Arquivo da categoria: Historiando Canções

Histórias que remetem à obra musical de vários compositores brasileiros (MPB)

Historiando Chico Buarque – CONSTRUÇÃO

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Amou daquela vez como se fosse a última/ Beijou sua mulher como se fosse a última/ E a cada filho seu como se fosse o único.” (Chico Buarque)

Os arranha-céus pipocando por todos os lados eram a marca mais visível do poderio do capitalismo. O dia ainda nem nascera e filas de operários sonolentos já aguardavam nos pontos escuros da distante periferia a condução para o trabalho. Eram milhares de Joãos, Joaquins, Manés e Josés, sendo impossível nominá-los. Todos eles frutos da mesma sina, irmãos do mesmíssimo amargor. A cada dia subiam mais alto na vida, engatados nos possantes andaimes a cruzar os ares. Embaixo, o vão da morte a rondá-los diariamente.

O operário acordou com um pressentimento ruim. Antes de levantar-se do catre, sentiu um imenso desejo de fazer amor com sua mulher. E “Amou daquela vez como se fosse a última”. Levantou-se apressado, com medo perder a hora, e “Beijou sua mulher como se fosse a última/ E a cada filho seu como se fosse o únic”. No outro lado da rua, alguns colegas de igual sorte já o esperavam: “E atravessou a rua com seu passo tímido”.

Chegou ao ainda esquelético arranha-céu, já cansado pelo esgotante trajeto e obsoleta condução. E sem perda de tempo “Subiu a construção como se fosse máquina/ Ergueu no patamar quatro paredes sólidas/ Tijolo com tijolo num desenho mágico”. Poucos repararam nos “Seus olhos embotados de cimento e lágrima”. Que vida danada de cruenta, meu Deus!

Uma sirene avisou ao operário que era hora do rango e ele “Sentou pra descansar como se fosse sábado/ Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe/ Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago”. Da altura em que se encontrava acreditou que poderia até tocar na mão de Deus. Por isso, “Dançou e gargalhou como se ouvisse música”. Mas desequilibrou-se “E tropeçou no céu como se fosse um bêbado/ E flutuou no ar como se fosse um pássaro/ E se acabou no chão feito um pacote flácido”.

Sem socorro, o operário “Agonizou no meio do passeio público.”, enquanto os condutores de luxuosos automóveis reclamavam que aquele traste “Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”. Somente os companheiros apiedaram-se do irmão, cujos restos boiavam em meio a uma poça de sangue escuro. Rodearam-no. Mas o patrão obrigou-os a voltar ao trabalho, sob ameaça de demissão por justa causa. Manda quem pode e obedece quem precisa! É a vida!

Ainda bem que o operário “Amou daquela vez como se fosse o último/ Beijou sua mulher como se fosse a única/ E cada filho seu como se fosse o pródigo”. Não é difícil, portanto, entender porque “(E) atravessou a rua com seu passo bêbado” Seus colegas contam que ele “Subiu a construção como se fosse sólido/ Ergueu no patamar quatro paredes mágicas/ Tijolo com tijolo num desenho lógico”, e muitos viram seus “Seus olhos embotados de cimento e tráfego”. E que depois, ele se “Sentou pra descansar como se fosse um príncipe/ Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo/ Bebeu e soluçou como se fosse máquina/ Dançou e gargalhou como se fosse o próximo”.

Um dos Manés ou Josés observou quando “Ele tropeçou no céu como se ouvisse música/ E flutuou no ar como se fosse sábado/ E se acabou no chão feito um pacote tímido”. Mas também os Joãos e Joaquins viram quando ele “Agonizou no meio do passeio náufrago” E “Morreu na contramão atrapalhando o público”.

