Autoria de Lu Dias Carvalho
Há algum Deus, algum Buda? Se existir, ouça-me! Você é danoso e cruel! Você está tão chateado aí em cima, e tem que nos esmagar como formigas? Será que é tão divertido ver os homens chorarem? (O Bobo)
Chega! Não blasfeme! São os deuses que choram. Eles nos vêem matando uns aos outros mais e mais, desde que o mundo surgiu. Eles não podem nos salvar de nós mesmos. Não chore! É assim que o mundo funciona. Os homens preferem tristeza em vez de alegria, o sofrimento em vez de paz. (Tango)
Ran (1985), que em português significa Caos, é uma das belas obras do cineasta japonês Akira Kurosawa, inspirada na peça Rei Lear de Shakespeare, considerada por vários críticos como um dos melhores filmes de todos os tempos. Nele, o cineasta deixa explícito o seu talento artístico e a sua sabedoria, acumulados através de longos anos de trabalho. Na lista dos 1.001 filmes que você precisa ver, antes de morrer, Ran situa-se entre os 10 primeiros.
O filme conta a saga de um homem, que durante toda a sua vida empreendeu ininterruptas guerras para garantir o seu poderio, mas, que ao chegar à velhice, ansiando pela paz, imprudentemente abre mão de sua liderança. Divide seu reino entre os três filhos, sem incluir as filhas, e repassa para o filho mais velho o poder central, suscitando um conflito ainda maior. Guerra, orgulho e decadência dão a tônica do filme. É também a história de um grande homem desvairado pelo pecado do orgulho. Ran, na verdade, conta a história de tantos homens, que constroem sua vida sob o amparo da ganância, da intriga, do ciúme, da cobiça e da vaidade, chegando à velhice, infelizes e solitários.
Após a partilha, o filho mais novo, que se opôs a ela e é o que mais ama o pai, foi banido por ele, enquanto os dois mais velhos unem-se e se recusam a receber as tropas do velho, o que termina por jogá-lo no exílio, onde se torna senil, com vislumbres de discernimento, sendo capaz de pedir desculpas a quem prejudicou e a chorar, muitas vezes. Depois de ter passado a vida incitando a guerra e controlando tudo ao seu redor, Hiderota (Tatsuya Nakadai) torna-se marginalizado e atirado de uma tragédia a outra. O desprezo de antes vai se transformando num profundo desespero.
Até o final da vida, permanecem ao lado do velho chefe os dois fiéis servidores: Bobo e um seguidor leal, Tango. Eles o vigiam e protegem e o acompanham em todas as adversidades, vagueando de um lugar para outro. Enquanto isso, os dois filhos mais velhos lutam pelo poder, arrasando as terras com sucessivas guerras. O mais novo é acolhido por um poderoso comandante militar e se casa com sua filha, afastando-se dos dois irmãos, até que é avisado de como se encontra o pai e resolve trazê-lo para morar consigo.
Akira Kurosawa (1910-1998) está incluso na lista dos maiores diretores de todos os tempos, tendo aberto caminhos para que o mundo conhecesse os grandes diretores do cinema japonês, anteriores a ele, tais como: Yasujiro Ozu, Kenji Mizoguchi e Mikio Naruse. Mas teve tempos difíceis em sua caminhada. Durante muitos anos não conseguiu ganhar o respeito de seu país e, consequentemente, recursos para o seu trabalho. Mesmo tendo realizado obras-primas como Rashomon, O Barba Ruiva, Os Sete Samurais, entre outras, ainda sofria preconceito no Japão por ser “ocidental demais” e antiquado. Inúmeras vezes, precisou mendigar financiamento para seus filmes. Sua situação tornou-se insustentável quando fez Dodeskaden (1970), que trazia uma visão dos pobres em Tóquio. Cinco anos depois, conseguiu financiamento do governo russo para filmar o maravilhoso Derzu Uzala, que conta a história de um mongol das florestas, que serve de guia para um explorador russo. O filme acabou ganhando o Oscar de melhor filme estrangeiro.
