Arquivo da categoria: Pintores Brasileiros

Informações sobre pintores brasileiros e descrição de algumas de suas obras

Guignard – CIDADE COLONIAL IMAGINÁRIA

Autoria do Prof. Pierre Santos
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Eis que os acasos da vida trazem-me, ao conhecimento, algo excepcional, inesperado, desconcertante mesmo, da lavra de Guignard. Trata-se da pintura Cidade Colonial Imaginária, feita poucos dias antes de deixar-nos, sobre aleatório recorte de uma prancha de compensado, casualmente recolhida pelo pintor do chão de alguma pequena fábrica de móveis. Claro que algo assim extravagante e único no conjunto da obra deixou-me profundamente intrigado, levando-me a perguntar, dada a extraordinária qualidade plástica ali encontrada: que quadro é este? Quadro? Que objeto é este? Objeto? Que composição é esta, que ultrapassa a naturalidade da visão, para roçar o inaudito da ultra realidade?

Jamais vira algo assim no conjunto das realizações plásticas de Guignard. O presente trabalho se reveste de uma gravidade, que me obriga a pensar, ser ele a última criação do mestre, realizada poucos dias antes de sua morte. Lembro-me de que Arlinda, conversando comigo antes do velório do artista e ainda no Hospital São Lucas, onde faleceu, referiu-se ao fato de que, antes de sua doença agravar-se, “Guignard andou brincando lá no atelier com uma coisa bem diferente…”. Acredito que tal referência seria ao trabalho em foco; só que não estava brincando, pois quando pegou o recorte, já sabia o que fazer com ele, algum tempo depois, quando se dispusesse a usá-lo.

O material usado mais nos parece mera peça de imenso quebra-cabeça, mas é apenas o recorte aleatório, que os fabricantes locais de chapeleiras faziam em peças de compensado ou em papelão comum, e pregavam o restante devidamente pintado, sem aquele recorte feito, sobre o espelho, que as encimavam, para atenuar a transparência. Num recorte assim, Guignard dispôs de baixo a alto o seu motivo. Detenho-me primeiramente em algo que também me intriga: não sei se intencional ou se inconscientemente, o artista pôs sua grande cabeça, sobrepujando aquela paisagem, que via pela vez derradeira, como se estivesse desincorporado.

Se olharmos de maneira difusa para o morro acima da primeira igreja, a maior, ela perde na fímbria de nossa visão a sua fixidez, transformando-se numa boca cheia de dentes, pois a figura está sorrindo. Duas linhas onduladas partem de suas torres, vinculando-a com as duas igrejas acima dela: são os olhos. A face está um pouco inclinada para baixo, na posição de quem esteja vendo do alto. E no espaço infinito do cérebro, a paisagem com seus vales, morros, nuvens e balões povoa o sonho do artista. Duvido que tal coisa não tenha sido feita de propósito. Pura mágica.

Como Guignard intuiu este panorama e, no âmbito de sua intuição, propôs-se a edificá-lo? Embaixo, no primeiríssimo plano, balões inflados pouco abaixo começam a ascender-se e já estão prestes a ultrapassar a trilha, que leva, não se sabe de onde, à primeira igreja, sobrevoando as primeiras nuvens às fraldas do morro mais próximo. Guignard vê tudo isso de cima. De cima? Mas de onde? Promontório algum seria capaz de ombrear-se com toda essa elevação! Não há promontório, nem nada. Na imaginação, a alma se lhe desprendeu do corpo e voeja por sobre a paisagem rumo ao mundo encantado da fantasia. Seis igrejas construídas no nada ponteiam o espaço e, coordenadas com vales e montes, conduzem a visão do artista ao infinito, onde o céu azul com suas nuvens brancas prepara-se para embalar os balões que, naquele espaço, começam a levitar, balões que, sintomaticamente, de alto a baixo, têm o mesmo tamanho! Puro sonho.

