Arquivo da categoria: Flagrantes da Vida Real

Casos do cotidiano

AIDS, DROGAS, HAITI E A FAMÍLIA DUVALIER

Autoria de Ivan Large

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Depois da saída de um jovem casal portador do vírus da AIDS (SIDA) do meu consultório, eu continuei pensando nesta terrível doença que apareceu de maneira tão aterradora, vinte anos atrás. Na época, eu fazia meu estágio de dois meses, como interno, no departamento de clínica médica do Hospital da Universidade do Estado de Haiti, centro de referências, aonde chegavam os casos mais graves, oriundos do país inteiro.

Meus colegas e eu, todos recém-formados, tínhamos a responsabilidade ímpar de salvar uma multidão de vidas humanas ameaçadas por doenças, que precisávamos identificar com rapidez, e combater com os poucos recursos de que dispúnhamos. Nossa principal arma era o exame clínico, do qual precisávamos extrair o máximo de informações, que conduzissem a um diagnóstico, já que os exames complementares, colocados à nossa disposição, eram limitados. Com uma radiografia torácica borrada numa mão, e, na outra, alguns exames laboratoriais de amostras de sangue e fezes, colhidas às pressas, tentávamos corroborar nossos achados clínicos, a fim de iniciar o tratamento com as poucas drogas disponíveis na farmácia do hospital. Algumas vezes saíamos vencedores dessa luta desigual, mas tínhamos pouco tempo para congratulações, pois outro contingente estava chegando, dando início a novas lutas, cujo desfecho infeliz acontecia com uma frequência cada vez maior.

Atribuíamos o insucesso à falta de recursos e à nossa inexperiência, que tentávamos compensar, pesquisando nos livros de medicina e nas revistas a que tínhamos acesso. Entretanto, a literatura não trazia uma resposta satisfatória às nossas questões. Não encontrávamos, por exemplo, descritos em nenhum lugar, casos como os desses pacientes, que chegavam num estado geral calamitoso, com uma magreza cadavérica, diarreia profusa, a pele inteira coberta de manchas, a boca cheia de placas brancas e na radiografia do tórax, a imagem de uma infecção pulmonar generalizada. O mais intrigante é que esses casos, que escapavam da nossa compreensão, e desafiavam o conhecimento de todos, inclusive de nossos professores, eram cada vez mais frequentes.

Certo dia, tivemos uma resposta às nossas indagações. Não imaginávamos, quando fomos reunidos para uma comunicação importante, que estávamos testemunhando um acontecimento que modificaria radicalmente a vida na Terra. Foi lida a primeira descrição, relatada na literatura médica, de uma doença idêntica a que enfrentávamos. Era ela a AIDS (SIDA), síndrome de imunodeficiência adquirida ou a doença dos quatro H, porque atingia Homossexuais, usuários de Heroína, Hemofílicos e Haitianos. Segundo o trabalho científico, o simples fato de sermos haitiano fazia-nos correr o risco de contraí-la. Sendo transmitida pelo sangue, o risco de ser infectado era maior nos hemofílicos, submetidos a repetidas transfusões de sangue nos usuários de heroína, que compartilhavam agulhas contaminadas, e nos homossexuais, cujas relações eram mais traumáticas que nos heterossexuais. Porém, não conhecíamos nenhuma forma de troca de sangue específica para os haitianos.

Em nenhum instante, a impressionante reputação dos autores do artigo fez-nos concordar com o que acreditávamos ser uma pura bobagem, em relação aos haitianos, que o tempo encarregar-se-ia de comprovar. Contudo, o mundo inteiro acreditou neles, como tinha acreditado, cinco séculos antes, que a sífilis era uma doença dos nativos do Novo Mundo, trazida ao mundo civilizado, após a viagem de Cristóvão Colombo. A conclusão de que o simples fato de ser haitiano constituía um fator de risco devia-se a uma falha na metodologia empregada no estudo. Os pesquisadores encontraram um grande número de haitianos, portadores da doença, que não eram hemofílicos, não faziam uso de heroína e não eram homossexuais, como diziam. Do que eles não se deram conta é que a mentalidade machista dos haitianos questionados não os deixava admitir que fossem homossexuais, já que mantinham tais relações apenas por dinheiro. Os cientistas concluíram e afirmaram que os haitianos representavam um grupo de risco. Como eram os donos da verdade, ninguém atreveu-se a contradizê-los. E quem se importaria em defender a reputação de um povo constituído na sua grande maioria de miseráveis e, antes de tudo, negros?

