Autoria de Lu Dias Carvalho
Foi um ano de muita seca nas nossas Minas Gerais. Seca das brabas! Nessa época, os voluntários da CEDEC eram dirigidos pelo Major Cláudio Teixeira (hoje coronel do Corpo de Bombeiros). Angariávamos doações em Belo Horizonte e as distribuíamos nos vales do Jequitinhonha e do Mucuri. Éramos uma trupe de mais ou menos cinquenta artistas mambembes em ação pelas estradas das Gerais. Com os caminhões cheios, despencávamo-nos pelo interior afora, divididos em grupos, em ônibus ou vans do Estado.
De uma feita, fomos para uma região próxima a Montes Claros, onde a situação estava calamitosa, incluindo aí a famosa cidade de Pai Pedro e sua vila de nome Silício. Os caminhões paravam no acostamento da estrada e nós, com nossas jaquetas alaranjadas, e escritas “Defesa Civil” adentrávamo-nos mato. A terra era uma secura só, havendo apenas uns cactos verdes do qual se nutria o gado, cuja anatomia poderia ser retratada pelos olhos do observador, como se fosse um raio-X. As condições das pessoas de baixa (ou nenhuma) renda eram um soco direto na cara.
Nós fôramos preparados com toda uma psicologia de aproximação para não deixar o carente despido de sua própria dignidade. Primeiro falávamos do tempo seco, da perda das lavouras, do algodão esturricado, dos meses de trabalho jogado fora, da esperança de um novo tempo. A seguir, contávamos o número de habitantes dos casebres, para então distribuir alimentos, colchões e água mineral, entre outras coisas. Tirávamos fotos todos juntos, tentando levar, também, o nosso carinho.
Apesar da miserabilidade, era difícil as pessoas não nos oferecerem um cafezinho fraco (urina de gato, como dizia um dos colegas de campanha) servido em copinhos esmaltados, mas já descascados pelo tempo e que só Jesus sabia em que poças foram lavados, mas que fazia um bem danado ao coração de quem dava e de quem recebia. Funcionava como o líquido da esperança em dias melhores. Não sei se é assim em outros Estados, mas nas Minas Gerais é de maus modos não aceitar um cafezinho “na casa de pobre”. E eu, que tenho gastrite nervosa e que devo passar longe de café, via-me na obrigação de beber tal preciosidade, para não ofender as honras da casa. Para cada canequinha engolida, chupava uma pastilha de magnésia bisurada.
Dessas viagens, dois fatos me marcaram, entre tantos outros. O primeiro, muito triste, foi ver um rapaz de pouco mais de 20 anos chorando convulsivamente, ao receber as doações. Ele nos disse que chorava de tristeza e alegria, ao mesmo tempo. Tristeza por ser forte e não ter trabalho para fazer, e alegria por sermos como anjos que estavam salvando aquela gente de morrer de sede e fome.
O segundo, foi protagonizado pela minha terna e compassiva amiga Alfa, apaixonada por pé de galinha cozido. Chegamos a uma casa, onde o prato do dia era um caldeirão de pés de galinha. É fato que a nossa barriga estava varando as costas, pois já era muito tarde e tínhamos feito um trabalho intenso naquele dia. Alfa, a alegria da turma, enlouqueceu-se de alegria ao sentir o cheiro vindo do caldeirão. Não resistiu e pediu à dona da casa para comer um pezinho só, acabando por comer três, além de ter chamado a turma para experimentar tão maravilhosa iguaria. Todos recusaram, alguns alegando que “galinha cisca para trás” e a pessoa fica mais pobre ainda, enquanto Alfinha se deliciava com o menu. A dona da casa, cheia de alegria, ao ver que podia oferecer algo aos visitantes, queria colocar meia dúzia de pés de galinha numa sacola para que a voluntária comesse na estrada. Se não fossem os nossos olhares enviesados, aposto que a nossa amiga não teria recusado a oferta. Para compensar o desfalque feito, a danada ainda obrigou o nosso chefe, Cláudio Teixeira, a dobrar a quantidade de alimentos a serem doados.
Devo fechar o meu causo dizendo que Alfa Carlesso é uma das pessoas mais extraordinárias que conheci em toda a minha vida. E que sempre terá um lugar em meu coração pela sua bondade e solidariedade infinitas, assim como todos os meus colegas voluntários.
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