Arquivo da categoria: Flagrantes da Vida Real

Casos do cotidiano

OS VELHINHOS ENGANADORES

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Vou contar ao leitor uma cena acontecida comigo, mas lhe peço que se apiede de mim e ria só um pouquinho. Tampouco a repasse para frente, de modo que ganhe a boca do mundo, pois tenho um nome a zelar, e também sou filha de Deus. Vamos ao caso sem mais delongas.

O calor estava brabo na capital das Gerais e meu doce “husband”, minha filha e eu resolvemos nos refrescar com um chopinho gelado. Presumo que tomei três canecos, ou foram quatro, ou seis…? Não tenho a certeza de quantos foram, mas isso não importa. Voltamos andando calmamente para casa, num animado papo.

Não sei se foi porque a lua estivesse escura, embora fosse lua cheia, ou porque ela estivesse se escondido atrás de um arranha-céu, ou tivessem diminuído a luz dos postes… o que sei é que a minha visão ficou meio turva, de modo que, ao chegarmos à rua Goiás, esquina com Bahia, na chamada Praça do Encontro, vi dois pobres velhinhos de pé, coitadinhos, àquela hora da noite, pedindo esmola. Quanta judiação! Meus olhos ficaram marejados. Então pedi ao meu marido que me desse uns trocados para dar aos dois. Ele não entendeu bem o que eu queria fazer, mas preferiu não me interrogar, em razão da altura do meu salto etílico, e me repassou cinco reais em moedas.

Deixei os companheiros para trás e me dirigi a passos largos e titubeantes aos dois pobrezinhos, parados naquele local, quando já principiava a madrugada. Vi que apenas um deles, o mais gordinho, trazia uma caixinha de sapato na mão. Como eram amigos, iriam repartir tudo que ganhassem, tinha a certeza disso. Olhei a caixinha por todos os lados, mas não vi onde colocar a oferenda. Olhei de novo e nada de abertura. Já estava ficando nervosa, sem falar que eles permaneciam mudos e paralisados como se fossem estátuas.

Ai, meu Deus, que vergonha, tratavam de duas estátuas de verdade, em tamanho real: Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava. E a caixinha representava um livro na mão do escritor e médico Pedro Nava. Recuso-me a comentar que a dupla que me acompanhava, quase rolou no chão de tanto rir: marido e filha. Imagine você, meu querido leitor, se eles fossem meus inimigos! Foi aí que descobri que a cidade estava toda cheia de estátuas de pessoas ilustres, filhos das Minas Gerais, mas já era tarde demais para reverter o vexame.

Resultado: o fato ganhou estrada. E sempre que ali passo com alguém que tomou conhecimento de minha triste história, ouço a ironia:

– E aí, dona Lu, não vai dar nada para os velhinhos hoje?

Agora, a história se inverteu: todo velhinho que vejo quietinho, penso que seja uma estátua. Fiquei abilolada geral.

Nota:
A peça arquitetônica, obra do artista plástico Léo Santana, inaugurada em 2003, pesa 200 quilos e possui 1,70m de altura. Os mineiros Nava e Drummond são responsáveis pela segunda fase do Modernismo no Brasil.

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O VEXAME DE CAIR NA RUA

Autoria de Lu Dias Carvalho

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A moça empertigada de olhar altivo desceu de seu carro, passou indiferente por mim, e seguiu à minha frente com seu salto de 15 centímetros, visivelmente tensa, com medo de cair. Nas mãos, trazia um belo embrulho que, por seu formato, parecia alguma guloseima, enfiada no braço carregava uma colorida sacola. Pelos trajes, dava para ver que ia a um aniversário.

Cá com os meus botões, eu me perguntava como alguém podia se equilibrar em saltos tão finos e altos, quando um barulho esquisito tirou a minha concentração. Lá estava ela, a moça empertigada e de olhar altivo, estatelada no chão. O embrulho espatifou-se a uns dois metros de distância, a sacola rasgou-se, um dos sapatos ficou sem salto e o pé estava todo escalavrado. Um dos saltos agulha da infeliz ficou preso entre dois paralelepípedos.