Esta conclusão errada teve consequências imprevisíveis para meu país. Antes do aparecimento da Aids, o Haiti, apesar de ser um país muito pobre, tinha no turismo o seu único recurso econômico. Uma natureza privilegiada com montanhas luxuriantes e praias quase selvagens, banhadas pela água morna do mar dos trópicos, uma cultura tradicional trazida da África, no tempo da escravatura, uma arte pictórica primitiva, multicolorida, elogiada pelos críticos de arte, eram os ingredientes que atraiam turistas em busca de exotismo. Existia outro ingrediente subestimado na época – o turismo sexual, já que tudo (em matéria de sexo) era permitido nessa terra sem leis, a não ser as que poderiam ameaçar a perenidade da ditadura no poder.

As conclusões do estudo científico foram amplamente divulgadas no mundo inteiro, e interpretadas como um aumento do risco de contrair AIDS o simples contato com os haitianos. Isso significou o fim do turismo no país e, consequentemente, da sua única fonte econômica. O empobrecimento ainda pior do povo haitiano repercutiu de maneira negativa nas rendas da família dos Duvalier, que acumulavam imensas fortunas à custa dele. Era precisava encontrar outra fonte de renda para substituir o turismo decadente. A posição estratégica do país forneceu aos dirigentes uma solução para o angustiante problema. Ao examinar um mapa, constatou-se que o Haiti situava-se numa linha imaginária que vai da Colômbia a Miami. Com sua situação privilegiada, o país tornou-se uma parada obrigatória na rota do tráfico de drogas. De novo voltaram a prosperar os negócios da família Duvalier, que recebia vultosas propinas dos traficantes de droga, que encontraram nessa terra paradisíaca um porto seguro entre Medelín e a Flórida.

Tudo ia da “melhor” maneira no “melhor” dos mundos, até que outro estudo científico, comparando o desempenho dos estudantes americanos com o dos japoneses, concluiu pela superioridade desses últimos. Outro estudo concluiu que o uso de drogas nas escolas americanas era a causa do desempenho insatisfatório de seus alunos. O Pentágono decidiu então que era preciso combater a entrada de drogas nos EUA. Um dos meios escolhidos foi interromper a rota do tráfico, colocando um termo aos trinta anos de ditadura da família dos Duvalier. O resto, o mundo já sabe…

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UM CORPO PARA A PROVA DE CIRURGIA

Autoria do Dr. Ivan Large

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Na parede, ao lado do velho retrato, meu diploma de médico suscita, às vezes, a curiosidade dos meus pacientes.

– Como? O Senhor se formou no Haiti? – perguntam-me alguns.

– Eu me formei, sim! – respondo

Esta resposta lembra-me as dificuldades que tive que enfrentar ao término dos meus estudos de medicina. Nessa época, eu estava concluindo o segundo semestre do ú1timo ano do curso de medicina. Já tinha realizado, com sucesso, quase todas as provas finais exigidas para obtenção do diploma de médico. Apenas uma última prova erigia-se como um obstáculo intransponível entre a minha vida de estudante e a concretização dos meus anseios de me tornar, oficialmente, um discípulo de Esculápio. Tratava-se da prova prática de técnica cirúrgica, que consistia em realizar, num cadáver, atos cirúrgicos escolhidos pelo examinador. Nessa ocasião, usava-se um corpo para cada dois alunos. Como tinha mais de cem alunos em cada turma, essa prova exigia o número respeitável de pelo menos cinquenta cadáveres para a sua realização.