Devido ao exotismo do recorte, jamais tinha visto algo assim na obra de Guignard e certamente é o único. Além disso, alguns recursos aí empregados comprovam, de maneira inequívoca, a presença do mestre nesta pintura: primeiro, o preparo da superfície feito com inusitado esmero, usando técnica a duras penas aprendida enquanto acadêmico em Munique, Alemanha, no que é inimitável; e, segundo, a ciência na distribuição dos elementos composicionais, no caso os componentes de uma paisagem de cidade colonial saída de sua imaginação, onde igrejas em posições estratégicas, vales cheios de nuvens, morros dispostos em sentido ascensional e balões sempre brancos tal se fossem almas que por ali adejam no supremo afã de atingir o céu, vão se dispondo com suas cores sempre para riba, em campos compartimentados e correspondentes, no rumo do infinito.

Quis o acaso que somente agora me fosse dado conhecer este trabalho. Foi o último pintado pelo artista? Seja. É o último que focalizarei no meu livro, encerrando-o com chave de ouro. Até lá e só por curiosidade, quero levantar uma questão interessante, atinente ao valor representativo, de um lado, e ao valor pecuniário, de outro, no que se refira a esta obra. Há poucos anos, o atual proprietário, que quase nada sabia sobre Guignard, adquiriu este trabalho na bacia das almas, como se diz, e o guardou em casa. Recentemente soube de minha existência. Viajou até mim e mostrou-me o quadro, querendo saber se “aquilo” era verdadeiro e se tinha algum valor. Fiquei boquiaberto ao ver a obra, estudei-a e concluí não só por sua autenticidade, mas também pelo aspecto inestimável no que tanja ao seu valor. Sendo feita num recorte de compensado com inusitado capricho, acabou ficando uma peça única, sem o menor paralelo na obra do mestre. Por ser assim, restou algo exótico e é por isso que seu valor parece-me bastante imponderável, fugindo à conceituação mercadológica dos próprios quadros de Guignard, que hoje atingem cifras impressionantes. Mas se a peça foge disto, eleva-se por sua excentricidade e raridade a plano bem diversificado e, certamente, irá chamar a atenção dos colecionadores, sendo um museu a sua acolhida no futuro.

Nota: Guignard, Cidade colonial imaginária, 1962, osm, 27 X 27 cm.

Guignard – MARINHA

Autoria do Prof. Pierre Santos

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Alberto da Veiga Guignard, o mágico nova-friburguense (ou seria melhor dizer: poeta?) sabia, como pouca gente, inventar enlevos, suscitar emoções e cravar na poção das tintas a essência da vida, infundindo alma a tudo quanto lhe estivesse ante os olhos e fosse por ele recriado numa especial linguagem de pintura ou desenho.

Quero dar aos leitores um exemplo dentre miríades de outras possibilidades pictóricas, escolhido não do meio dos trabalhos mais divulgados e admirados, mas do conjunto daqueles mais simples, como uma pequena e despretensiosa marinha do princípio dos anos 40, praticamente desconhecida do público, mas que se conta, a meu ver, entre os seus melhores trabalhos, dada a marcante expressividade desta singela obra-prima de seu período. Trata-se da pintura que recebe, em meu livro sobre Guignard, o número G-212-Pf-008Marinha- estivadores trabalhando, déc. de 40, ost, reproduzida acima.

Quando o mestre postou seu cavalete diante deste panorama e nele fixou uma pequena tela (então já em pleno domínio da luminosidade tropical, que tanto o deixou atordoado nos primeiros anos), apenas pretendia exercitar-se um pouquinho com pincéis, sem a pretensão de fazer obra de gênio, coisa que nunca pensou diante de tema que fosse pintar (e eu me pergunto: será que alguma vez deixou de fazer obra de gênio?). Contudo, o destino levava-o a realizar, ali e naquele momento, mais uma obra genial. E, assim, em face desta infinitude, a mão direita sobre o coração, como sempre ficava, pôs-se a observar tudo aquilo por largo tempo, para, uma vez tendo incorporado o tema e já isolado do resto do mundo, entregar-se ao mister da criação. O resultado aí está: indizível tranquilidade traz ao nosso encontro esta bela marinha, onde a amplitude do céu à holandesa induz-nos ao sossego, e a faixa menor de restinga, alagados de mar e morros e rochedos, à alegria de viver. Tudo nela nos comove e a incorporamos de tal modo, que é como se pudéssemos ir pisando descalços por esse areal e fôssemos ao longe beijar o oceano.