Durante dias não houve uma só construção em que não se comentasse que o operário “Amou daquela vez como se fosse máquina/ Beijou sua mulher como se fosse lógico/ Ergueu no patamar quatro paredes flácidas/ Sentou pra descansar como se fosse um pássaro/ E flutuou no ar como se fosse um príncipe/ E se acabou no chão feito um pacote bêbado/ Morreu na contramão atrapalhando o sábado”. Até que uma nova  desgraça aconteceu e essa foi esquecida. E depois mais outra, e outra, e outra…

Obs.: Ouça a música  CONSTRUÇÃO

Nota: imagem recebida via e-mail

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Historiando Chico Buarque – DEUS LHE PAGUE

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir/ E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir/ E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir/ Deus lhe pague. (Chico Buarque)

O “homem de Deus” entrou na casa do operário com o intuito de “ganhar” sua alma para o Senhor. Há dias vinha andando pelas ruas daquele miserável mundo a fim de cumprir sua missão evangelizadora. Usava terno preto e camisa branca, sapato de couro engraxado e gravata de risca. Os óculos de aros finos contrastavam com o volumoso relógio no pulso. O corpo atarracado mostrava ser homem de garra no eito, quando o garfo empunhava. Pegou na mão do operário, de sua esquálida mulher e de seus cinco filhos. Durante mais de uma hora pregou sobre a salvação da alma, mas não a do corpo.

O operário falou-lhe, envergonhado, que o filho mais novo estava doente, precisando de remédio, e que pra comer só havia macarrão e pão dormido. O “homem de Deus” fez que não ouviu, e disse que era preciso agradecer pelos inúmeros benefícios recebidos, primeiramente ao Criador e depois ao patrão que lhe dava serviço. Cantou, louvou e partiu, sem se esquecer de convidar a família para a igreja e falar sobre as maravilhas do dízimo, pois “quanto mais se doa, mais se recebe”. O operário achou que talvez o “homem de Deus” tivesse razão. Talvez sua vida fosse tão penosa por falta de gratidão. E passou a agradecer: “Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir/ A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir/ Por me deixar respirar, por me deixar existir/ Deus lhe pague”.

O pobre homem matutava para não se esquecer de nada: “Pelo prazer de chorar e pelo ‘estamos aí’/ Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir/ Um crime pra comentar e um samba pra distrair/ Deus lhe pague”. Lembrou-se da praia, aonde ia uma vez a cada trimestre com a mulher e os filhos: “Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui” Achava que também deveria agradecer pela cópula feita às pressas: “O amor malfeito, depressa, fazer a barba e partir”. E também pelos programas dominicais: “Pelo domingo que é lindo, novela, missa, gibi/ Deus lhe pague”.

Enquanto se conduzia para o trabalho, o operário continuava a agradecer: “Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir/ Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir/ Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair/ Deus lhe pague”. E de volta, espremido num lotação e moído pelo cansaço, também agradeceu: “Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir/ Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir/ E pelo grito demente que nos ajuda a fugir/ Deus lhe pague”.

Ao chegar a casa, o filho que deixara doente e sem remédio estava morto. Ao vê-lo, tão mirradinho estendido sobre a cama, o operário agradeceu pela última vez: “Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir/ E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir/ E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir/ Deus lhe pague”. Depois disso, ele emudeceu para sempre!

Obs.: Ouça a música  – DEUS LHE PAGUE

Nota: Criança Morta, obra de Candido Portinari

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Historiando Chico Buarque – BOM TEMPO

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Um marinheiro me contou/ Que a boa brisa lhe soprou/ Que vem aí bom tempo. (Chico Buarque)

O domingo nasceu dourado depois de dias e dias nublados, com o sol teimando em surgir. É possível que o astro-rei andasse desencantado com as vilanias que acontecem por aqui. O operário, deslumbrado com a belezura da manhã, de sua janela cantava em alto e bom tom: “Um marinheiro me contou/ Que a boa brisa lhe soprou/ Que vem aí bom tempo/ O pescador me confirmou/ Que o passarinho lhe cantou/ Que vem aí bom tempo”.

O vizinho abriu sua porta, surpreso com a voz alegrada do operário, e perguntou-lhe o porquê de tamanha euforia. Ele lhe respondeu: “Dou duro toda a semana/ Senão pergunte a Joana/ Que não me deixa mentir/ Mas finalmente é domingo/ Naturalmente me vingo/ Eu vou me espalhar por aí/ No compasso do samba/ Eu disfarço o cansaço/ Joana debaixo do braço/ Carregadinha de amor/ Vou que vou/ Pela estrada que dá numa praia dourada/ Que dá num tal de fazer nada/ como a natureza mandou/ Vou/ Satisfeito, a alegria batendo no peito/ O radinho cantando direito/ A vitória do meu tricolor/ Vou que vou/ Lá no alto/ O sol quente me leva num salto/ Pro lado contrário do asfalto/ Pro lado contrário da dor”.