Em 1975, Kurosawa anunciou o seu desejo de fazer um épico sobre os samurais, baseando-se no Rei Lear de Shakespeare. E, novamente, foi-lhe negado financiamento. Nesse ínterim, fez Kajemusha – A sombra do Samurai (aguardem o comentário), como se fosse uma preparação para Ran. O filme foi sucesso, mas o dinheiro ainda não era suficiente para os custeios de Ran. Enquanto isso, enchia vários cadernos com desenhos das locações e roupas das cenas de seu tão ansiado filme. Eis que um mecenas entra em sua vida: o produtor independente francês Sege Silberman, que antes havia apoiado Buñel e muitos outros, e lhe arranjou os recursos para Ran.
Kurosawa realizou sua obra prima aos 75 anos, na fase em que passou a se preocupar muito com a morte. Com a vista falhando e depois de ter tentado suicídio, o grande mestre japonês da sétima arte anunciou que Ran seria o seu último filme. Promessa não cumprida, pois ele ainda fez Sonhos de Kurosawa, que se trata dos devaneios de um idoso, onde as ideias sobre a morte são constantes, Rapsódia em Agosto e, a seguir vem seu último filme Madadayo (1993), que se trata de uma homenagem feita pelos alunos a um professor no dia de seu aniversário.
Akira Kurosawa, inspirado em Rei Lear, fez um fantástico épico sobre o Japão Medieval, além de visualmente magnífico. Embora se passe no período medieval, Ran é um filme extremamente moderno, em que um velho, depois de vencer todas as batalhas, chega ao final da vida imaginando deter o poder decisório sobre uma nova geração. Os filhos de Hidetora também tinham suas próprias ambições, cobiças, vaidades, orgulho e loucuras. De modo que a vontade do pai não tinha nenhuma relevância para eles. Estamos cansados de ver isso acontecer com os construtores dos grandes e pequenos impérios, em todas as partes do mundo. Eles se esquecem de que a vida flui sem nenhum compromisso com a continuidade histórica, pois cada tempo é seu tempo.
Cenas imperdíveis:
• A revolta do filho mais novo contra a atitude do pai em dividir o reino.
• O modo como Kaede (Mieko Harada) ameaça, a vida do cunhado e como suga o sangue do corte que lhe fizera na garganta, antes de se tornar sua amante e toda a sua participação no filme.
• Quando Kaede foge pelo palácio, com a sua túnica de seda farfalhando no áudio.
• A morte de Kaede não é mostrada diretamente, mas através de um jato de sangue contra uma parede. Cena considerada uma obra-prima do cinema.
• Um homem segurando um braço decepado, que inspirou Steven Spielberg em outra cena semelhante, em O Resgate do Soldado Ryan.
• O diálogo entre o Bobo e Tango sobre a existência de um Ser Supremo e a crueldade dos homens.
• Os momentos de lucidez do velho Hiderota no exílio.
• O reencontro com o filho que havia banido e o perdão recebido.
• A técnica usada nas sequências das cenas de batalha, que mais parecem um balé violento e sangrento, mas, mesmo assim, extremamente belo.
• O silêncio durante as cenas de batalhas.
Curiosidades:
• O figurino deslumbrante de Emi Wada conquistou um prêmio da Academia e é responsável por boa parte do visual do filme.
• Foram confeccionados, à mão, 1.400 trajes em Kioto, sede tradicional da tapeçaria japonesa.
• Cada um dos belos mantos coloridos demorou de três a quatro meses para ser feito, em trabalho simultâneo e quase três anos para todos serem concluídos.
• Para destacar a beleza estonteante do figurino foram escolhidos fundos desolados: solos áridos, pátios com lajes cinzentas, degraus de pedra, etc.