Para melhor visualizar a cena em seu conjunto, o pintor teve necessidade de instalar-se em ponto mais alto; não tão alto que tivesse de elevar o horizonte, aproximando de si elementos que se localizam lá atrás, interferindo na composição pretendida, de modo inconveniente; porém não tão baixo, como ao nível da praia, o que só lhe permitiria divisar os elementos da frente, impedindo a perfeita visão da retaguarda; mas em nível algo acima, como seja, por exemplo, a sacada do terceiro andar de algum apartamento fronteiriço ao local, de onde pudesse ter uma ampla visão daquela marinha. De uma posição assim, o quadro certamente foi feito e é de uma altura desse tipo que nosso olhar entra na paisagem e ganha as lonjuras.

Eis instalada, na parte inferior do plano de abertura da tela, verdadeira azáfama de pescadores e estivadores, irmanados pelo objetivo comum, trabalhando, gritando e agitando-se no esforço de arrastar o barco, recém-regressado da pesca, desde o alagado ao areal, onde uma calçada de achas convida-o a assentar-se. À primeira vista, a agitação é tão grande, que nos fica a impressão de que há cinquenta homens; mas, há apenas dezessete. Os três barcos, dispostos em ângulo na areia, com o vértice para o fundo, puxam a marinha ao nosso encontro, possibilitando-nos um passeio virtual àquela mágica zona, onde o mar encosta-se ao céu.

Morro, palmeiras, construção e barcos ritmam-se na linha do horizonte. Os morros à direita estão pesando na composição? Sim. Mas não há risco nenhum: as pesadas nuvens lá em cima, à esquerda, os estão segurando, como se a elas estivessem amarrados por poderosas cordas. Essas nuvens estão também ligadas por empatia ao barco maior, à esquerda, o qual, por sua vez, se liga ao morro maior, à direita, formando um ângulo aberto para o sem fim e levando nossa emoção a navegar do areal amarelo, onde a vida pulula, passando pelo azul profundo do mar, de onde a vida vem, ao azul claro do céu que acarinha a vida e a tudo abençoa. O resto é somente poesia.

Nota: G-212-Pf-008-Marinha-estivadores trabalhando, déc. de 40, ost.

Guignard – FAVELA CARIOCA

Autoria do Prof. Pierre Santos

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A primeira obra feita por Guignard, após o retorno ao Brasil, aconteceu ser um desenho, tendo escolhido para tema uma típica favela do Rio de Janeiro. A assinatura ainda é a usada anteriormente – Da Veiga Guignard – pois foi o primeiro aqui realizado. Já no trabalho seguinte, assinaria apenas Guignard e só muito esporadicamente retomaria a antiga firma. Andava ansioso para focalizar aspectos paisagísticos significativos e tipicamente característicos do Rio, compreendidos dentro daquela luminosidade exclusiva do tropicalismo por ele recém-descoberta – e a escolha para começar não poderia ter sido melhor: um morro carioca bem referente, com todos os condimentos que, reunidos, dessem-nos a compreensão universal daquela realidade, não só em termos urbano-paisagísticos, mas também em termos humanos e sociais.

