Arquivo da categoria: Flagrantes da Vida Real

Casos do cotidiano

A II GUERRA E UM BURRO CHAMADO “RUANO”

 Autoria do Prof. Rodolpho Caniato

Corria o ano de 1942. Eu morava no sítio dos Caniato, no bairro dos Fernandes, em Corrupira. Vez por outra alguém trazia da cidade notícias sobre a II Guerra Mundial. E uma abalou a todos. Era a notícia sobre o afundamento de navios brasileiros nas costas do Brasil. Submarinos alemães haviam torpedeado e afundado vários navios entre os quais o “Baependi”. Foram centenas de mortos, além da perda total das embarcações. O presidente Getúlio Vargas, que até então nutria certa simpatia pelo “Eixo”, foi levado, também pela pressão dos EEUU, a definir-se e a reagir àquele ato de guerra da Alemanha de Hitler. Havia também um clamor popular nacional de reação à ostensiva hostilidade e afronta à soberania do Brasil, que logo declararia guerra ao “Eixo”. Em muitos lugares do país ocorreram manifestações e campanhas patrióticas de apoio à sua entrada na Guerra, ao lado dos “aliados”. Chegou-se a fazer campanha de coleta de metais para a fabricação de armamentos. Eram as “montanhas da Vitória”. Também no nosso bairro chegou a notícia de um grande evento patriótico que seria um misto de manifestação político-patriótica e festa.

O ponto alto da festa seria um grande rodeio, cuja maior atração seria um burro (mulo) que se tornara famoso pela sua indomabilidade em rodeios anteriores. Nenhum peão tinha conseguido ficar por mais de poucos segundos no lombo daquela “fera” chamada “Ruano”, por sua cor (ruão, “baio” com crina muito mais clara). Era uma verdadeira lenda. O “clima” de patriotismo e o burro “Ruano” estavam eletrizando as expectativas em relação ao rodeio patriótico. Um famoso peão de Jundiaí, o Zico Peão, tido como o “maior” da região, aceitara o desafio de montar o “Ruano”. Para quem morava, como nós, em Corrupira, seria preciso tomar o trem de Louveira até Rocinha. Primeiro teríamos que fazer a caminhada de quatro quilômetros a pé, pelo “estradão” até a estação de Louveira. De lá pegaríamos o trenzinho “cata caipira”, o “misto”, para Rocinha. Nessa caminhada e viagem, com meus treze anos, acompanhei meu tio Joãozinho que também tinha “ares” e pretensões de “peão”. Da estação de Rocinha ainda seria necessária uma grande caminhada morro acima até o local onde teria lugar o grande acontecimento.

Quando lá chegamos já havia uma multidão ao redor do grande cercado de tábuas, a “arena” onde aconteceria o rodeio. Ao lado havia outro cercado menor, onde estavam confinados os animais, cavalos, mulos e bestas que seriam montados. Depois dos discursos patrióticos apresentaram-se as equipes de “laçadores”, “orelhadores” (peões encarregados de imobilizar aqueles animais xucros até que lhes fosse aplicado o “solfete”, (uma cinta com alça, único “arreio” no animal e “seguração” do peão). Depois do animal laçado, torciam-lhe as orelhas até que, creio que de tanta dor, bufando e resfolegando, ficasse imóvel. Outro peão aplicava um “cachimbo” (um pau roliço munido numa das extremidades, de um laço de couro cru trançado) no focinho do burro, que ia sendo torcido até que, quase afogado, se imobilizasse. Só depois de o peão estar montado, a equipe da “seguração” soltava, orelhas e o beiço do animal. Aos pulos, coices e corcoveando sem parar, aqueles animais xucros quase sempre conseguiam se livrar de suas montarias. Quando um peão aguentava um pouco mais a “pulação”, era ovacionado pela multidão. Todos os animais trazidos já haviam sido montados. Era a hora do grande final em que se defrontariam o Ruano, “invicto” nos rodeios, e Zico Peão, o desafiador e herói do espetáculo. Como aquele seria o final e apoteose da festa, antes do duelo falou a “autoridade”  e a banda tocou mais um dobrado. Foram necessários vários laçadores, em diferentes direções para que os “orelhadores” conseguissem botar as mãos nas orelhas e no focinho do “Ruano”.