O operário, sempre sem dinheiro para um cinema ou teatro, já há muitos domingos na sua casinha, engaiolado, era pura alegria e amor. Enquanto ajuntava as tralhas para usufruir do dia ensolarado, continuava cantando sua prazenteira canção: “Ando cansado da lida/ Preocupada, corrida, surrada, batida/ Dos dias meus/ Mas uma vez na vida/ Eu vou viver a vida/ Que pedi a Deus”.  E alguns que o ouviam cantar, entre sorrisos diziam:

– O pobre fica feliz com tão pouco! E assim, equilibrando-se em meio às correntezas bravias, vai levando a sua insignificante vida!.

Obs.: Chico Buarque canta junto com João Bosco: BOM TEMPO

Nota: Descanso na Praia, obra de Di Cavalcanti

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Historiando Chico Buarque – UM CHORINHO

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Mas não faz mal/ E quem quiser que me compreenda/ Até que alguma luz acenda, este meu canto continua/ Junto meu canto a cada pranto, a cada choro/ Até que alguém me faça coro pra cantar na rua. (Chico Buarque)

O poeta amanheceu com o coração partido ao ver as agruras gritantes de seu povo. Ele que só sabia fazer poesia e dedilhar seu violão ou cavaquinho, achou-se pequeno diante das leviandades que via acontecer. Queria ter poder para mudar tudo, a começar pela Justiça terrena, uma vez que a divina encontrava-se muito distante. Mas era preciso ter paciência e aguardar o brotar de um novo tempo, em que os poderes constituídos cumprissem seu real dever, pensando na gente do país, e não apenas guiados pela bandeira da pecúnia e do mal. E pensando assim, tomou nas mãos seu cavaquinho e foi sentar-se sozinho num cantinho da pequena praça, para lamentar a sua dor.

O poeta chorou e chorou por um longo tempo. Mas depois pensou em transformar seu choro num chorinho, perpetuando aquele momento de desencanto. Era preciso transformar em versos a desilusão, dar-lhe vida, para que ela passasse a fazer parte dos anais da história de seu povo, e não acontecesse nunca mais. Ele chamou sua morena, que também andava desiludida, para que o ouvisse, e assim cantou: “Ai, o meu amor, a sua dor, a nossa vida/ Já não cabem na batida/ Do meu pobre cavaquinho/ Quem me dera/ Pelo menos um momento/ Juntar todo o sofrimento/ Pra botar nesse chorinho”.

Dos olhos acastanhados da morena desciam grossos pingos de água salobra, filtrados no âmago de seu  ser. Doía-lhe ver seu homem assim tão desalentado, sem que nada  pudesse fazer para diluir sua amargura. Ela só podia escutar seu pranto no canto que ele transformava em chorinho, doído, como se tocado pelas cordas do coração. E ele continuou: “Ai, quem me dera ter um choro de alto porte/ E anunciar a luz do dia/ Mas quem sou eu/ Pra cantar alto assim na praça/ Se vem dia, dia passa/ E a praça fica mais vazia”.

A dor do poeta era tamanha, que ele temeu que sua morena deixasse-o sozinho, entregue à  própria angústia. Queria-a bem agarradinha ao seu coração, de modo que ela pudesse lhe soprar um alento de vida. A mulher compreendeu sua desolação e envolveu-o com força. E o poeta murmurou: “Vem, morena/ Não me despreza mais, não/ Meu choro é coisa pequena/ Mas roubado a duras penas/ Do coração”. Ela beijou-lhe os cabelos, os olhos e as mãos, enquanto ele completava: “Meu chorinho/ Não é uma solução/ Enquanto eu cantar sozinho/ Quem cruzar o meu caminho, não para não”.

