Autoria de Lu Dias Carvalho
Recebi encomenda de um quadro sobre o tema de Judite e Holofernes. Os meus predecessores representaram-no após, quando Judite apresenta a cabeça cortada num prato. Eu queria bem mostrar o ato em si. Uma prostituta minha conhecida posou para a Judite e a criada velha do cardeal pela seguinte. Um ferreiro fez Holophernes. Para a expressão da cara fui ver muitas execuções públicas e observei muito bem as cabeças cortadas tombadas e guardei as expressões de terror. (Caravaggio)
Esta tela retrata a cena em que Judite, revoltada com as ameaças do general assírio — Holofernes — a seu povo, tentando obrigá-lo a adorar o rei assírio Nabucodonosor em vez de Javé, aproveita-se do estado de embriaguez do tirano, depois de seduzi-lo. Aproxima-se de seu leito, segura-o pelos cabelos e decepa-lhe a cabeça, entregando-a para a serva que a joga num saco de provisões. Ela se converte depois em modelo para os judeus e em especial para os fanáticos religiosos.
Judite era uma viúva próspera e de boa conduta. Era bela nas formas e de presença encantadora. Para seduzir Holofernes, ela retirou os trajes de luto e botou uma vestimenta de festa e se introduziu no seu acampamento e bebeu com ele. O momento para assassinar o tirano era único, já que os judeus estavam prestes a se render diante das forças do inimigo que, após o crime, saíram em debandada. Depois ela regressou à Betulia com a cabeça do general e os judeus venceram o inimigo. Judite voltou da tenda do herege tão pura quanto ali chegara, sendo honrada por seu povo. Foi tida como uma heroína que deveria ser imitada. Esta passagem é narrada no Antigo Testamento, no Livro de Judite.
Caravaggio, ao pintar a cena não seguiu fielmente a versão bíblica. Dela diverge, quando traz a serva para perto de Judite no momento exato do crime. Ao colocar as duas mulheres juntas, contrasta a força da juventude com as cicatrizes da velhice. Enquanto a pele da heroína é sedosa e brilhante, a da serva é enrugada e opaca.
Judite demonstra determinação pelo modo como segura a espada e a cabeça de Holofernes. Também demonstra nojo ao afastar o corpo para trás, como se não quisesse se sujar com os respingos do sangue do tirano. Seu vestido dominical é simples, igual aos usados pelas mulheres do povo. Ela representa ao mesmo tempo sensualidade, brutalidade e coragem.
Do nariz da jovem parte uma ruga que vai morrer no meio da testa, passando entre as sobrancelhas contraídas, demonstrando concentração e firmeza. Seus olhos estão centrados no inimigo, ciente de que não pode cometer nenhum engano. O golpe é dado sem força na parte lateral do pescoço, ficando a autora o mais distante possível.
Embora a maioria dos pintores tenham representado Judite com a cabeça do tirano nas mãos, Caravaggio optou por retratar o momento exato da decapitação, já tendo a espada rompido 2/3 do pescoço, embora a vítima ainda pareça estar viva, com seus olhos aterrorizados e a boca aberta como a soltar um grito, deixando a obra cheia de realismo e crueza. É o mesmo grito visto em Cabeça de Medusa.
À época (Contrarreforma), existia um manual que aconselhava os artistas a observar o condenado, ao ser enforcado, para estudar as convulsões e o movimento dos olhos. Em muitos de seus quadros Caravaggio apresentou cenas de decapitação (O Sacrifício de Isac, A Decapitação de S. João Batista, Salomé com a Cabeça de S. João Batista, Davi com a Cabeça de Golias…), mas para muitos esta é uma das obras mais medonhas do pintor.
Na composição os personagens parecem emergir das sombras, ganhando destaque com a luz que focaliza cada gesto. O drama desenvolve-se num primeiro plano fechado. Como em “A Morte da Virgem” uma cortina vermelha projeta-se entre Judite e Holofernes, dando ainda mais teatralidade à cena da execução.
Fachos de luz iluminam os braços e a parte direita do rosto de Holofernes que agarra com desespero o lençol já manchado de sangue e destacam com pungência a bela Judite. A serva — atenta ao gestual de Judite — não expressa horror ou comoção, ao contrário, mostra aprovação, como se o ato fosse de vital importância. Nas suas mãos está o saco erguido, com a boca aberta, onde será colocada a cabeça do tirano.
A modelo escolhida por Caravaggio para representar Judite é a cortesã Fillide Melandroni, a mesma que posou para Santa Catarina de Alexandria e outras composições. Um ferreiro foi escolhido como modelo para Holofernes, embora algumas fontes digam que tenha sido o próprio Caravaggio.