O burro era mesmo “endiabrado”. Só depois de muito esforço conseguiram segurar aquele bicho brabo, aplicar e garrotear o “cachimbo”. Aplicado o torniquete no focinho, aquela “fera” muar rosnava e estrebuchava aos arrancos. Finalmente a equipe da “seguração” conseguiu aplicar o solfete no “Ruano”. A multidão silenciou. Só se ouvia o rosnar do burro imobilizado quase até a asfixia. Sob palmas, entra Zico Peão para montá-lo. Ele segura o ”solfete”, joga o chapéu para o alto e grita… “larga”! Os pulos daquele animal tinham mesmo um ímpeto e uma fúria como nenhum dos anteriores. A multidão começou a aplaudir e a gritar o nome do herói. De repente, o burro, parando de pular, sai como uma flecha em direção ao tablado que limitava o espaço do rodeio. Sem corcovear, mas galopando a toda brida, o burro se atira de cabeça contra as tábuas do cercado, atravessando-o e deixando o Zico Peão desfalecido pela peitada contra a tábua superior do cercado. Desmaiado, muito ferido, mas vivo, Zico Peão foi levado pela ambulância de plantão, sem poder ouvir a ovação que recebeu pela sua bravura em resistir no lombo do “Ruano”. O animal, com certeza muito assustado e ferido, sumiu no poeirão da tarde.

A multidão, sem o “Ruano” e sem o herói “Zico Peão”, finda a festa, se dispersou. Era o epílogo inesperado do grande evento: um verdadeiro anticlímax pelo “empate” dos dois valentes, pela ausência dos dois principais protagonistas daquela memorável tarde na cidade de Rocinha. Nesse mesmo ano, o Brasil entraria na Segunda Guerra Mundial.

Nota: Extraído do livro “Corrupira”, ainda inédito, do autor.

PROFESSOR X SEMEADOR – IDEIAS E TIRIRICAS

Autoria do Prof. Rodolpho Caniato

Tiriricas em nossos canteiros têm muita coisa em comum com os preconceitos que povoam nossas cabeças. Às vezes, nossas concepções sobre o Mundo e as pessoas parecem estar dominadas por um verdadeiro “tirirical”, arraigado ao “solo” de nossas cabeças.

O Prof. Paulo havia dado muitas aulas naquele dia, que havia sido muito cansativo. Quando o cansaço abatia-o, ele se lembrava de algumas dúvidas que frequentemente preocupam quem ensina. Quanto será que fica de tudo aquilo que se pretende ensinar? Como se dá o processo da construção do conhecimento na cabeça dos alunos? Como, quanto e de que forma esse processo depende do professor? Ele se dirigia para os fundos do colégio onde o aguardava o Fusquinha que o levaria para casa. Próximo ao estacionamento havia uma pequena horta, onde trabalhava “seu” Antônio, caboclo simpático e bom de prosa. Embora “seu” Antônio fosse homem de poucas letras, era uma dessas pessoas que vai acumulando com os anos uma sabedoria colhida ao longo da estrada da vida. Eram cativantes seu jeito simples de pensar e seu linguajar caboclo, mas sabido e alegre. Dessa vez, no entanto, ele estava meio jururu, com o semblante contrafeito. Com aspecto cansado, de cócoras sobre os próprios calcanhares, fazia seu “picadão” de fumo de rolo, usando um velho e gasto canivete. A palha para o cigarro aguardava presa no vão da orelha.

Vendo o desconsolo do velho amigo, o professor aproximou-se dele, disposto a ouvir as razões de sua contrariedade. Sem parar de fazer seu cigarrinho de palha, “seu” Antônio contou-lhe o “aconticido”. Duas semanas antes, o diretor do colégio havia-lhe entregue um envelope com preciosas sementes, trazidas do exterior, como coisa rara. Havia lhe recomendado que caprichasse no plantio. Escolhido o local para o canteiro, ele cavoucou o solo para remover a tiririca, aquela erva-daninha quase onipresente. Muitas horas foram gastas naquele árduo trabalho. Finalmente o canteiro foi tomando forma e a terra de sua superfície foi deixada fina e macia para receber as preciosas sementes. Tudo estava pronto para a delicada tarefa de colocá-las no solo e cobri-las com uma camada de terrinha fina misturada com húmus. A missão havia sido finalizada com um generoso regador de água. Agora era só esperar a germinação das sementes.