Aí está a vida passada numa favela, sintética e expressivamente caracterizada diante de nós, como exemplo vivo desta realidade setorialmente considerada. A favela vai subindo o morro com seus postes, seus barracos, sua vegetação e com tudo que nela existe, do sopé à crista, sempre arriba, até chegar “pertinho do céu”, como diria o compositor Herivelto Martins. Guignard intuiu e concebeu este corte de favela, tomando posição, com sua prancheta preparada, uns três metros aquém da rua que passa em ligeira diagonal na parte inferior, e olhasse o morro, como de fato olhava, de baixo para cima, inscrevendo-o assim numa composição ascensional. Para tanto, induz nossa vista a seguir a evolução de alguns elementos colocados em pontos chaves da composição, que vão se correspondendo em ziguezague, a saber: do lampião, à direita, ao poste um pouco acima, à esquerda; deste, à única palmeira ali existente, que se destaca acima do meio do plano total, à direita e, da palmeira, ao galho cheio de folhas lá no alto, à esquerda, sozinho, evanescente tal se fumaça fosse, avultado contra o que seria céu.

Os dois elementos que iniciam a leitura são tão dinâmicos na diagonal na qual estão inscritos, que arrastam em sua evolução todas as conotações formais do desenho – pessoas transitando por lá, caminhos sinuosos, vegetações laterais, barracões que também ziguezagueiam e dos quais as janelas são olhos a olhar-nos – como diria Drummond – como se as encaminhasse no sentido ascensional. Por onde quer que olhemos o desenho, nossa vista é sempre atraída por esses elementos, que estão sempre, em seu conjunto, esforçando-se para chegar ao céu.

A vida ali flui devagar no meio de árvores e arbustos, na tortuosidade das direções possíveis tomadas pelas aleias, por onde pessoas descem e sobem o morro. Algumas carregam latas d’água na cabeça, ironicamente vazias na descida e cheias na volta, porquanto, por não haver água canalizada nas moradias, obrigam-se a apanhá-la na bica comunitária, que sempre fica lá em baixo, no princípio da rua, à entrada da favela. Outras descem simplesmente com o fim de irem ao armazém também localizado no princípio da rua. Galinhas ciscam. Alguns indivíduos sobem a rua, à procura do atalho mais fácil, que os conduza aos seus barracos. Um burro sobe lentamente a ladeira; um moleque e seu cachorro descem-na… Ora! Vejam o Drummond aí outra vez:

Casas entre bananeiras./Mulheres entre laranjeiras./Pomar amor cantar.
Um homem vai devagar./Um cachorro vai devagar./Um burro vai devagar.
Devagar… as janelas olham./Eta vida besta, meu Deus!

Carlos Drummond de Andrade escreveu este pequeno poema exatamente em 1929, o mesmo ano em que nasceu o pequeno desenho de Guignard, e intitulou-o Cidadezinha Qualquer, mas poderia ser também Favelinha Qualquer, teria dado na mesma. Se o poeta tivesse feito apenas o poema citado, já teria deixado patente sua enormidade poética. Assim também, se Guignard tivesse parado de desenhar depois de Favela Carioca, sua enormidade como desenhista já teria ficado provada. Mas, felizmente, ambos foram anos luz à frente.

Drummond, no simples verso com que encerra o poema, sintetiza tudo quanto Guignard passa-nos a respeito da existência num morro, porque tudo ali está focalizado com verdade. A identidade entre esses dois artistas no desenho e no poema era tão grande, que até ficou parecendo, por magia alheia e independente de tempo, de matéria e de tudo mais quanto possa condicionar a vida, que os dois estavam ali juntos, a observar o morro, um brincando de desenhar e o outro brincando de poetar.

Algumas pessoas descem e outras sobem o morro, galinhas ciscam por ali, um burro sobe a ladeira… Eta vida besta, meu Deus!

Nota: G-706-Des-002–Favela Carioca, nssp, 28 X 18 cm, 1929

 

Guignard – PARQUE MUNICIPAL

Autoria de Lu Dias Carvalho

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Alberto da Veiga Guignard nasceu em Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, mas sua família mudou-se para a Alemanha, quando ele contava com onze anos de idade. Ali estudou, permanecendo na Europa até os 33 anos, quando então retornou a seu país em 1929, fixando-se na cidade do Rio de Janeiro.