Essa exigência, em tempo normal, era cumprida sem muita dificuldade. Esta expressão “tempo normal” toma, na época à qual eu me refiro, uma conotação um pouco singular.
Em “tempo normal”, sob a ditadura dos Duvalier, as cadeias eram repletas de prisioneiros políticos. Poucos deles sobreviviam muito tempo às torturas e às condições desumanas às quais eram submetidos. Depois do falecimento do infeliz, o seu corpo mutilado, que ninguém reclamava, ficava a disposição dos estudantes da faculdade de medicina. Dessa situação absurda para o leitor (pelo menos, eu espero que seja), mas normal nos meus tempos de estudante, resultava uma abundância de corpos, que podiam ser “aproveitados” nas aulas e provas práticas de anatomia e técnica cirúrgica. Entretanto, nesse final de ano, contrariando a “norma1idade”, não havia um único cadáver disponível para minha prova. A explicação dessa estranha escassez residia na inc1usão de um conceito inusitado na política nacional: o dos direitos humanos.

Essa mudança inesperada na nossa vida tinha o seu ponto de partida na politica dos Estados Unidos, com a vitória, nas eleições presidenciais, do candidato do partido democrata – Mr. Jimmy Carter. Até então, a confiança em Deus, expressa abertamente por nossos poderosos vizinhos, sob o lema “In GOD, we trust” (dizem as más línguas que eles teriam se esquecido de colocar um “L” no “GOD”), nunca havia-1hes impedido de apoiar as sanguinárias ditaduras latino-americanas, em nome da luta implacável do capitalismo contra a ameaça do comunismo, sem a menor consideração pelos direitos humanos, considerados desprezíveis na época.

De repente, a nova politica internacional americana, estabelecida pelo presidente Carter, impunha aos regimes ditatoriais latino-americanos um mínimo de respeito aos direitos de seres humanos, até então acostumados a se submeter, calados, ao poder absoluto de uma só família. Por isso, as cadeias haitianas não ficavam mais tão cheias como antigamente. As execuções sumárias eram bem mais discretas. Os prisioneiros políticos desapareciam secretamente sem deixar traços comprometedores; isso em detrimento do ensino da medicina na universidade, que não teve o tempo hábil de adaptar o seu currículo aos novos rumos da política nacional e internacional.

Se de um lado eu estava comemorando este embrião de democracia que eu experimentava pela primeira vez em minha vida, do outro, estava impaciente para concluir o curso e entrar de férias. Durante essa espera interminável, eu tinha que repassar, todos os dias, a extensa matéria, a fim de não esquecer qualquer detalhe sobre o qual poderia ser questionado durante o exame.

Uma noite, eu estava estudando na casa de um colega, quando um barulho estrondoso rompeu o silêncio vesperal. Era, sem a menor sombra de dúvida, um tiro disparado na proximidade, por alguma arma de fogo. Soubemos, alguns instantes depois, que um ladrão havia sido baleado na casa de um vizinho. Fomos vê-lo. Era um rapaz jovem, vestido apenas com uma calça preta, apresentando um buraco no meio da testa.

No dia seguinte fui à faculdade, como eu fazia todos os dias, durante quase um mês, na esperança de realizar a prova. Desta vez, fui informado de que tinha um cadáver disponível e, que eu ia ser submetido à prova, na mesma hora. Um pouco apreensivo, entrei na sala de exames onde avistei um corpo estirado sobre uma mesa, Aproximei-me dele lentamente. Pude constatar que era o corpo de um rapaz jovem, com um buraco no meio da testa – o 1adrão morto na véspera. Fiquei olhando para esse desconhecido, cujo terrível desfecho da vida abria para mim as perspectivas de uma vida nova. Duas vidas bem diferentes uma da outra; a minha centrada nos meus preparativos para a prova, a dele toda dedicada aos seus preparativos para uma tentativa de roubo.

Nos dias em que eu ia regularmente à faculdade e nas noites que passava mergulhado nos meus livros, aquele jovem ficava observando detalhadamente a casa que pretendia visitar, estudando cuidadosamente os hábitos dos seus moradores. Enquanto eu precisaria demonstrar o meu conhecimento de anatomia e minhas habilidades de futuro cirurgião, ele teria que provar a sua esperteza em arrombar uma porta, sua agilidade em escalar muro, sua coragem em arriscar a própria vida. Vidas tão diferentes uma da outra, mas ambas convergindo inexoravelmente para uma prova!

