Autoria do Prof. Pierre Santos
Eis que os acasos da vida trazem-me, ao conhecimento, algo excepcional, inesperado, desconcertante mesmo, da lavra de Guignard. Trata-se da pintura Cidade Colonial Imaginária, feita poucos dias antes de deixar-nos, sobre aleatório recorte de uma prancha de compensado, casualmente recolhida pelo pintor do chão de alguma pequena fábrica de móveis. Claro que algo assim extravagante e único no conjunto da obra deixou-me profundamente intrigado, levando-me a perguntar, dada a extraordinária qualidade plástica ali encontrada: que quadro é este? Quadro? Que objeto é este? Objeto? Que composição é esta, que ultrapassa a naturalidade da visão, para roçar o inaudito da ultra realidade?
Jamais vira algo assim no conjunto das realizações plásticas de Guignard. O presente trabalho se reveste de uma gravidade, que me obriga a pensar, ser ele a última criação do mestre, realizada poucos dias antes de sua morte. Lembro-me de que Arlinda, conversando comigo antes do velório do artista e ainda no Hospital São Lucas, onde faleceu, referiu-se ao fato de que, antes de sua doença agravar-se, “Guignard andou brincando lá no atelier com uma coisa bem diferente…”. Acredito que tal referência seria ao trabalho em foco; só que não estava brincando, pois quando pegou o recorte, já sabia o que fazer com ele, algum tempo depois, quando se dispusesse a usá-lo.
O material usado mais nos parece mera peça de imenso quebra-cabeça, mas é apenas o recorte aleatório, que os fabricantes locais de chapeleiras faziam em peças de compensado ou em papelão comum, e pregavam o restante devidamente pintado, sem aquele recorte feito, sobre o espelho, que as encimavam, para atenuar a transparência. Num recorte assim, Guignard dispôs de baixo a alto o seu motivo. Detenho-me primeiramente em algo que também me intriga: não sei se intencional ou se inconscientemente, o artista pôs sua grande cabeça, sobrepujando aquela paisagem, que via pela vez derradeira, como se estivesse desincorporado.
Se olharmos de maneira difusa para o morro acima da primeira igreja, a maior, ela perde na fímbria de nossa visão a sua fixidez, transformando-se numa boca cheia de dentes, pois a figura está sorrindo. Duas linhas onduladas partem de suas torres, vinculando-a com as duas igrejas acima dela: são os olhos. A face está um pouco inclinada para baixo, na posição de quem esteja vendo do alto. E no espaço infinito do cérebro, a paisagem com seus vales, morros, nuvens e balões povoa o sonho do artista. Duvido que tal coisa não tenha sido feita de propósito. Pura mágica.
Como Guignard intuiu este panorama e, no âmbito de sua intuição, propôs-se a edificá-lo? Embaixo, no primeiríssimo plano, balões inflados pouco abaixo começam a ascender-se e já estão prestes a ultrapassar a trilha, que leva, não se sabe de onde, à primeira igreja, sobrevoando as primeiras nuvens às fraldas do morro mais próximo. Guignard vê tudo isso de cima. De cima? Mas de onde? Promontório algum seria capaz de ombrear-se com toda essa elevação! Não há promontório, nem nada. Na imaginação, a alma se lhe desprendeu do corpo e voeja por sobre a paisagem rumo ao mundo encantado da fantasia. Seis igrejas construídas no nada ponteiam o espaço e, coordenadas com vales e montes, conduzem a visão do artista ao infinito, onde o céu azul com suas nuvens brancas prepara-se para embalar os balões que, naquele espaço, começam a levitar, balões que, sintomaticamente, de alto a baixo, têm o mesmo tamanho! Puro sonho.
Devido ao exotismo do recorte, jamais tinha visto algo assim na obra de Guignard e certamente é o único. Além disso, alguns recursos aí empregados comprovam, de maneira inequívoca, a presença do mestre nesta pintura: primeiro, o preparo da superfície feito com inusitado esmero, usando técnica a duras penas aprendida enquanto acadêmico em Munique, Alemanha, no que é inimitável; e, segundo, a ciência na distribuição dos elementos composicionais, no caso os componentes de uma paisagem de cidade colonial saída de sua imaginação, onde igrejas em posições estratégicas, vales cheios de nuvens, morros dispostos em sentido ascensional e balões sempre brancos tal se fossem almas que por ali adejam no supremo afã de atingir o céu, vão se dispondo com suas cores sempre para riba, em campos compartimentados e correspondentes, no rumo do infinito.
Quis o acaso que somente agora me fosse dado conhecer este trabalho. Foi o último pintado pelo artista? Seja. É o último que focalizarei no meu livro, encerrando-o com chave de ouro. Até lá e só por curiosidade, quero levantar uma questão interessante, atinente ao valor representativo, de um lado, e ao valor pecuniário, de outro, no que se refira a esta obra. Há poucos anos, o atual proprietário, que quase nada sabia sobre Guignard, adquiriu este trabalho na bacia das almas, como se diz, e o guardou em casa. Recentemente soube de minha existência. Viajou até mim e mostrou-me o quadro, querendo saber se “aquilo” era verdadeiro e se tinha algum valor. Fiquei boquiaberto ao ver a obra, estudei-a e concluí não só por sua autenticidade, mas também pelo aspecto inestimável no que tanja ao seu valor. Sendo feita num recorte de compensado com inusitado capricho, acabou ficando uma peça única, sem o menor paralelo na obra do mestre. Por ser assim, restou algo exótico e é por isso que seu valor parece-me bastante imponderável, fugindo à conceituação mercadológica dos próprios quadros de Guignard, que hoje atingem cifras impressionantes. Mas se a peça foge disto, eleva-se por sua excentricidade e raridade a plano bem diversificado e, certamente, irá chamar a atenção dos colecionadores, sendo um museu a sua acolhida no futuro.
Nota: Guignard, Cidade colonial imaginária, 1962, osm, 27 X 27 cm.
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