Autoria de Luiz A. Gómez/ Calcutá
Índia: Suicídio de jovem pesquisador dalit gera onda de protestos contra discriminação por castas. Sem terra, escola ou respeito, ‘os intocáveis’ são discriminados de todas as formas e, na maior parte das vezes, impedidos de buscar qualquer ascensão.
Nem a melhoria da situação econômica ou o diploma de curso universitário são capazes de acabar com o estigma de ter nascido “dalit” (intocável) na Índia. Isto é o que nos prova o suicídio do jovem Rohit Vemula, em razão do rigoroso sistema de castas indiano, num país cheio de deuses e endeusado por muitos, como o centro da espiritualidade no planeta. E este caso é apenas mais um dos muitos suicídios e assassinatos de estudantes dalits. Abaixo a transcrição do texto de Luiz A. Gómez, no site Opera Mundi:
Na centenária cidade de Hyderabad, antiga capital de reinos muçulmanos e hoje núcleo da indústria da tecnologia na Índia, na noite do dia 17 de janeiro do presente ano, Rohith Vemula decidiu escrever suas últimas palavras. “Amava a ciência, as estrelas, a natureza, e depois amava as pessoas sem saber que elas se divorciaram faz muito tempo da natureza”, escreveu o jovem doutorando da Universidade de Hyderabad. “O valor de um homem foi reduzido à sua identidade imediata, à sua mais próxima possibilidade [de ser]”. Rohith organizou suas coisas, despediu-se pedindo não perturbar seus amigos e inimigos e enforcou-se no pequeno quarto da residência estudantil, onde um amigo estava lhe dando alojamento.
Aos 26 anos, pobre e com seus direitos como estudante suspensos, inclusive a bolsa com a qual sustentava e apoiava sua mãe e seu irmão mais novo, Rohith não apenas queria escrever sobre Ciência. “Como Carl Sagan”, queria mudar o mundo, começando pelo seu entorno: membro do que desde muitos milênios atrás se conhece na Índia como as castas mais baixas, os intocáveis, o jovem era um conhecido ativista pelos direitos daqueles que, como ele, são discriminados diariamente em todos os âmbitos da vida pública do país. E sua morte começou a sacudir esse país imenso, dividido e cheio de deuses e de religiões.
Os dalits (ou “gente maltrapilha”, como seria sua tradução direta do hindu) são, na verdade, um conglomerado de grupos sociais, tradições e ofícios milenares que, segundo a religião hindu, são formados pelas pessoas que estão mais baixo na escala social, religiosa e econômica, sem direito a nada: nem terra, nem escola, nem respeito. Ainda assim, nessa rigidez hierárquica, o mais famoso entre eles, o Dr. B. D. Ambedkar, foi o principal redator da Constituição indiana e um severo crítico de Gandhi, com quem polemizou durante muitos anos. Para sua gente, é um herói quase mítico. Por isso, a grande maioria das organizações dalit na Índia têm Ambedkar em algum lugar, no nome ou no logotipo. Como a Associação de Estudantes Ambedkar (ou ASA), da Universidade de Hyderabad, que Rohith Vemula liderou com entusiasmo durante um tempo para ajudar estudantes como ele.
A vida de um estudante de uma casta baixa nessa universidade nunca foi fácil. Pulyla Raju, que se suicidou em 2013, ao não poder avançar em seus estudos (perseguido por companheiros e professores), ou Sunitha, que se suicidou grávida, em 2007, quando o jovem de uma casta privilegiada, que a seduzia, se negou a casar-se com ela por ser de outra casta, e zombou dela até depois da morte, sabiam bem disso. Assim como os 10 estudantes dalits que, nos anos 1980, foram suspensos por “contaminar” as aulas e nunca mais puderam voltar a estudar.
Da mesma forma que acontece em Délhi e Mumbai, os estudantes dalits são discriminados sistematicamente na Universidade de Hyderabad. Negam-lhes comer nos refeitórios das universidades (para não “contaminar” os pratos e os copos), batem em seus companheiros de outras castas, e os professores, com boas maneiras, humilham-nos nas aulas explicando que o conhecimento não está ao alcance deles, como revelou uma pesquisa do doutor Narayan Sukumar, acadêmico da Universidade Jawaharlal Nehru, em Délhi, que fez seu mestrado em Hyderabad.
É comum inscreverem contra eles insultos nas paredes e no Facebook, como fez há alguns meses Susheel Kumar, dirigente estudantil de uma casta alta e sobrinho de um conhecido político do partido Bharatiya Janata, o partido do primeiro-ministro Narendra Modi. Os insultos de Kumar não passaram despercebidos para Rohith Vemula e os membros da ASA, que o confrontaram com um protesto. O covarde aceitou eliminar seus posts e tudo pareceu voltar à aparente normalidade na Universidade de Hyderabad. Mas, no dia 4 de agosto, Susheel Kumar decidiu acusar os membros da ASA de agredi-lo e feri-lo. A denúncia teve uma resposta imediata das autoridades universitárias, em particular do vice-reitor Appa Rao. Os cinco estudantes dalits ativistas foram suspensos em agosto de 2015 e a sua “vítima” seguiu sua rotina, mas Rohith e o seu grupo protestaram até que a universidade formou uma comissão para investigar o caso.