Acalentado pelo amor de sua musa, o poeta foi-se enchendo de garra e compreendeu que seu talento não lhe fora dado em vão. Seus versos musicados poderiam ecoar de norte a sul e de leste a oeste de seu país. A ele cabia a missão de botar o seu dom a serviço de sua nação. Ele então cantou forte e alto, para que nas casas em derredor, todos pudessem ouvir: “Mas não faz mal/ E quem quiser que me compreenda/ Até que alguma luz acenda este meu canto continua/ Junto meu canto a cada pranto, a cada choro,/ Até que alguém me faça coro pra cantar na rua”.

Após ouvir o chorinho do poeta, que ainda dedilhava seu cavaquinho, as pessoas foram deixando suas casas, algumas delas levando instrumentos musicais, outras flores, e até mesmo vinho para o cantador mais compassivo da cidade. A praça encheu-se de uma vigorosa força. O poeta e sua mulher sentiram que não mais estavam sós, pois o povo era o dono de tudo e toda a força emanava dele.

Obs.: ouçam a música –  UM CHORINHO

Nota: a ilustração é uma obra de Di Cavalcanti, denominada Baile Popular.

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Historiando Chico Buarque – APESAR DE VOCÊ

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia/ Você vai se dar mal/ Etc. e tal.” (Chico Buarque)

O príncipe velho, invejoso e mau, com cara de bom avô, tramou dia e noite para derrubar a rainha de seu reino, mal ela dele tomara posse. Seu maior sonho era ser rei, ainda que por alguns meses. O mau-caráter aliou-se aos crápulas, calhordas, canalhas e tudo que havia de pior no seu reino, a fim de chegar ao trono. E tanto urdiu, teceu, forjicou e entrelaçou os fios da discórdia e da malquerença que nem mesmo o conselho, composto por homens, até então considerados doutos, predispôs-se a intervir na defesa da soberana. Ao contrário, o conselho também tramou ardilezas e deslizes para levar o príncipe-mau ao poder. Tanto é que a rainha e seu povo não deram mais ouvidos àqueles que outrora eram tidos como os sábios do reino. Estavam manchados pela parcialidade e comprometimento com as injustiças. Não mais mereciam ser vistos como bons juízes na defesa do reino. O fato é que a rainha foi afastada de seu trono sob a desculpa de que deveria se defender, quando na verdade tudo já se encontrava tramado, tecido, urdido, convencionado, manipulado, maquinado e decidido.

Nas ruas e em suas humildes casas, os camponeses choravam a traição enredada. Tinham a certeza de que tempos turbulentos viriam para eles, os reais edificadores do reino, e dias benéficos seriam propiciados aos amigos do príncipe-mau, sugadores do suor dos humildes. Entre lágrimas cantaram para o príncipe invejoso: “Hoje, você é quem manda/ Falou, tá falado/ Não tem discussão/ A minha gente hoje anda/ Falando de lado/ E olhando pro chão, viu”. Mas alguns homens e mulheres mais esclarecidos complementaram que a canção também deveria ser direcionada ao conselho de doutos do reino, que não se posicionara como era de seu dever, sendo, portanto, o maior responsável pelos ardilosos fatos em andamento. E ao conselho foram dirigidos os versos: “Você que inventou esse estado/ E inventou de inventar/ Toda a escuridão/ Você que inventou o pecado/ Esqueceu-se de inventar/ O perdão”.  Agora, que buscasse luz para a escuridão em que ajudara imergir o reino e seu povo mais carente.

Com o afastamento da rainha, o homem-mau e seus comparsas, muitos deles há muito tempo merecendo ver o sol nascer quadrado, mas a quem foram confiados honoríficos cargos com a conivência do conselho de doutos, que de tudo tinha conhecimento, puseram-se a tripudiar sobre a rainha e os camponeses. Festejaram em suas luxuosas mansões com bebidas caras, importadas de reinos mais poderosos, sob o tilintar de taças de cristal, durante dias e noites. Mas o povo camponês não se deu por vencido. A guerra ainda poderia ser ganha, se todos os fracos juntassem as mãos, uma vez que perfaziam a maioria. E assim, após o trabalho, essa gente passou a reunir-se nas ruas e praças, gritando contra a vingança perpetrada pelo velho príncipe e sua gangue do mal: “Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia/ Eu pergunto a você/ Onde vai se esconder/ Da enorme euforia/ Como vai proibir/ Quando o galo insistir/ Em cantar/ Água nova brotando/ E a gente se amando/ Sem parar”. Nada como um dia atrás do outro. Todos haveriam de pagar caro pela guerra à rainha, declarada.