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EXAMINANDO OS OLHOS DOS ANJOS

Autoria do Dr. Ivan Large

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Pendurada na parede da minha sala, uma foto antiga, em preto e branco, de um homem com jaleco. É de um oftalmologista com quem eu tive o grande privilégio de conviver. Há dez anos, ele foi embora para um mundo melhor. Exerceu dignamente a sua profissão durante a vida toda. Só parou de trabalhar, quando adoeceu, uma semana antes de morrer, aos oitenta e dois anos de idade.

Não sei, nem ele mesmo talvez soubesse, se continuava trabalhando por amor à profissão ou porque não tinha condições financeiras de parar. Nem a aposentadoria ridícula, que recebia do Estado, após mais de cinquenta anos dedicados a tratar olhos num hospital para pobres, nem as magras economias honestamente acumuladas durante uma vida inteira de muitos sacrifícios eram suficientes para assegurar-lhe uma vida decente. O que eu sei é que trabalhar fazia parte da sua vida. Com mais de oitenta anos, cuidava dos seus pacientes com o mesmo entusiasmo que aos vinte.

Poucos anos antes de falecer, esse homem foi obrigado a suspender suas atividades, devido a uma fratura no quadril, que o manteve imobilizado na cama, durante mais de seis meses. Ele aceitou essa fatalidade com resignação e paciência, deitado num quarto improvisado atrás da sala, que lhe servia de consultório. Lá ficava, lendo e rezando na maior parte do tempo.

Lembro-me de que, certo dia, quando fui visitá-lo. Ele não estava sozinho. Tinha um homem sentado ao seu lado, com o rosto quase colado ao seu. Passado o primeiro momento de susto, pude constatar que o velho médico estava com o seu oftalmoscópio na mão, examinando o fundo do olho do visitante, que era de fato um paciente. Já tive muitas oportunidades de assistir ao exame de fundo de olho feito no leito de um paciente. Pela primeira e única vez na minha vida, eu tinha o privilégio de ver esse exame sendo realizado no leito do médico.

Um ano depois, já recuperado da sua fratura e de volta às suas atividades profissionais, o velho médico estava atendendo no seu consultório, quando chegou um homem, que se apresentou como paciente. De repente, o visitante tirou um revólver debaixo da sua camisa, enquanto revelava as suas verdadeiras intenções, num tom ameaçador:

– Eu sei que você guarda o seu dinheiro nessa gaveta. Dê-me toda a grana que há lá dentro, senão eu o mato!

O médico abriu a gaveta, mas, em vez de dinheiro, tirou um crucifixo sob o olhar consternado do assaltante, que não esperava tal reação.

– Com esta arma, não temo a sua! – replicou, referindo-se à pequena cruz que brandia na direção de seu rosto.

Frente a essa atitude irredutível, o ladrão tinha apenas duas alternativas: matar ou não matar. O que teria acontecido, se Judas, exercitando seu livre-arbítrio, e contrariando as profecias bíblicas, não tivesse entregado Jesus aos seus inimigos? O que teria acontecido, se o povo judaico, em vez de Barrabás tivesse pedido a soltura do Messias? O que aconteceu nesse pequeno consultório é que o ladrão escolheu não matar. Foi embora, furioso, sem usar a sua arma contra o velho médico e tratando-o de louco.

Aconteceu também que um dia, depois de ter escapado da morte, numa situação tão perigosa, o velho médico ficou doente, após tomar no jantar uma sopa um pouco indigesta. Essa indigestão, aparentemente simples, foi se complicando gradativamente até culminar com uma parada cardíaca da qual, dessa vez, ele não escapou. Era como se o destino, por causa da desistência do seu emissário, tivesse falido na execução do crime violento que tinha planejado. Teria então mudado os seus planos, resolvendo deixar a sua pobre vítima terminar os seus dias na paz que ele tanto merecia.