• O bobo da corte é magistralmente interpretado pelo travesti Shinnosuke Ikehata, um exímio ator de teatro Nô.
• A maquiagem e parte da história são inspiradas na tradição e no drama do teatro Nô.
• O épico é ressaltado pela trilha minimalista de Tôru Takemitsu, que faz uso da flauta de bambu japonesa e da percussão.
• O filme inteiro foi feito com enquadramentos longos, não existem closes.
• Para mostrar a influência de Akiro Kurosawa sobre outros cineastas, basta citar: A Fortaleza Escondida ajudou a inspirar Guerra nas Estrelas; Os Sete Samurais foi refeito com Sete Homens e um Destino; Yojimbo e Sajuro transformaram-se em faroestes com Clint Eastwood: por um Punhado de Dólares e Por um Punhado de Dólares a Mais.
• Kurosawa também se inspirava em outros trabalhos para compor sua obra: Trono Manchado de Sangue vem de Macbeth; Ralé vem de Gorki; O Idiota vem de Dostoievski; Céu e Inferno é adaptado de uma história policial de Ed McBain e Ran é inspirado em Rei Lear .
• Na peça de Shakespeare, Rei Lear, não se trata de três filhos, mas sim de três filhas
Sinopse:
No Japão feudal do século XVI, Hidetora (Tatsuya Nakadai) é o poderoso chefe do clã Ichimonji. Aos 70 anos, ele decide dividir, ainda em vida, o legado de sua herança entre seus três filhos: Taro Takatora (Akira Terao), Jiro Masatora (Jinpachi Nezu) e Saburo Naotora (Daisuke Ryu). O primogênito Taro, seguindo a tradição do patriarcado japonês, torna-se o líder do clã. A ele coube a chefia do feudo, bem como as terras e os cavalos, enquanto a Jiro e Saburo couberam, além de algumas propriedades, o dever de obedecer ao irmão. Hidetora retém para si o título de “Grande Senhor” para permanecer com os privilégios, sem se responsabilizar com os deveres do cargo e exige que seus filhos cedam seus castelos, onde ele possa viver, a fim de manter sua tropa particular e seus status de grão-mestre. Mas Saburo, temendo as conseqüências terríveis da resolução de seu pai, opõe-se à idéia. Critica seu plano, lembrando-o da maneira como conquistou seus domínios, chamando-o de “velho tolo”, ao esperar que seus filhos mantenham a lealdade a ele. Acaba sendo expulso dos domínios de seu clã e é acolhido por Nobuhiro Fujimaki (Hitoshi Ueki) que, impressionado pela decisão tomada pelo rapaz, casa-o com sua filha. Enquanto isso Hidetora, em visita ao feudo que agora pertence a Taro, é mal recebido pelo filho, pois a mulher dele, Kaede (Mieko Harada), passa a manipular o marido, alimentada por um forte desejo de vingança contra o patriarca do clã, responsável pela morte de seus pais num incêndio. E, durante uma visita a seu filho Jiro, Hidetora chega à conclusão de que o império não lhe pertence mais. E, assim, ele se vê isolado em seu ex-império e bem próximo da insanidade
Fontes de pesquisa:
Grandes Filmes/ Roger Ebert
1001 Filmes para…
Wikipédia
Cinemateca Veja
Views: 1
Adoro este filme, aliás, toda a obra do Kurosawa é impressionante! Também gosto muito de Depois da Chuva e do belíssimo Sonhos!
Bjos
Karen
Toda a obra de Kurosawa é um primor.
Quero comentar outros filmes dele para a apreciação de vocês.
Abraços,
Lu
Revi esse filme ontem e fiquei estupefato com tanta beleza e arte cinematográfica. Grande Kurosawa. Muito boa a sua análise. Parabéns!
José
Este filme é uma obra-prima.
Também sou encantada com ele.
Kurosawa é muito especial.
Volte para ler outras análises.
Beijos,
Lu