Em 1944, o artista foi convidado pelo então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, para criar um curso de desenho e pintura no recém-criado Instituto de Belas-Artes. Aceito o convite, transferiu-se para a capital mineira. Foi amor à primeira vista pela cidade, para onde se mudou e adotou-a como sua. Passou a lecionar e dirigir o curso livre de desenho e pintura da Escola de Belas-Artes.

Segundo o crítico de arte Pierre Santos, “Guignard gostava de dar aulas em meio à paisagem, com os alunos pintando no Parque Municipal de Belo Horizonte, sob seu olhar atento.”. E foi esse parque que levou o artista a imortalizá-lo em suas belas pinturas, como a vista acima.

Na composição Parque Municipal fica evidente a pequenez do homem diante da pujança da natureza, aqui representada em diferentes tons de verde, amarelo e ocre. Grandes árvores elevam-se até à margem superior da tela, tornando as figuras humanas, que caminham pelas veredas, ainda mais diminutas. Ali estão homens, mulheres e crianças, brancos e negros, num total de vinte figuras, a usufruírem do frescor e da beleza do Parque Municipal de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais.

É possível imaginar o mestre Guignard pintando esta magnífica paisagem, rodeado de seus amados alunos. É uma pena que não seja mais esta a visão que teria, se neste planeta ainda estivesse, do parque belo-horizontino nos dias de hoje.

Ficha técnica
Ano:1940
Técnica: óleo sobre madeira
Dimensões: 31,6 x 44,5 cm
Localização: não encontrada

Fonte de pesquisa
Brazilian Art VII

Guignard – PAISAGEM DE MINAS

Autoria do Prof. Pierre Santos

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A composição Paisagem de Minas é uma das mais belas obras do artista brasileiro Alberto da Veiga Guignard. Submetamo-nos a uma análise, em profundidade, da pintura.

Onde se localizaria este belo panorama de Minas, pintado por Guignard em 1960? Acredito que se trata de um fundo da Fazenda Boa Vista, na cidade mineira de Belizário, onde ele esteve algumas vezes, e onde fez, pelo menos, três pinturas com temas da localidade. Mas o que importa mesmo é o fato de que possamos admirar esta paisagem infinita, tanto em sentido de amplidão quanto em sentido de captação dos ritmos da vida, que aí flui de maneira simples e comovente.

Tudo se passa numa quente manhã de domingo, o tempo mormacento meio abafado, com o sol escondido atrás das nuvens, e tanto, que não faz sombras. Algumas pessoas parecem dispostas a pegar a estrada que as leve à vila próxima, para assistirem à missa e passearem um pouco; a maioria, porém, prefere ficar ali mesmo, naquele espaço aberto, conversando e divertindo-se até a hora do almoço e, após ele, da merecida sesta, que as renove e prepare para a faina do dia seguinte. Vida simples, vida singela, sem grandes emoções e nada de imprevisível, mas feliz, sem contratempos, ali sorvida sempre em seu limite, nos parâmetros da simplicidade.

Tudo no quadro faz transitar a nossa atenção da direita para a esquerda, não só devido à intenção direcional dos figurantes, que aí aparecem, mas também devido ao fluxo composicional, que insistentemente indica este rumo. Por outro lado, o acúmulo de nuvens, os dois coqueiros, únicas árvores grandes que há naquele espaço, e as construções relativamente grandes, todas essas formas dispostas na faixa da direita, criam um campo muito intenso de peso, o que poderia deixar a composição desequilibrada. Entretanto, o pintor lançou mão de alguns recursos, que evitam a ameaça. Em primeiro lugar limitou o referido campo de peso a um terço de todo o espaço, exatamente o que fica ali à direita, e desenvolveu o restante do quadro nos outros dois terços, o que já alivia a possibilidade de desequilíbrio, mas ainda não resolve, dada a intensidade de peso da primeira zona. Para conseguir afinal o necessário equilíbrio, pintou nuvens mais pesadas à esquerda e, magicamente, pôs, bem ali no cantinho, um homem montado em seu burrico, de maneira bem nítida e maior, porque mais próximo de nós, à frente de uma touceira, o que completa o equilíbrio do quadro.