Judite e Holofernes ou A Decapitação de Holofernes é uma das mais famosas obras de Caravaggio. A decapitação de Holofernes por Judith tem sido objeto de muitas pinturas e quadros desde a Idade Média. Artistas das mais diferentes formas de arte vêm reproduzindo a história de Judite e Holofernes ao longo dos tempos, representando os seus diferentes momentos. Podem ser citados: Cristofano Allori, Donatello, Sandro Botticelli, Andrea Mantegna, Giorgione, Lucas Cranach, o Velho, Palma Vecchio, Michelangelo, Caravaggio, Tiziano, Antonio de Pereda, Goya, Horace Vernet, Gustav Klimt, Artemisia Gentileschi, Jan Sanders van Hemessen, Hermann-Paul, Gustav Klimt, entre outros. A cena do banquete foi igualmente retratado por Rembrandt no quadro Artemisa. A história também inspirou um poema medieval em inglês, a ópera Betulia Liberata de Mozart e uma opereta de Jacob Pavlovich Adler, dentre muitas outras representações.
Ficha técnica:
Ano: c. 1597/1600
Material: óleo sobre tela
Dimensões: 145 x 195 cm
Localização: Galleria Nazionale d`Arte Antica, Roma, Itália
Fontes de pesquisa:
Los secretos de las obras de arte/ Taschen
Grandes mestres da pintura/ Coleção Folha
Grandes mestres/ Abril Coleções
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Lu
Caravaggio supera sempre no realismo de sua arte. Além das expressões que parecem sair da tela, é incrível como as cores se completam, intensificando a emoção. É incrível perceber que apenas os tons de três cores retratam a comovente arte. O vermelho do pano que emerge do fundo escuro parece criar um efeito subliminar do sangue que se esvai.
Antônio
A arte realista de Caravaggio estava além de seu tempo. Não é à toa que sua maneira de pintar atraiu uma grande legião de adeptos – os chamados caravaggistas. Muitos foram os artistas que retrataram Judite e Holofernes, mas nenhum conseguiu alcançar a expressividade do grande mestre do Barroco.
Abraços,
Lu
Se fosse possível, eu gostaria de saber a bibliografia do excerto da fala de Caravaggio – Recebi encomenda de um quadro sobre o tema de Judite e Holofernes. Os meus predecessores representaram-no após, quando Judite apresenta a cabeça cortada num prato. Eu queria bem mostrar o ato em si. Uma prostituta minha conhecida posou para a Judite e a criada velha do cardeal pela seguinte. Um ferreiro fez Holophernes. Para a expressão da cara fui ver muitas execuções públicas e observei muito bem as cabeças cortadas tombadas e guardei as expressões de terror. (Caravaggio)
Guilherme
Este excerto da fala de Caravaggio foi-me passado por um leitor. À época, fiz pesquisas e o encontrei em muitos sites, inclusive de língua estrangeira. Veja esses:
http://carter-carter-carter.blogspot.com.br/2010/02/historia-apocrifa-de-judite-e_05.html
https://alinehannun.blogspot.com.br/2016/06/judite-e-holofernes-de-caravaggio.html
Contudo, ao fazer uma busca no Google para ajudá-lo (fiz em italiano e em inglês) não encontrei tal referência. Ao que me parece, deve fazer parte de alguma biografia de Caravaggio. Caso venha a encontrar, envie-me a fonte. Também poderá entrar em contato com as fontes que citei acima. Lamento muito não poder ajudá-lo, meu amigo.
Agradeço a sua visita a este espaço e o seu comentário. Fale dele aos seus colegas. Volte mais vezes.
Abraços,
Lu
Gostaria de saber se existe um filme completo sobre Judite? Alguém sabe?
E qual é o link?
Severino
Eu realmente não conheço nenhum filme completo sobre Judite.
Penso que você deva encontrar em lojas que vendam produtos religiosos.
As Lojas Americanas também costumam vender DVDs de tema religioso.
Poderá também fazer sua busca através do Google, colocando: filme bíblico sobre JUDITH.
Muito obrigada pela sua visita.
Grande abraço,
Lu
A Decapitação de Holofernes realmente impressiona. Assim é a vida. Muitas vezes, o poder cega tanto que quem o detém sequer imagina que alguém, mesmo muito frágil, possa derrotá-lo, em um momento de fraqueza.
É isto. Todos, mesmos os poderosos, têm momentos de fraqueza, onde esquecem todos os cuidados e precauções, escondem a guarda e ficam indefesos. Neste instante, a derrota vem aniquilá-lo para sempre.
O quadro além de muito assustador, mostra esse aspecto.
Gostei demais de sua exposição, como sempre exuberante. Sempre fico admirado com sua maneira didática que nos permite entender com bastante profundidade a mensagem de um grande artista.
Ed
Fico muito feliz sempre que o encontro.
Seus comentários são muito interessantes, pois agregam mais conteúdo ao texto.
Dão uma outra dimensão daquilo que o artista poderia ter querido repassar.
A sede de poder é o grande mal do mundo.
É por ele que se comete os crimes mais transgressores, porque ele se sustenta no excesso do capital.
E quem o tem, nunca acha que detém o bastante.
Perde-se os limites.
Ainda esta semana, revendo a trajetória da Dama de Ferro inglesa, e o modo como se mostrou tão debilitada em sua fase final de vida, percebi o quão bobo é o poder, encoberto pelo espírito de grandeza.
Grande abraço,
Lu