Olho com nostalgia este retrato amarelado pelo passar do tempo e imagino, sorrindo, meu velho pai, sentado numa nuvem, examinando os olhos dos anjos.

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A ENTREVISTA: UMA VOLTA AO PASSADO

Autoria do Dr. Ivan T. Large

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Sentada à minha frente, uma moça, de mais ou menos vinte anos, está me fazendo um relato detalhado da sua formação profissional e da sua experiência adquirida em trabalhos anteriores. Desta vez não é uma paciente, mas uma candidata ao cargo de secretaria, quem estou entrevistando.

Olhando para ela, eu volto no tempo e me vejo vinte anos mais jovem, sentado no seu lugar, em frente do todo poderoso diretor de um dos maiores hospitais de olhos dos Estados Unidos, onde eu estava fazendo um estágio, na esperança de ser admitido como residente.

Alguns minutos antes, eu havia cruzado com ele, por acaso, no corredor do hospital, quando ele me chamou para uma reunião. Andei até o seu escritório, onde eu pensava ter com ele uma conversa apenas informal. Não sabia que, nesse momento, eu estava me dirigindo para uma das entrevistas mais importantes da minha carreira.

Na mesa da sua sala havia um livro aberto, provavelmente um romance. Fiquei surpreso pelo fato de não se tratar de um livro de oftalmologia, e tentei descobrir o nome da obra. Ele notou a minha curiosidade e me perguntou se eu já havia lido aquele livro que era um “best-seller” da época. Respondi com ingenuidade que não me sobrava muito tempo para dedicar à leitura de livros que não tratassem especificamente de oftalmologia.

Acabava de fechar, sem saber, uma porta. Ele me fez outras perguntas muito genéricas e das quais eu não me lembro, com exceção de uma:

– Você é casado?

Não – respondi, e acrescentei, não sei por que – graças a Deus!

A porta que eu havia fechado agora a havia trancado definitivamente, e jogado a sua chave no lixo. A entrevista terminou com a sua promessa de me chamar quando aparecesse uma vaga disponível. Quantas noites, enquanto aguardava desesperadamente ser chamado, passei sem poder dormir, na solidão do meu quarto, revivendo esse episódio vergonhoso da minha vida.

Precisava eu ter transmitido ao meu interlocutor que, naquele momento preciso, estava com meu destino em suas mãos? A impressão triste e, acima de tudo, falsa de que ele tinha na sua frente um rapaz arrogante, sem nenhum interesse para a leitura e sem o menor respeito para com o casamento? E, consequentemente, com a família, que é a base da vida e representa a mais importante instituição da nossa sociedade?

A fim de fugir dessa sensação constrangedora, “abandono” a cadeira de entrevistado, onde a minha mente estava “sentada”, deixando-a para minha futura secretária, que está terminando de me convencer que ela é, sem nenhuma dúvida, a pessoa mais qualificada para me auxiliar,

Como ela, eu poderia ter tentado passar ao diretor do hospital uma imagem um pouco aperfeiçoada da minha personalidade. Poderia ter explicado, por exemplo, que o meu estado de solteiro não fazia de mim uma ameaça à sociedade, e não era motivado pelo fato de ser inimigo do casamento, mas sim pelo fato de não ter encontrado ainda minha alma gêmea. Poderia também ter esclarecido que não me dedicava à leitura por falta de interesse, mas sim de tempo, tão empenhado que estava no momento em “escrever” um capítulo muito importante da minha vida, cujo final feliz ou não, dependia da sua decisão de me dar uma oportunidade.

Enquanto analiso os diversos argumentos que eu poderia ter apresentado em meu favor, o meu olhar cai sobre o retrato de uma menina sorridente de oito anos. É a minha filha que, a cada dia, traz-me mais felicidade, e aquela entrevista faz-me concluir que, no final, a minha entrevista não poderia ter sido melhor.