Os figurantes estão dispostos como se estivessem num desfile, pois acima de tudo interessava ao artista pintar a alegria e a singeleza, e captar o lento desenvolvimento, que também leva nossa visão da direita para a esquerda. Tudo começa com a família do capataz, ele de pé, um pouco aquém da porteira, de blusa clara e calça azul, tendo perto a mulher, quatro filhos e duas galinhas brancas em repouso na grama. À frente, quatro pessoas em grupo proseiam. Mais atrás, dois indivíduos de roupa branca observam. Um pouco adiante deles estão duas galinhas pretas e uma pensativa jovem de saia marrom e blusa vermelha. Ao seu lado, um homem de roupa clara, o qual, enquanto forma, é importantíssimo nesta composição, carrega um grande objeto amarelo-claro, que não sei identificar. À frente dele, uma galinha preta, um indivíduo com a mão esquerda no bolso do paletó escuro, o burro e seu montador em diagonal, o homem de camisa amarela e bermuda azul, outra galinha preta e, lá atrás, um indivíduo de calça azul e blusa esbranquiçada.

Na frente, um rapaz de roupa clara mexe numa geringonça, sem dúvida uma espécie de máquina usada na fazenda. Adiante e mais atrás estão dois grupos de pessoas, as três primeiras de branco, dispostas em ângulo com o vértice acima delas, e os outros três de amarelo-ocre, também em ângulo, com o vértice abaixo. Estas seis figuras estão postas propositadamente numa formação definida. Ao lado destes dois grupos, já no terminal da leitura do desfile, um homem de camisa escura e calça amarela segura alguma coisa com a mão esquerda, atrás de um peão, que cavalga o seu burrinho, cuja importância para o equilíbrio do quadro já foi realçada. Os únicos animais que aí aparecem são as seis galinhas e os dois burricos. Senti falta de pelo menos um cachorrinho.

Embora a disposição de todos os componentes pareça estar resolvida de maneira aleatória, assim não é. Todos os elementos do friso de seres vivos estão dispostos num longo e bem claro ziguezague (o que explica a formação das seis figuras quase ao fim do cortejo, atrás do último burro, acintosamente postas como uma das partes do referido ziguezague). O mestre lançou mão deste recurso para dar movimento ao desfile, em oposição ao todo daquela temática de paisagem parada no tempo, tranquila e despojada, beirando à monotonia não fora o conjunto de seres que a habitam, e tanto que, em decorrência da presença deles, certa aragem branca e fresca perpassa pela paisagem, humanizando-a, e nós até chegamos a senti-la.

O rapaz de roupa clara, que segura um objeto amarelo claro, é importante para a composição do quadro, sem o qual esta perderia seu eixo. Se traçarmos uma linha vertical, que divida o quadro ao meio, de alto a baixo, ela passará exatamente no meio de sua perna esquerda, o que mostra a centralização da figura, dividindo como um eixo a superfície em duas. Isso é tão flagrante, que treze figuras humanas aparecem aí antes dele, e mais treze, depois; isto nos mostra que, com ele, vinte e sete figurantes habitam esta paisagem, sendo ele o centro, o eixo, o fiel da balança. Guignard mostra-nos um céu carregado de nuvens, entre as quais o azul celeste transparece aqui e ali, escondendo o próprio sol, o que aumenta a sensação de calor e abafamento. Tal sensação se vê ampliada com o céu a ocupar quase dois terços da superfície pintada, o que aquece não só o tempo, mas também a bonomia das pessoas, que vão passando o tempo e divertindo-se e, para as quais tudo é alegria, sobretudo num dia de folga.

