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Vidas Secas – ENCHENTE NO SERTÃO (15)

Autoria de Lu Dias Carvalho

cap baleia

A caatinga amareleceu e depois se avermelhou.
O gado encetou a secar coo pastio descarnado.
O pesadelo da seca tirava o sono das pessoas,
trazendo visões terríveis de tempos passados.

De repente, um bosquejo ligeiro tracejou no céu,
lá para as bandas da cabeceira do rio definhado.
Outros riscos surgiram mais ligeiros e brilhantes.
A trovoada roncou num cantarejo descontrolado.

A ventania ia arrancando sucupiras e imburanas.
Os relâmpagos riscavam a atmosfera com euforia.
A mãe ocultou-se na camarinha com os meninos,
tapando orelhas, enrolando-se nas cobertas finas.

A brutalidade do tempo findou-se repentinamente.
No escuro da noite rolavam nuvens cor de sangue.
A cheia levava consigo troncos e animais mortos.
Além dos juazeiros derreava o rumor da enchente.

O sertanejo estava prazenteiro com a tempestade.
As catingueiras encontravam-se todas submersas.
A espuma subia lambendo barrancos, desabando.
A água matava bichos, enchia grotas e várzeas.

O rio subia ladeira, já bem pertinho dos juazeiros.
As rezes abrigavam-se junto à parede da morada.
Os chocalhos do gado zuniam, sapos coaxavam.
Cheio de gosto batucava o coração do sertanejo.

As vacas engordariam coo pastio e dariam crias.
Ele cresceria verdoso e as árvores se enfeitariam.
As rezes se multiplicariam para riqueza do sertão,
e ele ficaria satisfeito junto a Baleia e sua família.

Logo aquela água iria se acabar – era o reverso.
Mas não era vantajoso ficar matutando no futuro,
não havia mais o medo da estiagem incontinente,
que aterrorizou a família durante tanto tempo.

O futuro seria deixado nas mãos do bom Deus,
de modo que bichos, terra, família e toda gente
desfrutasse da oferenda que ao sertão foi dada,
pois o sertão, por ora, não mais carecia d`água.

Vidas Secas – O INVERNO E OS RETIRANTES (14)

Autoria de Lu Dias Carvalho

cap baleia

A família estava em torno do fogo reunida:
Fabiano, o peão, sentado no pilão tombado,
Sinha Vitória com as suas pernas cruzadas,
os meninos deitados nas coxas da mãe e
Baleia olhando as cinzas com as brasas.

Estava um frio danado, de modo que o pai
impeliu os tições com a ponta da alpercata.
De quando em vez os meninos se mexiam.
O lume era fraco e só aquecia parte deles.
A outra parte recebia uma friagem danada.

Os pixotes não conseguiam pegar no sono.
O ar entrava pelas rachaduras das paredes
e pelas fendas da janela na noite friorenta.
Quando iam adormecer, arrepiavam-se, e
viravam-se de  lado na sonolência.

O menino mais velho, enregelado de frio,
foi pegar pra mãe uma braçada de lenha. Ela
mexeu as brasas coo cabo da quenga de coco,
arrumou com jeito as achas de angico molhado
entre as pedras, procurando logo acendê-las.

O pai ficou de quatro pés, soprou os carvões.
Uma fumaçada levantou, invadindo a cozinha.
Línguas de fogo subiam nas pedras, rápidas.
A família começou a tossir e enxugar os olhos.
Fabiano aqueceu no fogo as mãos calejadas.

A mãe agitava o abano pro fogo não apagar,
sustendo o fogo nos paus de angico molhado.
Marido e mulher falavam sem  se entenderem.
Os pixotes sentiam frio numa parte do corpo e
calor na outra, sem poder dormir, coitados.

O ar  entrava pelas rachas das paredes finas.
O menino mais velho, acomodou-se e dormiu
coo lado do corpo quente pelo calor do fogão
e o outro pelas nádegas quentes de sua mãe.
O casal arengava, esquentando as mãos.

Baleia olhava os carvões, esperando sua vez,
não podia dormir ainda. Cochilava de fazer dó.
Sinha Vitória inda ia retirar os carvões e cinza,
varrer o chão e se deitar na cama de varas. Os
guris deitariam na esteira, debaixo do caritó.

O dia todo Baleia espiava o bulício das pessoas,
queria saber de tudo pra aguentar o mau humor.
Ela precisava dormir e se libertar daquela vigília.
Tão logo o chão fosse varrido coa vassourinha,
iria se enroscar e adormecer no gostoso calor.

Vidas Secas – O GURI MAIS VELHO E O INFERNO (13)

Autoria de Lu Dias Carvalho

cap baleia

Ele nunca tinha ouvido falar em inferno.
Foi pedir informações à mãe que, distraída,
aludiu, vagamente, a certo lugar muito ruim.
Como o pixote requeresse mais explicações,
ela mexeu os ombros cansados, sem saída.