Os dias foram se passando. Diariamente, a semeadura recebia água e o olhar de uma ansiosa expectativa de “seu” Antônio. Com tantos cuidados dispensados, logo deveriam aparecer as tenras e minúsculas folhinhas daquele esperançoso plantio. Depois de muitos dias de grande expectativa, finalmente começaram a aparecer as primeiras folhinhas, delicadas e minúsculas, que ainda não dava para reconhecê-las. Aumentavam a cada dia sua expectativa e ansiedade. Finalmente o canteiro começou a ficar coberto pelo verde novo de minúsculas folhas. Mais regas e cuidados. Já era possível reconhecer a multidão de folhinhas. Possível!? Era tudo tiririca! Aquela germinação tão cuidada e esperada das boas sementes dera lugar a um eito de tiriricas, um verdadeiro tirirical.

Era natural a decepção de “seu” Antônio. Tanto trabalho e dedicação investidos para prevalecer a erva-daninha. Só depois de alguns dias começaram a parecer umas minguadas folhinhas diferentes e desconhecidas. Finalmente brotavam também, aqui, acolá, umas poucas folhas novas. Começava a aparecer algo das tão esperadas sementes. Mesmo assim era decepcionante ver uma brotada muito maior da tiririca que das boas e desejadas sementes. A essa altura “seu” Antônio havia completado seu cigarro de palha e já o “pitava” pela metade. Sua tristeza e seu desaponto eram bem justificados. Era muito trabalho e muita dedicação para ver a tiririca sair na frente, muito mais vigorosa que as sementes tão bem plantadas, desejadas e regadas de água e trabalho.

O Prof. Paulo havia ouvido toda a história e, já sentado sobre um velho tronco, dispunha-se a ajudar o velho amigo a superar sua decepção. Logo lhe pareceu ver uma forte analogia entre o que sentia o semeador e o que muitas vezes sente o professor. Disse a “seu” Antônio que entendia sua decepção, pois com os professores acontece algo parecido. Passou então a fazer uma correlação entre a semeadura de seu amigo e o trabalho dos mestres:

– O professor não faz canteiro, mas também “semeia”. Não semeia sementes de plantas, mas ideias que devem germinar e crescer na cabeça de seus alunos. Acontece que essas cabeças, quando chegam à escola, já trazem muitas “sementes” que foram tomando seu “solo. Muitas delas são como tiriricas, difíceis de serem extirpadas. As tiriricas, que o senhor cavoucou com seu enxadão, estão há muito tempo naquele solo do seu canteiro. Estão bem adaptadas às suas condições. Quando seu enxadão arrancou-as, muitos bulbos ficaram, e acabaram por transformarem-se em mais tiririca. Sem querer, seu enxadão contribuiu para maior disseminação daquela erva daninha. Teria sido necessário fazer uma extirpação completa da tiririca. Isso realmente é muito difícil.

O professor respirou fundo e continuou, enquanto “seu” Antônio ouvia tudo atentamente:

– As cabeças dos alunos, quando chegam à escola, já trazem, em seu “solo”, uma multidão de sementes que vão “germinar” independentemente da vontade do professor e do que ele vai “semear”. Muitas dessas “sementes” já foram “semeadas” pela família e pelo meio em que vivem, desde a idade mais tenra. Muitas delas são como “ervas-daninhas”, na forma de preconceitos e outras deformações. No seu caso, “seu” Antônio, o senhor pode esperar para ver a brotada do que semeou e também do que não semeou. Mesmo mais fracas, em desvantagem, talvez por serem estranhas ao solo, suas sementes, apesar de tudo, brotaram. Na maior parte das vezes, o professor não vê a “brotada” das que se empenhou em plantar. Às vezes nem quer ver o resultado, pois as “sementes” usadas são fracas, chochas, e não chegam a vingar diante de tanta “tiririca”. Mesmo quando semeiam boas sementes, elas sofrem a concorrência das tiriricas que sempre estão mais adaptadas e há mais tempo ao “solo”. Não bastam só o trabalho e suas boas intenções. Tem que saber mais sobre como funcionam as “tiriricas”, além de saber escolher as sementes e fazer com que sejam mais adaptáveis ao “solo” das cabeças, onde pretendem “semear.” Claro que muitos tipos de sementes exigem um especial cuidado na preparação do “solo”. Outras, que insistem em “plantar” podem ser inoportunas ou mesmo inadequadas para qualquer tipo de “solo”. Algumas são até inúteis, apesar do tempo e dos recursos que os professores gastam ao semeá-las.