Quando o mestre postou seu cavalete perante este panorama e pôs-se a observá-lo, procurando captar todos os seus pormenores, já elaborando mentalmente a espécie de composição que empregaria, formalizando sua linguagem, queria registrá-lo, mas não como objetivo maior naquela oportunidade, como já lhe havia acontecido tantas vezes, quando pintava paisagens por si mesmas, mas sim como simples meio continente da felicidade que anima esses colonos em dias para eles especiais – porque seu verdadeiro propósito aí é evidenciar, aos nossos olhos, todo o bem-estar que as pessoas carregam dentro de si. Afinal, para além das coisas aparentes, existe aí algo que não se represente numa determinada forma, mas que está em toda a superfície pintada: a alegria da vida.

Ficha técnica
Alberto da Veiga Guignard
Paisagem de Minas, 1960, osm, 26 X 73 cm.

Guignard – SEU ENCANTO POR OURO PRETO

Autoria do Prof. Pierre Santos

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Guignard, quando esteve em Ouro Preto pela primeira vez, ficou embasbacado. Isso foi em 1942. Ele havia ganhado o Prêmio do Salão Nacional, no Rio de Janeiro, e veio conhecer Minas. Foi o poeta Manuel Bandeira que o aconselhou: “Vá pra Minas que tem tudo a ver com você.” Mário Silésio conta que eles chegaram à noite em Ouro Preto, após o dia inteiro de viagem. Guignard, cansado, não quis ver nada e foi dormir. No dia seguinte, acordou cedo e não sabia dizer uma palavra, maravilhado com o que via. Então exclamou: “É isso que eu procurei a vida inteira. Eu quero viver é aqui.”.

Muitos anos se passaram e foi nessa época turbulenta que Guignard mudou-se para Ouro Preto. A situação dele não era boa. Hélio Hermeto e Abílio Machado me procuraram para organizarmos a Fundação Guignard, em que assumi a secretaria, sob a presidência de Milton Campos. Pedro Aleixo emprestou sua casa, no bairro de Antônio Dias, para Guignard, que não tinha um tostão, morar até a Fundação adquirir um imóvel próprio. Quando faleceu, ele deixou uma conta bancária, que também havia recebido significativa contribuição da Fundação. Nós conseguimos doação de muito dinheiro, de várias firmas, do Estado, do Governo. Foi com esse dinheiro que foi adquirida a casa da Rua Conselheiro Quintiliano, em Ouro Preto.

Já se falava na criação de um Museu Guignard. Sim, ele participava e dizia: “Ah, uma salinha qualquer em algum museu está ótimo.” Ele se deixava levar. O que queria era apenas viver a poesia da sua pintura e nada mais. Era a única coisa que o interessava, era o seu objetivo. Vivia artisticamente, era um anjo andando nas ruas. E como tal foi embora.

Quando Guignard faleceu, apareceram alguns parentes e ganharam na justiça o direito de herança, quadros, imóvel, enfim, tudo o que a Fundação Guignard estaria organizando para um futuro memorial do artista. Não se pensou em um contrato que garantisse a ela o direito a esses bens. Às vezes eu me pergunto se a Fundação existiu. Houve o registro no cartório, o que lhe conferia caráter jurídico. Pessoas importantes do meio intelectual e artístico estiveram reunidas no dia da instalação e posse da Fundação, mas ficou impossível agregá-los posteriormente. As decisões eram tomadas por uma comissão pequena: o Hélio, o Abílio, eu e aqueles mais interessados.

A morte do Guignard não foi uma surpresa. De alguma forma já era esperada. O Santiago foi contra sua mudança para Ouro Preto e tinha razão quando afirmava: “Se ele sair da minha companhia, não vive seis meses”. Viveu um pouco mais, uns oito talvez. O Wilde tomava conta dele e ia a todos os bares da cidade pedir para não lhe venderem bebida. Mas como é que não iam vender um rabinho de galo – cinzano com uma pinguinha – que ele tanto gostava?

Ficha técnica
Artista: Alberto da Veiga Guignard
Obra: Paisagem de Ouro Preto
Ano: 1958
Técnica: óleo sobre painel
Dimensões: 42 x 50 cm
Localização: não encontrada