Nota: ilustração do autor

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O DIA EM QUE A VIRGEM CHOROU…

Autoria do Dr. Ivan Large

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Sai o torcedor de futebol, e entra na minha sala um religioso, vestido com sua tradicional batina. É frei Chico, parecendo muito apressado, como de costume. Essa impressão se confirma quando, havendo-lhe perguntado como está, ele me responde, com um ar de ironia, que estaria muito melhor se eu não o tivesse feito esperar mais de meia hora, antes de ser atendido.

Einstein já demonstrou a relatividade do tempo. Agora é minha vez de demonstrar que o humor do Frei Chico também é relativo e, sem mais nem menos, pergunto-lhe se soube de uma Virgem Maria que chorou alguns anos atrás, lá na minha terra natal, no Haiti. A sua expressão de contrariedade dá lugar a uma de curiosidade e, tal como Sherazade, aproveito para iniciar esta história:

Tudo começa num domingo, na igreja Santa Maria da Consolação, na pequena cidade de Jacmel. São dez horas da manhã. A igreja está lotada. São fiéis de todas as idades vindos para assistir à missa “dos Ramos”. Enquanto esperam, aproveitam para treinar os cânticos que serão entoados durante a celebração religiosa.

Num canto um pouco isolado da igreja, um grupo de mulheres vestidas de preto, os rostos cobertos por um véu de renda da mesma cor, seguram entre os dedos os grãos de seus rosários. Rezam em voz baixa, ajoelhadas aos pés de uma pequena estátua de Santa Maria da Consolação. De repente, nesse canto da igreja, ecoa um grito estridente. Todos os olhares convergem em direção a uma mulher desmaiada aos pés da estátua. Todos querem prestar socorro à pobre devota que, apesar do excesso de zelo da assistência, consegue, após alguns minutos de palmadas e copos de égua fria no rosto, recuperar os sentidos. Ainda no chão, sustentada por suas companheiras, aponta um dedo trêmulo em direção à estátua, enquanto tenta balbuciar palavras incompreensíveis Após algumas tentativas, acaba pronunciando as palavras: “Lágrimas, lágrimas…  Virgem…”

Todos olham para a estátua e veem, consternados, uma lágrima escorregando no rosto de madeira. Uma crise de histeria coletiva toma posse de todos os presentes. Atraído pelos gritos, o padre chega correndo. Sumariamente informado pelo sacristão sobre a causa de tal desordem, afasta os curiosos agrupados à frente da estátua e, após examiná-la, cuidadosamente, confirma com voz solene:

– A Virgem está chorando!

A notícia extraordinária percorre o país inteiro num tempo recorde. A partir desse momento, a pequena cidade torna-se o centro das atenções. Todos, mesmo os menos crédulos, querem testemunhar o milagre.

No mesmo dia, as autoridades eclesiásticas fazem um relatório detalhado a seus superiores, no Vaticano, pedindo-lhes que a cidade de Jacmel seja transformada, urgentemente, num centro de peregrinações, a ser visitado pelos católicos do mundo inteiro. A grande burguesia da cidade já está se articulando a fim de preparar, o mais rápido possível, uma infraestrutura para receber os futuros turistas, com investimentos pesados na construção de luxuosos hotéis.

Apenas um jornalista meio ateu quer comprovar o milagre. Com um tubo de ensaio na mão, vai para a igreja a fim de recolher uma lágrima da Virgem, com a intenção de submetê-la a análises laboratoriais. Não é autorizado a aproximar-se da estátua, que está atrás de um vidro à prova de balas, sob a guarda de militares armados até os dentes. A Virgem encontra-se sob a proteção do exército, por ordem expressa do Presidente da República, que espera tirar o melhor partido deste “boom” na economia do país.

Entretanto, numa outra igreja, um jovem padre, que um dia se tornará um grande líder político, pronuncia um sermão, no qual deixa pairar a seguinte dúvida: As lágrimas da Virgem são de alegria ou de tristeza? Imaginando que seja de tristeza, qual seria a causa dessa tristeza? Seria ela a situação deplorável na qual se encontra o país? E se a moda pegar? E se todos começarem a chorar? Então, todos os esforços do governo, para dar alegria ao seu povo, com festividades carnavalescas e partidas de futebol, teriam sido desperdiçados em vão? Todas essas dúvidas levam os donos do poder a concluir que essas lágrimas podem ser interpretadas como uma forma de contestação contra a sua autoridade, e por isso devem parar.