A essa altura, o “picadão” de “seu” Antônio se havia reduzido a um toco, quase lhe queimando os beiços, tão surpreso estava com a inesperada explicação de seu amigo professor. Ele nunca imaginara que pudesse ter algo em comum com os professores, com seus problemas e suas decepções.

Nota: O semeador, obra de Vincent van Gogh

TERRA: NOSSA MINÚSCULA NAVE

Autoria do Prof. Rodolpho Caniato

Talvez a maior grandeza do homem esteja na sua capacidade de entender e admitir sua pequenez e insignificância diante do tamanho e majestade do Universo.

Encerradas todas as tarefas com nosso pequeno rebanho, subimos para nossa casa que ficava no alto da colina. Com os relâmpagos da noite chuvosa podiam-se ver muitas casas da vizinhança, situadas ao longo do vale dos Fernandes, próximo à estaçãozinha de Corrupira. Ao entrar em casa, uma última olhada pelo vale revelou que ainda havia algum sinal de luz na casa de meu avô paterno, que ficava a uns quinhentos metros da nossa. Ele fustigava e sacudia um velho rádio de grandes válvulas que havia trocado por uma égua chamada “Piranha” e, que era alimentado pela eletricidade gerada numa mini-hidrelétrica, cuja construção caseira eu acompanhara.

Aquele rádio produzia muito mais silvos, chiados, “pipocas” e “estática” em “ondas curtas” que qualquer coisa entendível. Era uma tentativa de conseguir algum fragmento de notícia da guerra que se desenrolava na Europa. No dia seguinte ficamos sabendo do ataque japonês a Pearl Harbour. Com isso, os Estados Unidos entravam na segunda “Grande Guerra” que passava a ser mundial, estendendo-se à Ásia e ao Pacífico. De um lado agora estavam os “Aliados”, com os Estados Unidos, e do outro o “Eixo”, também chamado de RoBerTo, de Roma Berlim e quio. Estávamos em dezembro de 1941 e eu ainda completaria 12 anos.

Bem mais tarde, eu já adulto, a mesma experiência seria por mim evocada (texto SOLIDÃO E AMIZADE EM MEIO À TORMENTA), e me ajudaria a compreender a angústia da solidão e a importância confortante da amizade, da companhia e da solidariedade. Quando comecei a estudar Astronomia, fui me dando conta da esmagadora solidão em que nos encontramos, vagando pelo espaço em nossa minúscula “nave”, o nosso planetinha Terra.  Na medida em que nos conscientizamos de nossa pequenez, de nossa insignificância e isolamento, somos invadidos por uma forte sensação de solidão e impotência. Isso é inevitável, na medida em que compreendemos as distâncias astronômicas, a pequenez e a fragilidade da Vida em sua história sobre nosso planeta. Acredito ser essa assustadora vertigem do caráter efêmero e insignificante da Vida que faz com que as pessoas busquem refúgio nas religiões.

É assustador aceitar a simples mortalidade do homem, como nos demais seres vivos. A solidariedade, as amizades e o amor podem mitigar nosso medo de findar para sempre.  Daí nossa “necessidade” de criar “outras” vidas no “outro mundo”. A consciência de nossa real pequenez sobre a Terra pode nos ajudar a perceber a importância da solidariedade para diminuir nossa solidão.

SOLIDÃO E AMIZADE EM MEIO À TORMENTA

Autoria do Prof. Rodolpho Caniato

O calor durante aquele dia havia sido abrasador, mais que de costume. Além do calor e do ar abafado, os dias anteriores, naquelas vésperas de verão, haviam feito acumular no horizonte nuvens escuras, muito baixas, carregadas e ameaçadoras. Eu e meu pai havíamos trabalhado o dia todo na enxada, debaixo daquele sol inclemente, carpindo nosso parreiral, fonte de renda e sustento. Embora fosse época das chuvas, já havia muitos dias sem elas. As nuvens pareciam mais carregadas e ameaçadoras. Uma chuva de pedra (granizo) poderia destruir nossa pequena produção de uva “niagara rosada”.