Confesso que mordi a língua para não rir, enquanto as pessoas que se encontravam num ponto de ônibus próximo caíam em sonoras gargalhadas. Aproximei-me da deselegante moça de olhar cabisbaixo e a ajudei se levantar. Um rapaz que vinha em nossa direção abaixou-se para tentar recolher a torta que se espatifara no chão.

Levei-a até o edifício, onde acontecia o encontro festivo e me pus a caminho. Continuei indagando dos meus botões, por que é tão difícil conter o riso em certas situações?  Alguns atestam que o homem é o único animal que ri. Eu cá tenho as minhas dúvidas, pois acho que as hienas gargalham, meus gatos sorriem, assim como macacos, cavalos, cães e etc.

Segundo os estudiosos no assunto, quando rimos, todos os órgãos de nosso corpo levam vantagem: diminuição dos batimentos cardíacos, estímulo do apetite, perda de calorias, juventude, endorfinas, analgésicos naturais… O neurologista Henri Rubenstein diz que um minuto de boas gargalhadas pode nos proporcionar até 45 minutos de relaxamento. E o professor William Fry, por sua vez, chegou à conclusão de que 100 risadas possuem o mesmo efeito de uma sessão de 10 minutos de ginástica abdominal, com aparelhos.

Mas o que sei é que, mesmo tendo conhecimento de toda esta terapia proporcionada pelo riso, nada consola quem passa pelo vexame de cair na rua. Se duvidarem, perguntem à moça não mais elegante e de olhar altivo.

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O BREGANEJO E AS PERIGUETES

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Dias atrás, certa loja em Belo Horizonte comemorava os seus 50 anos, presenteando seus clientes com a apresentação de cantores. E, para meu desconforto, cheguei ao local no exato momento em que certo Dom Juan iria se apresentar, num palco montado dentro da loja. Poderia ter passado por fora, mas era o último dia para a troca de uma mercadoria, que não caíra bem no manequim do meu robusto presenteado.

O alvoroço era geral e os caixas ficaram fechados por algum tempo. De repente, começou uma histeria generalizada. Os gritos mais pareciam uivos de lobas no cio. Não podia acreditar que, em pleno século XXI, os mitos ainda estivessem em plena ascensão. Os seguranças corriam atordoados, tentando impedir que as sirigaitas mais impetuosas pulassem na jugular do artista intimidado com a proximidade da platéia.

Eis que de repente, não mais que de repente, uma das deslumbradas desmaiou, sem que o público presente lhe desse a menor atenção, entusiasmado que estava com a presença do cantor “breganejo”. Atento, um segurança da loja reapareceu com um copo d’água. Não sei, se foi por maldade ou certeza absoluta do diagnóstico, alguém gritou:

– É chilique! Jogue a água na cabeça dela!

E assim foi feito. A moçoila abriu os olhos, assustada, como se estivesse despertando em Saturno.  Sacodiu os cabelos molhados, passou a mão no rosto, olhou para o sujeito de sua paixão platônica e começou a chorar alto. O “breganejo” convidou-a, não sei se por média ou deferência, para ir até ao palco. Ali chegando, a espevitada periguete tombou sobre o coitado e o enlaçou como se ela fora um polvo, em busca dos lábios da assustada vítima.

O microfone do cantor caiu pelo chão, enquanto três seguranças tentavam segurar a predadora. As macacas de auditório, presentes, faziam um grande alarido, desejando estar no lugar da doidivanas. Esperei que toda aquela turma fosse desmaiar, para gozar da mesma primazia. Não posso negar que me divertia muito com os acontecimentos.

O coitado do cantor, talvez por medo e desespero, teve que sair correndo para o banheiro, com a mão na braguilha, enquanto o bando corria atrás, desvairadamente. Foi então que uma voz masculina, talvez por ciúme ou deboche, gritou:

– Pega ladrão!

Confesso que tive pena do pobre cantor enjaulado dentro do banheiro, enquanto lá fora os organizadores pediam calma às desvairadas periguetes. Por maior que fosse o cachê, ninguém merecia tamanho vexame. E, para arrematar, a mesma voz masculina ouvida antes gritou:

– Quem vai sacudir o bilau do moço?