O pequeno saiu, foi à sala perguntar ao pai.
Primeiro, ficou o rodeando, meio acanhado,
até que criou coragem e arriscou a pergunta:
– Pai, o que é inferno? O que é inferno, pai?
Sem obter resposta, saiu murcho e cismado.

Voltou à cozinha, pendurou-se na saia da mãe.
– Como é o inferno, mãe? – inquiriu, sem atalho.
A mãe falou sobre espetos quentes e fogueiras.
Ficou mais esmiuçador coa instrução recebida.
– A senhora já viu? – quis saber o pirralho.

Sinha Vitória zangou-se com o filho insolente.
Deu-lhe um cocorote pra conter sua chateza.
O pixote saiu exaltado coa injustiça padecida,
sabia que aquilo não era motivo pra apanhar,
meteu-se enraivado debaixo das catingueiras.

Baleia, percebendo que as coisas não iam bem,
foi atrás de seu amigo e o encontrou chorando.
Fez tudo que podia pra diminuir-lhe o sofrimento:
pinoteou em volta, rodeou-o e balançou a cauda,
mostrando-lhe que era inútil seu procedimento.

O guri sentou-se, botou a cachorra nas pernas.
Pôs-se a lhe contar baixinho uma história, mas
seu bê-à-bá era minguado como o do papagaio.
Valia-se de brados e gestos para contar o caso.
Baleia respondia coa língua e o fino rabo.

Todos o tinham abandonado, menos a cadela,
o único ser vivente que lhe mostrava simpatia.
Ele queria só que aquela palavra virasse coisa.
E ficara vexado com o que a mãe lhe dissera.
Inferno – nome tão bonito tinha que ter valia.

Era verdade que não sabia como falar direito,
por isso, balbuciava expressões complicadas,
repetia sílabas, imitava as vozes dos animais,
som do vento, dos galhos chiando na caatinga,
mas não enxergava nisso nada de mais.

Ele tão somente tinha tido aquela boa ideia:
aprender e decorar uma palavra charmosa,
depois transmitiria ao irmão e à sua Baleia.
Sabia que por ser bicho, ficaria indiferente,
mas o irmão pasmaria e encheria de inveja.

Se a mãe tivesse ido ao inferno, tudo bem.
Só a arguiu porque ela estava bem disposta.
E ganhara um cocorote como convencimento.
Ele só queria saber o significado da palavra,
e não carecia de um coque como resposta.

Beijou o focinho úmido de Baleia e a embalou,
coa alma dando voltas ao redor da serra azul e
dos bancos rendados de espinhos da macambira.
Seu pai dizia que havia tocas de suçuaranas ali
e cabeças chatas de jararacas fazendo miras.

Esfregou as mãos, esgravatou as unhas sujas,
e pensou nas figurinhas largadas no barreiro,
mas veio junto a lembrança da palavra infeliz.
Queria afastar o espírito daquela  curiosidade,
e imaginou que nada tivesse acontecido.

Talvez Sinha Vitória dissesse a verdade, pensou.
O inferno devia ter muitas jararacas e suçuaranas,
as pessoas recebiam puxões de orelha, cocorotes
e pancadas com bainha de faca. Sentiu-se sozinho.
Pra que a mãe tinha lhe dito aquilo? Falta de sorte!

Examinou seus braços magruços e os dedos finos.
Pôs-se a fazer no chão seco desenhos misteriosos.
Continuou abraçando Baleia que pra não magoá-lo,
padecia, silenciosa, coo excesso de afago recebido
do menino mais velho, seu “mais grande” amigo.

Vidas Secas – O MENINO MAIS NOVO E O PAI (12)

Autoria de Lu Dias Carvalho

cap baleia

O guri mais novo, montado na porteira do curral,
torce as mãos com alegria e medo. Estica-se pra
ver as nuvens de poeira afumando as imburanas.
Ali vai seu herói domando o genioso animal.

O pai parece-lhe a figura mais distinta do mundo,
metido no couro, guarda peito, perneiras e gibão.
Atira-se na  sela, faz um redemoinho na caatinga.
Ele é seu ídolo e motivo de grande admiração.

Sinha Vitória marisca lêndeas no guri mais velho.
Baleia abre um olho, boceja e adormece outra vez.
O menino não se conforma com tanta indiferença,
depois daquela façanha que seu velho pai fez.

A querença pelo pai vai crescendo cada vez maior.
Até esquece os desentendimentos e suas rudezas.
Um prazimento efetivo enche-lhe a alma pequenina.
Ele é o mais valente dos vaqueiros da caatinga.