Acerca de um quilômetro de nosso sítio passava a estrada de Ferro. Nossos horários eram regulados pela passagem dos trens da “Paulista”. Duas vezes ao dia passava um trenzinho chamado de “misto”. Era constituído pela locomotiva e por dois vagões: um para pequenas cargas e um de passageiros, só de “segunda”. Era uma espécie de “cata caipira”, que parava nas pequenas estações, para as pessoas fazer compra ou ir ao médico “na cidade”. A passagem desse trenzinho “misto” das 16:45 era a “senha” para que eu deixasse o trabalho e saísse para uma série de outras tarefas obrigatórias. Começavam por “engatar” a carroça, cortar e trazer para o piquete a carroçada de capim, espalhá-lo e depois recolher nosso pequeno rebanho, que ficava num pasto mais distante, onde ainda havia um pedaço de mata Atlântica. Era constituído por duas vacas leiteiras, a Pombinha e a Medalha, seus bezerros, algumas vacas “solteiras”, novilhas e o touro. Desengatada a égua “Branquinha” da carroça, nela eu galopava “em pelo” na direção do pasto para trazer o gado. Meu cachorro, o Duque, amigo inseparável, corria na frente.

Naquele dia, antes que eu chegasse ao pasto distante, desabou um temporal. Já era o fim da tarde. A noite parecia se antecipar pela escuridão da tempestade. Ao chegar próximo ao pasto, já chovia forte em meio a trovões e relâmpagos. Não havia sinal do gado. Com o barulho assustador do temporal, o rebanho refugiara-se no meio do mato. Eu não conseguia achá-lo. Eu e minha montaria corríamos pra cima e pra baixo, em meio à tempestade e à chuva. Minhas pernas, de calças curtas, já estavam arranhadas pelo mato, além de molhadas pela chuva e pelo suor de minha montaria. Aflito de tanto procurar, sem encontrar meu gado, voltei para casa, abatido e frustrado.  Quando cheguei à cocheira encontrei meu pai de semblante contraído. Antes que eu esboçasse qualquer explicação, ele ordenou: “Não me volte sem o gado!”. Aquela ordem, naquele tom não deixava dúvida. Era imperioso voltar e trazer o rebanho. Nossas duas vacas leiteiras tinham que amamentar seus bezerros presos na cocheira e delas era nosso indispensável leite da manhã seguinte.  Desconsolado e aflito, fiz meia volta e galopei na direção do pasto.  A escuridão só era rompida pelos repetidos relâmpagos. Eu e minha montaria estávamos mais cansados, molhados e arranhados. Além da aflição, meus fundilhos ardiam pela cavalgada no lombo molhado e sem arreios da égua.

Fiz muitas tentativas de encontrar meu rebanho que, com certeza, assustado, havia se abrigado nalguma grota mais escondida. Aflito, cheio de desconforto naquela noite tempestuosa, parei numa clareira e apeei exausto. Sentei sobre os calcanhares para descansar os fundilhos e pensar no que fazer, enquanto segurava as rédeas de minha égua ofegante. Nesse momento senti, além do desconforto do corpo molhado e arranhado, uma grande solidão e abatimento. Era um sentimento como jamais eu havia experimentado. Meu cachorro, que sempre corria na dianteira, também ofegante, deitou-se a meu lado, depois de me lamber a cara molhada de lágrimas e da chuva que caia. A solidão, que eu nunca havia experimentado, veio também acompanhada da confortadora presença desses dois seres que estavam comigo no mesmo cansaço, naquela noite de tempestades, dentro e fora de mim. Estavam junto a mim e de alguma maneira solidários naquela situação. Eles não me abandonaram. Essa noite me reservaria uma experiência importante e inesquecível: solidão e solidariedade. Abracei com gratidão, tanto minha égua, a Branquinha, como meu inseparável amigo, o cachorro Duque, pela confortadora companhia que me proporcionavam.

De repente, um estalo na mata. Pulei no lombo da Branquinha, enquanto o Duque se pôs a rosnar. Mais um relâmpago e pude identificar a cabaça de nosso touro, saída numa clareira do mato.  Ali estava meu rebanho. Logo tangi o touro que, erguendo a cauda, se pôs em desabalada corrida pela encosta, na direção de casa. Logo foram saindo do mato, atrás dele, os demais integrantes de meu pequeno rebanho. Em meio à noite escura, debaixo de chuva, os relâmpagos me deixavam ver, vez por outra, o rebanho correndo para casa. Na frente ia o touro. Logo a seguir vinham as novilhas, muito ágeis. Atrás, muito pesadas, com úberes cheios, iam nossas vacas, a “Pombinha” e a “Medalha”, esperadas por seus bezerros fechados e famintos na cocheira. Minha aflição era substituída pelo júbilo de haver conseguido encontrar o gado e cumprir minha tarefa, mesmo em meio ao temporal que desabava.

