O MAL FEITO AOS ANIMAIS RETORNA AOS HOMENS

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Autoria de Marguerite Yourcenar


Vivemos num grande ecossistema que é o planeta Terra, onde os reinos animais e vegetais convivem numa fantástica simbiose. O homem é o único ser no planeta que é capaz de alterar toda a diversidade, destruindo seu habitat como se não fizesse parte desta teia da vida. (Hernando Martins)

Uma teoria diferente viria pôr-se a serviço daqueles para quem o animal não merece qualquer auxílio e encontra-se destituído da dignidade que, em princípio, pelo menos, e no papel, concedemos a todos os homens. Na França e nos países influenciados pela cultura francesa, o animal-má­quina de Descartes tornou-se artigo de fé tanto mais fácil de ser aceito quanto favorecia a exploração e a indiferença. Também aqui podemos perguntar se a asserção de Descartes não terá sido aceita em seu nível mais baixo.

O animal-máquina, de acordo, mas em pé de igualdade com o próprio homem que não passa também de máquina, destinada a produzir e a ordenar ações, pulsões e reações que constituem as sensações de calor e frio, fome e satisfação digestiva, os impulsos sexuais, bem como a dor, o cansaço, o terror, que os animais experimentam da mesma forma como nós. O animal é máquina; homem também, e foi sem dúvida o temor de blasfemar contra a alma imortal que impediu Descartes de ir abertamente longe nessa hipótese, quando teria estabelecido as bases de uma fisiologia e de uma zoologia autênticas. Leonardo da Vinci, se Des­cartes tivesse podido conhecer seus Cadernos, ter-lhe-ia segredado que, em última análise, o próprio Deus é o “primeiro motor”.

Evoquei um tanto longamente o drama do animal e suas causas primeiras. No estado atual da questão, numa época em que nossos abusos se agravam nesse ponto como em tantos outros, podemo-nos perguntar se uma Declaração dos Direitos do Animal iria ser útil. Acolho-a de bom grado, mas já ouço algu­mas boas almas que murmuram: “Há quase duzentos anos foi proclamada a Declaração dos Direitos do Homem, e o que resul­tou daí?

Nenhuma época tem sido mais concentracionária, mais levada às destruições maciças de vidas humanas, mais pronta a degradar, até nas próprias vítimas, a noção de humanidade. Seria o caso de se promulgar em favor do animal um outro documento desse tipo, que será – já que o homem em si mes­mo não terá mudado – tão inútil quanto a Declaração dos Direitos do Homem?” Creio que sim. Creio que sempre con­vém promulgar ou reafirmar as Leis verdadeiras que não dei­xarão por isso de ser menos infringidas, mas que provocarão por vezes no transgressor o sentimento de haver agido mal. “Não matarás.” Toda a história, de que tanto nos orgulhamos, é uma perpétua infração dessa lei.

“Não farás os animais sofrerem, ou tudo farás para que sofram o menos possível. Eles têm seus direitos e sua digni­dade como tu mesmo”, é sem dúvida uma admoestação bas­tante modesta; no estado atual dos espíritos, ela é, ai de nós, quase subversiva. Sejamos subversivos. Revoltemo-nos contra a ignorância, a indiferença, a crueldade que aliás se voltam tão frequentemente contra o homem depois de terem-nas exercido grandemente sobre os animais. Lembremo-nos, pois é necessário estarmos sempre nos chamando a atenção, que haveria menos crianças mártires se tivesse havido menos animais torturados; menos vagões lacrados levando para a morte as vítimas de uma ditadura qualquer, se não tivéssemos nos acostumado com os furgões em que os animais agonizam sem alimentação e sem água a caminho dos matadouros; menos caça humana teria sido abatida a tiros se o gosto e o hábito de matar não fosse o apanágio dos caçadores. E, na humilde medida do possível, mudemos (quer dizer, melhoremos se possível) a vida.

Nota: texto extraído do livro “O Tempo, Esse Grande Escultor”/ Edit. Nova Fronteira

Imagem copiada de https://www.festaeoferta.com.br

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