceram. Tenho uma amiga que faz parte de seu grupo de pesquisa. Ele está preparando um novo livro que abrangerá a cultura popular dessa região com mais profundidade, sem se ater especificamente ao caráter da religiosidade. Assim como você, eu também amo essa região. Nunca vi povo tão bom! Vou lá sempre.
Abraços,
Lu
Lu
Conheço Frei Chico desde que eu era molecote. Trata-se de uma pessoa de suma importância para o Vale do Jequitinhonha. Foi ele que fez com que as pessoas ali sentissem orgulho de suas cultura. Ele se fundiu com a alma do povo do Vale. Todos o adoram. Parabéns pela reportagem.
Beijos
Nel