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EM TEIAS DE ARANHA

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Existem pessoas que só se sentem vivas se estiverem perto de muitas outras, ao contrário de mim, a quem sempre alegra a solidão. Não que eu tenha ojeriza às pessoas. O fato é que me sinto em segurança dentro dos meus próprios limites. Tampouco me considero uma companhia ruim, pois gosto mais de ouvir do que falar. Sou sintética ao extremo e, mal começo um assunto, já o dou por acabado. Mas, em vez de aborrecer as pessoas, elas buscam a minha presença, pois estão sempre dispostas a falar e um bom ouvinte trata-se de um achado nos dias de hoje.

A ligeira pincelada que dei sobre a minha conduta, tem o intuito, apenas, de levar o leitor a compreender melhor o que vem a seguir, pois uma pessoa solitária nem sempre é bem compreendida, sendo vista como um caramujo, totalmente fora do contexto dos dias de hoje. Eu sou uma penitente solitária entre meus livros, cds e filmes, nas minhas horas de folga. Mesmo assim, vez ou outra, eu me deparo com situações que me colocam no olho de um furacão enlouquecido, arrancando-me brutalmente do meu casulo e me obrigando tomar a decisão que mais odeio: meter-me com a vida dos outros.

Dias atrás, estava eu num consultório médico, quando a secretária avisou que haveria um atraso de 40 minutos, pois, o doutor que iria nos atender, estava realizando uma cirurgia emergencial. Eu não sou de ficar estressada com os contratempos a que todos estão sujeitos. Abri a minha pasta e dela retirei um livro, amigo costumeiro nas esperas. Li a primeira página cerca de três vezes, sem tirar nenhum proveito. Não que o livro fosse ruim, mas simplesmente não conseguia fixar minha atenção no conteúdo. O consultório tinha cerca de uma dúzia de clientes e quis a sorte que eu estivesse assentado com duas tagarelas às minhas costas. Para o meu desatino, não havia outro lugar bem distante da dupla falante.

As duas irreverentes trombetas, que se tratavam por Clotilde e Vera, e que depois descobri serem primas, descerravam a vida dos membros da família sem dó nem piedade. Ninguém prestava. Eram todos uns vilões, mal agradecidos, embusteiros e exploradores. Não satisfeitas em esculachar os seus, debandaram-se para a ala dos amigos. E mais cacetadas e mais palavrórios. Segredos foram revelados, com o pedido de que ficassem somente entre elas. Eu fazia de tudo, para não ouvir aquele falatório, mas os ouvidos acabavam me traindo. Fechei o livro e procurei me distrair com os quadros da sala, depois tentei adivinhar a vida de cada uma das pessoas. Mas nada conseguia fazer, a não ser ouvir Clotilde e Vera. O meu desconforto acentuava-se. Sentia-me enervada, mas algo me prendia àquela maldita cadeira.

Clotilde começou a falar sobre sua vida pessoal. Vera entremeava a conversa com  “entãos” e “porquês”, dando corda à parolagem. Animada, Clotilde foi soltando a língua até relatar que “estava ficando” com um funcionário da empresa de seu marido. Dizia que a relação entre eles jamais seria descoberta, pois ambos eram muito bem casados e o caso era mantido no mais rigoroso sigilo. Embora não me interessasse a vida dupla de Clotilde, comecei a me sentir estranho, como se temesse algo. Conversa vai, conversa vem, a infiel acabou citando, não só o nome do marido, como o de sua empresa e o do amante.

Foi aí, meu caro leitor, que senti que estava ligada à infiel por laços quase que sanguíneos. O amante não era outro senão o meu cunhado, pai de três filhos e palestrante em encontros de casais. O bom marido, tão decantado e desejado por tantas mulheres, traía sua mulher, minha irmã, há cerca de seis meses, na mais absoluta sem-vergonhice. E pior, sou a madrinha de seu filho mais velho, sendo muito bem considerada pelo infiel. Senti-me em teias de aranha.