Fechando nosso “cortejo” vinha eu, cansado e esfolado pela procura no mato, mas  aliviado e orgulhoso por haver passado por uma “prova”. Junto à cocheira estavam meu pai preocupado com minha “prova” e minha mãe aflita pelos riscos e pelas minhas aflições que ela adivinhava. Ainda foi preciso concluir a tarefa, soltando os bezerros para que mamassem.  Chovia, mas agora estava todo mundo em casa e garantido nosso leite da manhã seguinte. Os cuidados de minha mãe, a sopa quente e a cama, nunca me haviam parecido de tanto conforto e aconchego. Adormeci com o barulho da chuva em nosso telhado destituído de qualquer forro.

Nota: Campos com Nuvens de Tempestade, obra de Vincent van Gogh

UM MENINO CHAMADO PETER

Autoria do Prof. Rodolpho Caniato*

Os mesmos fatos podem ser registrados em diferentes pessoas de formas e intensidades muito distintas, com significados às vezes opostos.

Corria o ano de 1937. Desde o começo desse ano eu frequentava o primeiro ano de minha primeira escola, o Colégio Teuto Brasileiro ou Deutsche Brasilianische Schule, na Rua Siqueira Campos, em Copacabana. Já o ano letivo havia começado e todos os alunos daquela minha turma se conheciam, quando apareceu um novo aluno que não falava português. Era o Peter. Ele estava recém-chegado da Alemanha e ainda vinha com suas roupas tipicamente alemãs, com suspensórios e peitoral de couro.

Eu ia e voltava a pé, numa caminhada de algumas quadras, desde o “Atalaia” até nossa escola. Nosso novo colega não falava português.  Ele morava numa travessa, quase esquina, da Rua Barata Ribeiro, a meio caminho de meu trajeto diário para a escola. Passamos a voltar juntos todos os dias, cada um com sua maleta de couro às costas. Por isso ficamos amigos. Ele ia aprendendo um pouco de português e eu podia entendê-lo. Muitas vezes eu o acompanhei até a entrada do pequeno apartamento térreo em que morava com seus pais, sempre ausentes.

Numa das vezes fiquei conhecendo sua mãe. Peter sempre trazia a chave de sua casa pendurada num cordão ao redor do pescoço. No mais das vezes, ficava sozinho em sua casa e com ordens taxativas de sua mãe para que, depois de comer, fosse dormir, precisamente às três horas da tarde. Ele seguia essas ordens com um rigor simplesmente germânico. Nunca me contou a razão da vinda de sua família da Alemanha para o Brasil. Sabendo, por meus relatos, que ele sempre comia sozinho e depois ia dormir, minha mãe insistiu para que eu o convidasse para vir almoçar comigo, em nossa casa.

Ele veio várias vezes. Numa dessas, minha mãe, suíça, havia feito uma comida brasileira que ela sabia ser desconhecida para o Peter. Por isso, explicou-lhe, em alemão, que não precisava comer aquilo  que não fosse de seu agrado. O surpreendente foi sua resposta pronta e taxativa, também em alemão: “muss alles gegessen werden” (“tudo (que vem à mesa) tem que ser comido”). Depois do almoço ainda tínhamos  tempo para alguma brincadeira ou conversa fiada. Às vezes, minha mãe contava alguma história que ela mesma ia criando e contando para o nosso convidado.

Outro aspecto curioso era o rigor com que o Peter seguia as ordens de sua mãe ausente. Às três horas em ponto ele saia, interrompendo qualquer coisa que estivéssemos fazendo, para usar a chave que trazia pendurada ao pescoço e, mesmo sozinho, obedecer à ordem de ir dormir. Só muitos anos depois eu fiquei sabendo que sua família, como milhares de outras, fugiam da Alemanha por sua origem judia ou simplesmente por serem contrárias a Hitler. Estávamos nos anos próximos à eclosão da Segunda Guerra Mundial.

Esses episódios ligados ao Peter ficaram para sempre lembrados e relembrados na história de nossa família. Era algo muito diferente de nossos hábitos, a obediência intransigente a alguma ordem “superior”, ainda mais numa criança de sete anos. A imagem daquele meu colega de infância ficara indelevelmente gravada em minha memória, talvez por isso.