Os camponeses passaram a contar com a ajuda de muitos intelectuais, artistas, estudantes, mídia alternativa e pessoas de bom coração, também vítimas do despreparo, prepotência e descontrole do príncipe-mau, que continua na posse do reino, urdindo, com seus sequazes, cruéis e estúpidas mudanças a serem jogadas no lombo do povo humilde. Dizem os tais, que até que irão construir uma ponte sem volta para o reino. Mas nas ruas, promessas a eles são dirigidas, dia após dia, pelo povo injuriado: “Quando chegar o momento/ Esse meu sofrimento/ Vou cobrar com juros, juro/ Todo esse amor reprimido/ Esse grito contido/ Este samba no escuro/ Você que inventou a tristeza/ Ora, tenha a fineza/ De desinventar/ Você vai pagar e é dobrado/ Cada lágrima rolada/ Nesse meu penar”. Até as crianças do reino sabem que nada fica impune neste mundo de meu Deus. Mais cedo ou mais tarde a cobra fuma para o lado do malfeitor e seu séquito. Tudo é questão de tempo, pois algo ruim e podre encontra-se a caminho, conforme informa o oráculo do reino. Quem viver verá que toda glória é finita, por mais imponente que seja o laureado!

Muitos dos camponeses, que aderiram ao príncipe invejoso, arrependeram-se. Observaram que o reino fora entregue aos que com ele se locupletavam, inclusive gatunos do erário público. E tanto a corja sacia-se e enriquece-se que o conselho dos doutos já não tem mais gavetas para guardar denúncias sobre a súcia. Essas já estão a sair pelo ladrão, sem que os doutos tenham coragem de ao menos lê-las. Alegam que há muito tempo para isso, uma vez que não são  direcionadas à rainha e a sua gente. E na rua o povo, agora em maior número, continua a cantar: “Inda pago pra ver/ O jardim florescer/ Qual você não queria/ Você vai se amargar/ Vendo o dia raiar/ Sem lhe pedir licença/ E eu vou morrer de rir/ Que esse dia há de vir/ Antes que você pensa”. E como haverá de vir!

O príncipe velho e mau tem sido notícia na mídia mais poderosa do reino, que com ele tramara a queda da rainha e, que lhe tece os mais loroteiros e pabolas elogios. Mas algo ainda atormenta o homem invejoso, que sempre sonhou em ser rei, e os seus asseclas: ser chamado de “golpista”. Ele e seus sequazes tiveram a petulância de  pedir ao conselho de doutos que proibisse a rainha de dizer, ao povo de seu reino e de outros, que fora vítima de um iníquo golpe, ou seja, tirada do trono pela força da vingança. Esquecem eles que os demais reinos  testemunharam e comprovam todos os seus ardis e tramoias. Mas o povo continua a cantar nas ruas e praças: “Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia/ Você vai ter que ver/ A manhã renascer/ E esbanjar poesia/ Como vai explicar/ Vendo o céu clarear/ De repente, impunemente/ Como vai abafar/ Nosso coro a cantar/ na sua frente”. E esse dia não tardará a chegar – reafirma o oráculo ao povo.

Obs.: Ouçam APESAR DE VOCÊ

Nota: pormenor da obra de Candido Portinari, Guerra e Paz.

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Historiando Chico Buarque – RODA-VIVA

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Roda mundo, roda gigante/ Rodamoinho, roda pião/ O tempo rodou num instante/ Nas voltas do meu coração. (Chico Buarque)

Por mais que se anuncie a desgraça, nossa mente minimiza-a, como uma forma de jogar-nos para frente, pois, enquanto se está vivo, a luta deve prosseguir. Bendita sabedoria da mente, que age no intuito de preservar nossa vida, mostrando que somente os mortos jazem tombados, sem ação. Se vivos, temos muito a fazer, e nada ou ninguém pode jogar por terra nossos anseios, sonhos e vontades. Eu sei disso! E como sei! Já vivi muitas lutas! Tombei e levantei-me ainda mais pertinaz, confiante na minha capacidade de ação. É fato que “Tem dias que a gente se sente/ Como quem partiu ou morreu”. E estupefato e desnorteado pergunta-se:  “A gente estancou de repente/ Ou foi o mundo então que cresceu”. E indaga se vale a pena tanta peleja. Mas como vale! Nossos direitos somente serão conquistados na colisão. Eles não nos darão de graça, pois somos o baluarte do capital selvagem e desenfreado que nos sufoca.