Levantei-me abruptamente da cadeira e me dirigi à saída do consultório, praticamente sem ar. Vera e Clotilde devem ter imaginado que eu me irritara com a demora do médico. Antes de tomar o elevador, ainda as vi com seus rizinhos safados. Agora, dentro do meu lar, onde me sinto totalmente segura contra a verbosidade daquelas duas víboras, encontro-me num dilema: contar ou não contar tudo à minha irmã. Se conto, infrinjo as minhas próprias regras, que é viver solitária como um alquimista em busca da pedra filosofal, sem me imiscuir na vida de ninguém. Se me omito, serei como um traidora, um egoica, uma irresponsável que vê seu próprio sangue em perigo e nada faz para contê-lo.

Conto ou não conto? O que faria você, meu caro leitor?

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ALFA E OS PÉS DE GALINHA

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Foi um ano de muita seca nas nossas Minas Gerais. Seca das brabas! Nessa época, os voluntários da CEDEC eram dirigidos pelo Major Cláudio Teixeira (hoje coronel do Corpo de Bombeiros). Angariávamos doações em Belo Horizonte e as distribuíamos nos vales do Jequitinhonha e do Mucuri. Éramos uma trupe de mais ou menos cinquenta artistas mambembes em ação pelas estradas das Gerais. Com os caminhões cheios, despencávamo-nos pelo interior afora, divididos em grupos, em ônibus ou vans do Estado.

De uma feita, fomos para uma região próxima a Montes Claros, onde a situação estava calamitosa, incluindo aí a famosa cidade de Pai Pedro e sua vila de nome Silício. Os caminhões paravam no acostamento da estrada e nós, com nossas jaquetas alaranjadas, e escritas “Defesa Civil” adentrávamo-nos mato. A terra era uma secura só, havendo apenas uns cactos verdes do qual se nutria o gado, cuja anatomia poderia ser retratada pelos olhos do observador, como se fosse um raio-X. As condições das pessoas de baixa (ou nenhuma) renda eram um soco direto na cara.

Nós fôramos preparados com toda uma psicologia de aproximação para não deixar o carente despido de sua própria dignidade. Primeiro falávamos do tempo seco, da perda das lavouras, do algodão esturricado, dos meses de trabalho jogado fora, da esperança de um novo tempo. A seguir, contávamos o número de habitantes dos casebres, para então distribuir alimentos, colchões e água mineral, entre outras coisas. Tirávamos fotos todos juntos, tentando levar, também, o nosso carinho.

Apesar da miserabilidade, era difícil as pessoas não nos oferecerem um cafezinho fraco (urina de gato, como dizia um dos colegas de campanha) servido em copinhos esmaltados, mas já descascados pelo tempo e que só Jesus sabia em que poças foram lavados, mas que fazia um bem danado ao coração de quem dava e de quem recebia. Funcionava como o líquido da esperança em dias melhores. Não sei se é assim em outros Estados, mas nas Minas Gerais é de maus modos não aceitar um cafezinho “na casa de pobre”. E eu, que tenho gastrite nervosa e que devo passar longe de café, via-me na obrigação de beber tal preciosidade, para não ofender as honras da casa. Para cada canequinha engolida, chupava uma pastilha de magnésia bisurada.

Dessas viagens, dois fatos me marcaram, entre tantos outros. O primeiro, muito triste, foi ver um rapaz de pouco mais de 20 anos chorando convulsivamente, ao receber as doações. Ele nos disse que chorava de tristeza e alegria, ao mesmo tempo. Tristeza por ser forte e não ter trabalho para fazer, e alegria por sermos como anjos que estavam salvando aquela gente de morrer de sede e fome.

O segundo, foi protagonizado pela minha terna e compassiva amiga Alfa, apaixonada por pé de galinha cozido. Chegamos a uma casa, onde o prato do dia era um caldeirão de pés de galinha. É fato que a nossa barriga estava varando as costas, pois já era muito tarde e tínhamos feito um trabalho intenso naquele dia. Alfa, a alegria da turma, enlouqueceu-se de alegria ao sentir o cheiro vindo do caldeirão. Não resistiu e pediu à dona da casa para comer um pezinho só, acabando por comer três, além de ter chamado a turma para experimentar tão maravilhosa iguaria. Todos recusaram, alguns alegando que “galinha cisca para trás” e a pessoa fica mais pobre ainda, enquanto Alfinha se deliciava com o menu. A dona da casa, cheia de alegria, ao ver que podia oferecer algo aos visitantes, queria colocar meia dúzia de pés de galinha numa sacola para que a voluntária comesse na estrada. Se não fossem os nossos olhares enviesados, aposto que a nossa amiga não teria recusado a oferta. Para compensar o desfalque feito, a danada ainda obrigou o nosso chefe, Cláudio Teixeira, a dobrar a quantidade de alimentos a serem doados.