Nada. A comissão universitária não encontrou prova alguma da suposta agressão contra Susheel Kumar. Mas isso não importou: alguns meses depois, os estudantes da ASA continuavam suspensos na Universidade de Hyderabad sem razão provada (bom, por fazer o que um estudante faz: protestar). Rohith deixou de receber sua bolsa (e de mandar dinheiro para casa). Os dalits tiveram de sair da residência estudantil e instalaram-se em uma barraca na entrada do recinto. Um retrato de Ambedkar, mantas para se cobrir e alguns livros e papéis era tudo o que possuíam. Oprimido pela rejeição, sem dinheiro nem casa, Rohith tirou a própria vida. Mas não agiu sozinho, como demonstrariam nos dias seguintes as cartas de um parlamentar, uma ministra do governo nacional e, sem dúvida, os protestos dos milhares e milhares de cidadãos em todos os cantos da Índia.
Nos dias posteriores ao suicídio de Rohith Vemula, muitos estudantes universitários começaram a protestar em Mumbai, Délhi, Calcutá, Madras e outras cidades. O destacado poeta Ashok Vajpeyi, estudante em sua juventude da Universidade de Hyderabad, devolveu seu título universitário. Centenas de acadêmicos de todo o mundo enviaram cartas de protesto e os meios de comunicação durante uma longa semana se ocuparam do jovem estudante que morreu se sentindo vazio, desejando “viajar para as estrelas… conhecer outros mundos”.
Começaram a aparecer os documentos que provam que essa discriminação não apenas é comum, mas sistemática. Como na carta do parlamentar Bandaru Dattatreya (de 17 de agosto), que chama os estudantes da ASA de “extremistas” e pede que as autoridades façam algo contra eles. Dattatreya é o ministro do Trabalho e Emprego da Índia. Ou a correspondência assinada por altos funcionários do ministério de Recursos Humanos e Desenvolvimento e o vice-reitor Rao, tendo como “assunto” as atividades “antinacionais” na Universidade de Hyderabad e o “ataque” ao jovem dirigente Susheel Kumar, e exigiram, em novembro de 2015, que a autoridade universitária resolvesse pessoalmente o problema. Ainda depois de ter sido provada a inocência dos cinco membros da ASA. A ministra de Recursos Humanos e Desenvolvimento, Smriti Irani, alguns dias depois do suicídio, disse que não se tratava de um conflito entre dalits e não dalits. “Houve uma tentativa maliciosa de projetar o problema como uma batalha de castas. A verdade é que não é”, disse Irani no dia 19 de janeiro, anunciado a criação de uma equipe de investigação para esclarecer o assunto.
O corpo de Rohith Vemula foi cremado de forma quase clandestina. Sua mãe recebeu as mensalidades da bolsa depois de uns dias. E ainda que ninguém tenha sido acusado de nada (e o primeiro-ministro Narendra Modi tenha falado “da dor de uma mãe que perdeu seu filho”), o vice-reitor Appa Rao deixou seu posto de maneira indefinida e os quatro estudantes da ASA foram readmitidos na Universidade de Hyderabad. Mas os protestos continuam, em Hyderabad e em Délhi, entre os estudantes e os milhões de dalits que habitam a Índia. Os quatro companheiros de Rohith Vemula pediram que Appa Rao entregue-se à polícia e que seja feita uma investigação criminal. Porque há dois fatos nesse drama que a Índia hoje discute: o sistema de castas continua vigente, discriminando cidadãos em todos os âmbitos, e Rohith, que estava “desesperado para começar uma vida”, está morto porque era um dalit.”
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Nota: Luis A. Gómez | Calcutá – 06/02/2016 – 08h00
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/43136/india+suicidio+de+jovem+pesquisador+dalit+gera+onda+de+protestos+contra+discriminacao+por+castas.shtml
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Lu
Esta história toca-me muito, não posso com as injustiças. Por não ter casta humilharam e sacrificaram esse jovem. Mil valores por trazeres esta história ao blog.
Aquele grande abraço.
Rui
É uma história muito triste, mesmo. Fizeram com que um jovem cheio de vida e ideal não quisesse mais viver, depois de ter sofrido tanta humilhação. Veja também a carta escrita por ele.
Abraços,
Lu
Revoltante.Triste demais.Repito o velho clichê”: A vida é muito curta para se perder tempo
odiando alguém”.
Abraços Matê
Matê
Que cultura mais embrutecida! Onde se encontra o país da espiritualidade? Realmente é muito doloroso ver, em pleno século XXI, comportamentos relativos à Idade Média.
Abraços,
Lu
Muito triste!
Trabalho para uma família indiana. Eles me tratam muito bem. Não sinto que tenham nojo de mim, por saber que que não nasci rica, rsrs. Quando soube que iria trabalhar para uma família indiana relutei um pouco, com um certo medo da cultura deles. Mas felizmente, sou muito respeitada. Depois de 6 meses trabalhando para eles. Mesmo assim, estou sempre “com um pé atrás” .Mas é muito perturbardor saber como essa cultura terrível continua encravada na alma da maioria dos indianos! Deus abençoe a mãe desse rapaz, que ficou sem ele, e, sem a ajuda dele ela sofrerá muito mais.
Tereza
A família indiana não será boba de maltratar você aqui, pois eles são estrangeiros em nosso país. E aqui há leis que a protegem contra a discriminação social e religiosa, coisa que não existe na Índia. Essa família é obrigada a obedecer as leis de nosso país. Ou você se encontra na Índia?
As pessoas de castas baixas, ou os “dalits” que nem possuem castas, comem o pão que o diabo amassou naquele país. Você leu a carta do rapaz? Já a publiquei no blog. E não se deixe intimidar pelos indianos. Faça seu serviço direitinho, cumprindo todas as suas obrigações, mas exija sempre respeito. Qualquer discriminação por parte deles, busque o seu sindicato.
Abraços,
Lu