Como compreender que nós, que construímos diariamente esta nação, modelando a massa com nossas mãos calejadas, somos capazes de desmentir duas ciências exatas: a matemática e a física que apregoam que, quanto maior é o conjunto, mais forte e coeso ele se torna. Uma vara de marmelo é fácil de ser dobrada e quebrada, mas um feixe delas  não se dobra e nem se quebra, a não ser sob a força bruta de possantes máquinas. Nós, os operários de mãos cheias de calosidades, responsáveis pelas mais diferentes funções, somos a grande maioria do povo que constitui esta nação. Contudo, não passamos de servos dos donos do capital. Mas “A gente quer ter voz ativa/ No nosso destino mandar/ Mas eis que chega a roda-viva/ E carrega o destino para lá”. Precisamos ir em busca deste destino, onde quer que esteja. Ele é nosso por direito. Não podemos deixá-lo ser usurpado por quem apenas dá as ordens.

Desde a descoberta deste país, chamado pelos índigenas de Pindorama (Terra das Palmeiras), e finalmente de Brasil, o povo humilde, composto por índios, negros, brancos e suas misturas raciais, tem se dobrado sob a mão ferrenha do capital. É fato que “A gente vai contra a corrente/ Até não poder resistir/ Na volta do barco é que sente/ O quanto deixou de cumprir”. Por mais que rememos contra as bravias torrentes, tantos outros de nós dormitam em suas redes. E por isso deixamos nossa peleja inacabada, não por nossa vontade, mas por não contar com a força daqueles que julgaram desnecessária a participação na luta. Eles nem se apercebem de que “Faz tempo que a gente cultiva/ A mais linda roseira que há/ Mas eis que chega a roda-viva/ E carrega a roseira pra lá”. E todas as roseiras continuarão a morrer, enquanto todos que vivem sob a ditadura dos capitalistas não se derem as mãos na batalha por uma mesma causa.

Vivemos tempos tristes e enevoados em que “A roda da saia, a mulata/ Não quer mais rodar, não senhor”, e o poeta diz “Não posso fazer serenata”, enquanto os sambistas apregoam que “A roda de samba acabou”. E os artistas e intelectuais comprometidos com o destino sofrido do povão, servos do capitalismo selvagem, bradam: “A gente toma a iniciativa/ Viola na rua, a cantar/ Mas eis que chega a roda-viva/ E carrega a viola pra lá”. A viola é o símbolo da luta e da esperança. Ainda que seja atirada ao léu pela roda-viva da prepotência, do desprezo às leis, do despotismo e da opressão, nós haveremos de resistir, até mesmo para dar sentido à nossa própria vida.

Temos conhecimento de que, desde que nosso Brasil foi encontrado, há mais de 500 anos atrás,  nossos anseios por um país melhor, mais justo e mais humano vêm sendo espezinhado. E que “O samba, a viola, a roseira/ Um dia a fogueira queimou”. E que essa mesma fogueira acesa pela vaidade dos poderosos continua a queimá-los. E a gente conclui que o fato de ter sonhado com um país melhor, onde todos possam viver com dignidade  “Foi tudo ilusão passageira/ Que a brisa primeira levou”. Mas apesar de saber que “No peito a saudade cativa/ Faz força pro tempo parar/ Mas eis que chega a roda-viva/ E carrega a saudade pra lá”, não podemos entregar os pontos. Precisamos lutar com indignação contra essa roda-viva dos mesquinhos e agigantados que nos querem servis, cativos e sem voz, porque “Amanhã vai ser outro dia!”.

Obs.: ouçam a música: RODA-VIVA

Nota: Operários, obra de Tarsila do Amaral

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