Autoria de Lu Dias Carvalho
Joga pedra na Geni/ Joga pedra na Geni/ Ela é feita pra apanhar/ Ela é boa de cuspir/ Ela dá pra qualquer um/ Maldita Geni. (Chico Buarque)
Geni nasceu rebento de mãe-menina e estrangeiro. Mal sentira as cruezas da vida, o pai fez-se ausente, indo seduzir em outras plagas. Cresceu carente, em meio ao desamor e ao desamparo. Adolescente, viu a mãe partir nos braços da tísica galopante, ficando só, num mundo sem deleites. E a frágil flor, que do fruto inepto brotara, teve que decidir: definhar ou resistir. E é por isso que “De tudo que é nego torto/ Do mangue e do cais do porto/ Ela já foi namorada”. Sua figura mirrada é a única arma de sobrevida, portanto, “O seu corpo é dos errantes/ Dos cegos, dos retirantes/ É de quem não tem mais nada”. E a flor machucada “Dá-se assim desde menina/ Na garagem, na cantina/ Atrás do tanque, no mato”. E consigo nem se importa, “É a rainha dos detentos/ Das loucas, dos lazarentos/ Dos moleques do internato/ E também vai amiúde/ Co’os velhinhos sem saúde/ E as viúvas sem porvir/ Ela é um poço de bondade”. Todos os becos e ruas sabem que “(E) é por isso que a cidade vive sempre a repetir/ Joga pedra na Geni/ Joga pedra na Geni/ Ela é feita pra apanhar/ Ela é boa de cuspir/ Ela dá pra qualquer um/ Maldita Geni.”!
Como a vida tem seus tempos e contratempos “Um dia surgiu, brilhante/ Entre as nuvens, flutuante/ Um enorme zepelim/ Pairou sobre os edifícios/ Abriu dois mil orifícios/ Com dois mil canhões assim”. Nem é preciso dizer que “A cidade apavorada/ Se quedou paralisada/ Pronta pra virar geleia”. Exasperadas, as pessoas clamavam aos céus, sem saber o que estava por vir, “Mas do zepelim gigante/ Desceu o seu comandante/ Dizendo: – Mudei de ideia”. E calmamente ele se explicou: “-Quando vi nesta cidade/ Tanto horror e iniquidade/ Resolvi tudo explodir/ Mas posso evitar o drama/ Se aquela formosa dama/ Esta noite me servir”. Quem seria tal dama a atrair tão desconhecido e exótico viajante? – perguntaram-se todos. “Essa dama era Geni.”. Perplexas, as gentes, em coro, responderam: “Mas não pode ser Geni/ Ela é feita pra apanhar/ Ela é boa de cuspir/ Ela dá pra qualquer um/ Maldita Geni.”.
Ainda que o perigo fosse iminente, as damas da cidade invejaram a escolha feita pelo dito visitante: “Mas, de fato, logo ela/ Tão coitada e tão singela/ Cativara o forasteiro/ O guerreiro tão vistoso/ Tão temido e poderoso/ Era dela prisioneiro”. Mas Geni rejeitou a preferência, pois “Acontece que a donzela/ – e isso era segredo dela –/ Também tinha seus caprichos/ E a deitar com homem tão nobre/ Tão cheirando a brilho e a cobre/ Preferia amar com os bichos”. Atemorizaram-se os citadinos com a negação, pois viam em Geni a única salvação. E foi assim que “Ao ouvir tal heresia/ A cidade em romaria/ Foi beijar a sua mão/ O prefeito de joelhos/ O bispo de olhos vermelhos/ E o banqueiro com um milhão”, em uníssono imploraram: “Vai com ele, vai, Geni/ Vai com ele, vai, Geni/ Você pode nos salvar/ Você vai nos redimir/ Você dá pra qualquer um/ Bendita Geni”! E “Foram tantos os pedidos/ Tão sinceros, tão sentidos/ Que ela dominou seu asco”.
Geni, o poço de bondade, “Nessa noite lancinante/ Entregou-se a tal amante/ Como quem dá-se ao carrasco/ Ele fez tanta sujeira/ Lambuzou-se a noite inteira/ Até ficar saciado”. No virar da noite para o dia, quando “(E) nem bem amanhecia/ Partiu numa nuvem fria/ Com seu zepelim prateado”. E Geni “Num suspiro aliviado/ Ela se virou de lado/ E tentou até sorrir” por ter cumprido um favor tão sofrido e desmedido, pra salvar aquela gente. “Mas logo raiou o dia/ E a cidade em cantoria/ Não deixou ela dormir”. Com banda e escárnio, a cidade pôs-se inteira a bramir: “Joga pedra na Geni/ Joga bosta na Geni/ Ela é feita pra apanhar/ Ela é boa de cuspir/ Ela dá pra qualquer um/ Maldita Geni”.
Mortificada com tamanha ingratidão, Geni, o poço de bondade, pôs-se a rezar para que o comandante do zepelim gigante voltasse pra buscá-la. E foi assim que, ao cair da noite, todo o céu da cidade iluminou-se, e as gentes em aflição viram que o navegante das estrelas voltara. A espaçonave pousou na praça, e o brilhante visitante tomou nos braços sua amante. A nave alçou os céus e Geni virou princesa encantada na boca dos viventes. Bendita Geni!
Obs.: Clique no link para ouvir GENI E O ZEPELIM
Nota: Nude, obra de Leonid Afremov
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Prezada Lu Dias
Vira e mexe, a Sô me pega interpretando essa obra-prima de nosso valioso pensador, que é, pra mim, uma das melhores dele). Segundo alguns missivistas foi baseada nas obras de Guy de Maupassant e Bertolt Brecht! Se foi, não importa, o importante é recitá-la para percebermos que todos possuem o mesmo valor.
Abração
Mário Mendonça
Mário
Chico Buarque inspirou-se na prostituta do conto “Bola de Sebo”, do escritor Guy de Maupassant. Ele lhe serviu apenas de inspiração. E não resta dúvida de que uma das mais belas obras do artista.
Abraços,
Lu
Oi, Lu
Perfeitamente profundo.
O ser humano sempre se apegando na pequenez da aparência. O que lhe parece majestoso é reverenciado, se contrário, é espezinhado.
Grande abraço
Leila
Leila
Amiga, nós vivemos num mundo de aparências. São poucas as pessoas que se preocupam com a essência. É o que está por fora, ou seja, o revestimento é o que conta, neste nosso mundo tão capitalista.
Abraços,
Lu