Apesar de temer seu pai, acerca-se dele devagar.
Esfrega-se nas  peneiras, tateia as asas do gibão.
Mas Fabiano, incauto, esquiva-se e anda pra sala,
onde se despoja de toda a sua riqueza de peão.

O menino mais novo sabe que carece de crescer,
tornar-se tão grande como seu guerreiro sertanejo.
Montar nos bichos e matar cabras a mão de pilão
e, na vasteza da caatinga, ser peão andejo.

Ficará taludo, usará uma faca de ponta na cintura,
deitará numa cama de vara como fazem seus pais,
calçará sapatos de couro, fumará cigarros de palha.
Aí sim, vai ser um vaqueiro bom até demais.

Vidas Secas – SINHA VITÓRIA E A CAMA NOVA (11)

Autoria de Lu Dias Carvalho

cap baleia

Acocorada junto às pedras que serviam de fogão,
com a saia de ramagens embutida entre as coxas,
soprava o fogo, com fumaça enfogando os olhos,
e limpava as lágrimas com as costas da mão.

Labaredas lambiam  achas de angico, amainavam.
Erguiam-se de novo, espalhando-se pelas pedras.
Sinha Vitória arribou o espinhaço, ajeitou o abano.
Havia amanhecido nos azeites, naquele sertão.

A cachorra cochilava sentindo o cheiro de comida.
Foi despertada por um banho lumioso de fagulhas.
Abandonou o lugar, temerosa de sapecar seu pelo.
Espiava faíscas se apagando sem tocar o chão.

À porta, olhou as folhas amarelas das catingueiras.
Deus não havia de deixar outra desgraça. Tinha fé.
Não queria pensar. No quintal molhou os craveiros.
Precisava agitar a cabeça, arranjar ocupação.

Comiam, engordavam, mas não tinham nada seus.
Viviam na graça de Deus. O patrão confiava neles.
Eram quase felizes. Queriam só uma cama, o catre
tinha um calombo grosso na ripa,  sem solução.

Queria era dormir numa cama de lastro de couro.
Fazia mais de um ano que falava nisso coo marido.
Ele até matutara com os cálculos, mas tudo errado,
tanto os feitos pro couro, quanto pra armação.

Fabiano amunhecara. Deitado na rede roncava alto.
Mulher é mesmo bicho difícil de entender, pensava.
E andava pra baixo e pra cima, querendo desabafar.
Queria  cama nova pra dormir como um cristão.

Ele disse pra economizar na roupa e no querosene.
Como? Se não acendiam nem candeeiros na casa?
Eles dois vestiam mal e as crianças andavam nuas.
Ele não tinha pela peça era mesmo estimação.

Sinha Vitória tinha certeza de um pensamento seu:
Não queria passar a vida toda dormindo em varas.
Ela se encolhendo num canto e o marido no outro,
e no meio um calombo machucando o coração.

(*) Capa de Floriano Teixeira, para edição brasileira, sem data, Ed. Record

Vidas Secas – O SERTANEJO E O DESEJO DE VINGAR (10)

Autoria de Lu Dias Carvalho

cap baleia

Por que eles buliam com um homem trabalhador?
Era um bruto, sabia, nunca havia aprendido nada.
Não sabia como dizer as coisas, por isso foi preso.
Mete-se gente na cadeia por uma coisa de nada?

Era por que ele não teve prumo pra  falar direito?
Que maldade fazia a rudeza dele pras pessoas?
Que culpa tinha de nascer, viver como um bruto,
se vivia como escravo, sem fazer mal nenhum?

A ideia cresceu em sua cabeça e partiu sem tino.
Assuntava. Existia somente agarrado aos bichos.
Nunca teve escolha. Nem conseguia se defender.
Pouco sabia da vida, pois nunca  recebeu ensino.

Devia ser assim mesmo. Cada um como Deus fez.
E ele, Fabiano, um bruto, não tinha saber no falar.
Às vezes dizia palavras bobas, só por embromação.
Mas nem conseguia saber o que levava no pensar.

Se pudesse, espancaria os marrentos dos soldados,
que maltratam as criaturas só pra seu aprazimento.
Só a família segurava-o pra não cometer um desar.
Por ela levaria até ferro quente igual boi no mourão.

O tira amarelo era um infeliz. Nem valia um tabefe.
Se pudesse, entraria num bando de cangaceiro, e
faria estrago nos que dirigiam o soldado descorado.
Não ficaria só um na face da Terra – no sementeiro.

Essa ideia apoquentava-lhe a cabeça a toda hora.
Mas havia sua mulher, os meninos e a cachorrinha.
Eram uns cambões pendidos no seu rude pescoço.
Deveria continuar a levá-los até o fim de seus dias.