No ano seguinte, em 1938, nós nos mudaríamos do Rio para Corrupira e nunca mais eu soube de qualquer daqueles amigos de minha infância. Tudo foi ficando num distante passado. Nunca mais tive qualquer notícia do Peter. Mais de setenta anos depois, eu, aposentado, fazendo uma caminhada pela praia de Copacabana, vejo um casal que vem caminhando, em direção contrária, bem em frente e próximo. Reconheci imediatamente o Peter. Em poucos instantes vi e revi nos arquivos de minha memória aqueles traços de um rosto conhecido de tantos anos passados. Hesitei em abordá-lo. Era demais. Seria mesmo o Peter? No momento em que nos cruzamos, bem de perto, achei que era ele.

Segui caminhando e procurando me certificar se não estava sendo enganado por alguma confusão na memória e pela emoção que isso provocava em mim. Durante os dez metros, depois de nos cruzarmos, vi e revi os  arquivos de minhas memórias. Tive certeza de que era mesmo o Peter. Certo de estar vivendo um encontro extraordinário e de repetição improvável, resolvi voltar, passar bem à frente do casal, garantir mais uma dianteira e a volta para repetir a observação que me desse mais uma oportunidade de nos vermos cara a cara.  Quando nos aproximamos pela segunda vez, tive certeza de que era ele.

Resolvi abordá-lo: desculpe-me, o Sr. se chama Peter? – Sim, foi a resposta. Seu sobrenome é Fulano? Era mesmo o Peter Fulano. Eu estava tomado de grande emoção. Ele, de nenhuma. Relatei então brevemente as circunstâncias em que nossas vidas se haviam cruzado, mais de setenta anos atrás. Diante de minha insistência ele me contou que era médico e que também estava aposentado. Logo percebi que do lado dele não havia ficado qualquer registro importante do nosso encontro da infância. Diante da frieza e desinteresse de meu interlocutor, pedi desculpas pela abordagem, despedi-me e segui minha caminhada pela praia.

Muito pensei, depois, sobre esse encontro. Eu levava na memória uma história cheia de significados, para mim. No entanto, para ele, os mesmos fatos não haviam sido sequer registrados. Tive que reexaminar as causas de minha frustração naquele encontro. Isso acontece muito ao longo da vida da gente. Os mesmos fatos podem ser registrados em diferentes pessoas de formas e intensidades muito distintas, com significados às vezes opostos. Eu já havia notado, mesmo em meus (cinco) filhos, como os mesmos fatos tinham registros e interpretações tão diferentes em cada um deles. Conheço famílias em que um irmão se lembra da infância modesta, mas alegre e feliz que tiveram, enquanto outro se lamenta da “miséria” que viveram. Os mesmos fatos podem ter significados tão diferentes e até opostos, segundo as circunstâncias e vivências de cada um: os mesmos fatos podem ter significados, até postos, segundo as diferentes “constelações” de emoções que povoam nossas mentes.

*http://astronomia.blog.br/rodolpho-caniato/

Nota: a ilustração é uma obra do pintor alemão Karl Schmidt-Rottluff

Drauzio Varella – SENTI VERGONHA DE SER BRASILEIRO

Dr. Drauzio Varella*

drauzio

Pela primeira vez em 70 anos senti vergonha de ser brasileiro. Culpa da TV, que me manteve hipnotizado na frente da tela, enquanto transmitia a votação do impeachment na Câmara, duas semanas atrás.

Não posso alegar desconhecimento, ingenuidade ou espanto, vivo no Brasil e acompanho a política desde criança. Todos sabem que é lamentável o nível da maioria de nossos deputados, mas vê-los em conjunto despejando cretinices no microfone foi assistir a um espetáculo deprimente protagonizado por exibicionistas espertalhões, travestidos em patriotas tementes a Deus. Votavam o impeachment de uma presidente da República, como se estivessem num programa de auditório, preocupados somente em impressionar suas paróquias e vender a imagem de mães e pais amantíssimos.

E pensar que aqueles homens brancos enfatuados, com gravatas de mau gosto, os cabelos pintados de acaju e asa de graúna, com a prosperidade a transbordar-lhes por cima do cinto, passaram pelo crivo de 90 milhões de eleitores que os escolheram para representá-los. Para aqueles, que não viveram como nós, as trevas da ditadura, manter a crença na democracia brasileira chega a ser um ato de fé.

* Médico cancerologista, um dos pioneiros no tratamento da AIDS no Brasil e do trabalho em prisões.

Fonte de pesquisa:
Brasil 247