Devo fechar o meu causo dizendo que Alfa Carlesso é uma das pessoas mais extraordinárias que conheci em toda a minha vida. E que sempre terá um lugar em meu coração pela sua bondade e solidariedade infinitas, assim como todos os meus colegas voluntários.

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A VENDEDORA E A CALCINHA

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Dias atrás, entrei numa loja para comprar um jaleco branco. Como era véspera de um feriado longo, a cidade estava incrivelmente quieta, de modo que a vendedora e eu entabulamos um animado papo, em que falamos de muitas coisas, sobretudo, do comportamento humano nos tempos atuais.

Contou-me a delicada moça que, no dia anterior, estava de pé junto ao balcão, quando percebeu que os funcionários da loja corriam para a porta com um olhar de curiosidade e constrangimento. E ela acabou por acompanhar o grupo, ao perceber que o mesmo acontecia com as pessoas dos estabelecimentos vizinhos e pedestres. A cena que viu tocou-a profundamente. Uma senhora já bastante idosa caminhava vagarosamente arrastando a calcinha entre as pernas. Seus passos eram lentos e desequilibrados, dificultados pela peia que travava suas frágeis pernas. Caminhava quase que de olhos fechados, supostamente  indiferente a tudo, mas com uma determinação férrea de chegar ao ponto desejado.

Apiedando-se da “doninha”, expressão usada pela vendedora, foi até ela e a pegou carinhosamente pelo braço, levando-a, ainda um pouco resistente, para a loja onde trabalhava. Quando entraram no estabelecimento, ao se dirigirem para o provador, a calcinha da senhora saiu das pernas, ficando para trás. A vendedora generosa voltou e recolheu a peça íntima com a mão esquerda enquanto que, com a direita, segurava a pobre mulher. Todos os olhos estavam voltados para elas, inclusive os daqueles que vieram até à loja para verem o desenrolar da cena. E ali no provador, com a cortina fechada, ela levantou a roupa da idosa, arrumando-lhe delicadamente a calcinha.

Contou-me ela, que a senhorinha estava impecavelmente limpa, trajando anágua, blusa e saia. Calçava um sapatinho preto, baixo, e carregava no ombro uma bolsa de crochê, já envelhecida pelo uso. Após arrumá-la, notou que a “doninha” estava com os olhos cheios de lágrimas. Ao conversar com ela, percebeu que gozava de saúde mental compatível com sua idade. Dissera-lhe a idosa senhora, que era viúva, morava sozinha e que sofria de labirintite, e que, ao sair para comprar um remédio, percebeu na rua que sua calcinha havia descido, talvez pelo fato de ter emagrecido naquela semana, mas não podia abaixar, pois, se o fizesse cairia na calçada, pois andava atacada pela doença. Contou-lhe ainda, que sabia que as pessoas estavam olhando para ela, mas fingia não estar vendo nada, pois tinha medo de pedir ajuda e alguém levantar sua roupa na rua. Tentava chegar à farmácia, onde pediria ao moço para entrar no banheiro, assentar-se e subir a calcinha.

Já arrumadinha, mas ainda envergonhada, a vendedora deteve a senhora por algum tempo na sua loja, até que os curiosos dispersassem e ela pudesse sair sem a vergonha que lhe umedecia os olhos cansados pelo tempo e pela solidão. E, apesar do fato tão comovente, voltei para casa alegre, com o sentimento de que, enquanto houver pessoas como aquela vendedora, a humanidade ainda terá salvação. Quando lhe perguntei por que fizera aquilo, a moça da loja respondeu-me:

– Fiz porque tive compaixão da doninha. Poderia ser minha mãe ou avó, ou mesmo eu, no futuro.

(*) Cerâmica do Vale do Jequitinhonha

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