A noite estava fria. O vento zunia nas calçadas levantando papéis e o que ali se encontrasse. A chuva não tardaria a desabar com vontade daquele céu de chumbo. As pessoas corriam apressadas, trombando umas nas outras. Algumas sombrinhas e guarda-chuvas já se encontravam abertos, talvez na tentativa de proteger seus portadores do vento gélido. Os motoristas buzinavam apavorados com a iminência do temporal. Ninguém queria ser pego longe da quentura do lar.
Mulher e marido saíram apressados da sala do dentista. Um táxi não seria a melhor solução, diante do pandemônio que se formava, com as ruas abarrotadas de pessoas e automóveis tentando forçar a passagem a qualquer preço. Caminhar seria bem mais viável para quem morasse próximo ao centro. E assim, o casal alargou os passos, agarrados um no outro, tentando vencer o tempo e a distância de casa.
Ele estava na calçada. Um idoso franzino trajando uma camisa fina e um short velho. Nos pés, apenas um tênis velho, desacompanhado de um par de meias que pudesse lhe aquecer os pés. As pessoas passavam esbaforidas por ele. Talvez nem o vissem. Mas ele estava ali, tremendo, tentando ultrapassar as portas de aço de uma loja já fechada, como se assim pudesse mitigar a frieza do tempo e das pessoas.
A mulher viu-o. Nada comentou com o marido. Seu coração e alma doíam de compaixão. Ela se emudeceu por fora e por dentro encheu-se de porquês que jamais teriam resposta alguma. O casal seguiu em frente, ziguezagueando entre as pessoas, aguardando sinais, atravessando ruas, buscando calçadas, aquecendo seus corpos com os braços, querendo se salvar do temporal que já quase beijava o chão.
Eu vou voltar para levar-lhe um cobertor e comida – martelava a mulher em sua mente compassiva e indignada. Ela chegou à casa junto com o temporal. Juntou-se à família no jantar, depois veio o banho quente, a colônia costumeira, a cama acolhedora e os braços carinhosos do marido. Pela janela do quarto entravam apenas a luz dos relâmpagos que avivam a promessa que fizera a si mesma: levar cobertor e comida para o homem idoso na calçada de uma noite gélida. O marido dormiu, mas a mulher não, com a imagem daquele ser repassando diante de seus olhos, num vai e vem sem fim. E se ele morresse naquela noite? E se ele amanhecesse morto na calçada gélida?
A mente sábia foi acalmando o coração da mulher de mente conturbada pela promessa não cumprida. Era preciso dormir, pois, a madrugada já rompia para dar lugar a um novo dia. Ela dormiu. Acordou pensando no homem na calçada álgida, de uma noite frígida, com um vento cortante em meio a tantos corações gélidos, inclusive o dela.
A mulher teve medo de ler o jornal, no dia seguinte, e de ver os noticiários televisivos. Amedrontava-lhe a ideia de que a morte do homem pudesse se estampar diante de seus olhos. Ela tinha medo de que o tivesse matado pelo seu desamor e pela palavra dada ao coração, descumprida.
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Lu,
sinto-me a cada dia mais incapaz perante tanta miséria no mundo. Ultimamente existem muitas campanhas solidárias. Até onde há o oportunismo? Em quem acreditar?
Enquanto existe dúvida… os pequenos atos, talvez, sejam uma solução para acalmar o coração daqueles mais sensíveis as desigualdades.
Bjos.
Pat
Sempre haverá desigualdade no mundo, pois, o homem jamais deixará de ser ambicioso e egoísta. Talvez seja ela uma maneira de botar à prova a nossa sensibilidade.
Se cada um fizer um pouquinho, o sofrimento diminuirá.
Beijos,
Lu
Lu,
Gostei da publicação e estou pensando de outra forma: não da culpa e sim da ação. Às vezes nós queremos realizar uma boa ação e somos impendidos de realizá-la no momento da necessidade. Temos entusiasmo, entretanto não agimos como um entusiasta. Por quê?
Abraço,
Devas
Devas
Não adianta pensarmos numa ação e não a concretizarmos.
Muitas vezes arranjamos mil desculpas para fugirmos de nossos compromissos.
E a mulher do caso usou a piora do tempo.
Penso que o defeito está em nós mesmos: somos seres imperfeitos.
Abraços,
Lu
Lu Dias
Porque sempre nos punimos pelos erros dos outros?
Estamos presos num abismo débil mental que não temos e não devemos.
Mas estamos, por culpa nossa culpa.
Abração
Mário Mendonça
Mário
Você tem razão, de certa forma.
Penso que seja uma coisa chamada consciência.
E aí não adianta achar que não se é responsável por certa ação.
Abraços,
Lu