De santa, a Virgem vira demônio. Numa reunião organizada dentro do palácio, o Ministro da Guerra e Cultura ordena que a igreja seja imediatamente queimada. O arcebispo lembra que tal atitude poderia atrair a ira divina e aconselha uma medida menos drástica. Sugere que a Virgem seja colocada numa pequena sacristia inacessível ao público. Sua ideia é aceita e, durante a noite, a estátua é transportada sob forte escolta, para o subsolo da mais terrível cadeia do país, e instalada numa minúscula jaula, cuja entrada é murada.

Nunca mais, alguém a verá chorar…

Contam que, décadas depois, durante a revolta que colocara um término à ditadura dos Duvalier, a cadeia é tomada pelos revolucionários. Eles derrubam o muro que impede a entrada da jaula, onde está escondida a estátua, mas no seu lugar encontram um ramo de salgueiro petrificado. Este fato é interpretado por alguns como um novo milagre. Mas isso é outra história, que eu prefiro reservar para a próxima consulta do Frei Chico.

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O PAR DE ÓCULOS

Autoria do Dr. Ivan T. Large

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A minha secretária entra na minha sala e entrega-me um par de óculos para ser conferido. Eu lhe pergunto:

– De quem são estes óculos?

Esta simples frase leva-me de volta ao tempo, mais de 25 anos atrás. Na época, eu morava no Haiti, minha terra natal, sob a ditadura implacável de Jean Claude Duvalier, mais conhecido como “Baby Doc”, herdeiro e digno sucessor do cruel “Papa Doc”, Durante três intermináveis décadas, pai e filho mantiveram-se no poder pela força das armas, reprimindo ferozmente qualquer forma de oposição.

Nesse clima de terror, prudência era sinônimo de sobrevivência. Um simples comentário sugerindo uma discordância com qualquer ato do governo era considerado crime e traição contra a nação, e impiedosamente punido com cadeia acompanhada de torturas, culminando, às vezes, com a morte. Quem, como eu, nascia nesse tipo de regime, tinha que aprender a calar-se antes mesmo de aprender a falar. Mas, mesmo assim, a sede de liberdade e democracia era mais forte e encontrava meios de expressar-se sutilmente, como, por exemplo, através das artes plásticas.

Um dia, tive a oportunidade de assistir a uma exposição de quadros. Picasso escreveu que “pessoas que querem explicar telas ladram para a árvore errada”. Lá ia eu, então, percorrendo o salão, “ladrando” de quadro em quadro. A linguagem simbólica usada pelo artista prestava-se bem ao meu anseio de interpretação;

Atrás de um andaime, uma mulher grávida sentada no enquadramento de uma janela, Em volta dela e dentro dela, construções edificando-se lentamente. Era um prelúdio à vida. Uma pipa multicor voando livremente no céu, deixava imaginar, na outra ponta do fio, a mão da criança que lhe dava vida. Era como dizia Odilon Redon “o visível a serviço do invisível”. Numa outra tela, apenas um par de óculos em cima de uma mesa, mas que me deixou intrigado, e me fez perguntar ao pintor:

– De quem são estes óculos?

Ele me levou num canto deserto da sala, longe de qualquer orelha indiscreta. Lá, ele me contou, em voz baixa, que o Papa Doc gostava de assistir às sessões de tortura. Permanecia em silêncio, e não era permitido mencionar o seu nome. Mas antes de tudo, tirava os seus óculos e colocava-os em cima de uma pequena mesa. Para o torturado que tinha que manter a cabeça baixa, o único sinal da sua chegada ao local era a presença dos óculos sobre a mesa, situada no seu campo de visão. Era também o sinal de que as torturas seriam ainda mais sádicas que de costume, já que os carrascos aproveitavam para demonstrar excesso de zelo, para agradar ao chefe.

– Estes óculos são do senhor Sebastião – responde-me a minha secretária.

Eu suspiro, aliviado.

Nota: ilustração do autor

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