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Vidas Secas – A PRISÃO DO RETIRANTE (9)

Autoria de Lu Dias Carvalho

cap baleia

Entretido coo diabo do jogo, deixou o tempo correr.
Chegaria à fazenda noite alta, cheio de aguardente.
Não achava coragem pra sair de debaixo do jatobá.
Aprumou-se depois tentando viajar na noite quente.

Desequilibrou-se por um empurrão e depois outro.
O soldado desafiava-o, com sua cara enferrujada.
Na caatinga, troava de galo, na rua só se reprimia.
O moço vexava-o ao sair da bodega sem despedir.

Plantou o salto da bota na alpercata do vaqueiro.
“Mole e quente é pé de gente” – chiou o sertanejo.
O soldado socalcou o pé com mais maldade ainda.
O vaqueiro fadigou e injuriou a mãe do malfazejo.

O amarelo apitou e o grupo rodeou o pé de jatobá.
O sertanejo marchou zonzo e foi jogado na cadeia.
Caiu de joelhos sem acusação e sem se defender.
Uma lambada de facão caiu-lhe nas costas – preia.

Por que tinham feito aquilo, não conseguia saber.
Era pessoa de bons costumes, nunca fora preso.
Aturdido, ele nem acreditava naquele flagelo atro.
Caíram em cima dele, como se fora um condenado.

Estava moído, depois de preso e surrado na bruta.
Apesar das machucaduras, balançava sua cabeça,
duvidando daquelas vicissitudes sem motivo algum.
Soldado mofino, escarro de gente, filho da puta.

Por causa de uma peste daquela, sem valia alguma,
maltratava-se um trabalhador e bom pai de família.
Estirou as pernas, firmou no muro as carnes doídas.
Foi pego de surpresa e por isso não dera explicação.

O amarelo confundira-o com outro, ele tinha certeza.
Estava acostumado com  as violências e as injustiças.
Aos amigos que dormiam no tronco já deu consolação:
“Tenha paciência. Apanhar do governo não é desfeita.”

O governo, coisa distante e perfeita, não podia falhar.
O amarelo jogava com os matutos e provocava depois.
O governo não poderia consentir essa brutal safadeza.
O assucedido os outros podiam depois por aí espalhar.

Mas ele, um abrutado, emudecia, não ia contar nada.
Só queria ir pra junto de Sinha Vitória e dos meninos,
botar o corpo moído de facão na velha cama de varas.
Sua cabeça pesada e ignorante  descambava sem tino.

(*) Capa de Floriano Teixeira, para edição brasileira, sem data, Ed. Record

Vidas Secas – ESGARAVATANDO UMA MENTIRA (8)

Autoria de Lu Dias Carvalho

cap baleia

Fabiano foi comprar sal, farinha, feijão, rapadura,
querosene e um corte de chita pra  Sinha Vitória.
Comprou tudo, menos o corte de fazenda, com
medo de ser logrado pelo comerciante do lugar.

Olhava os panos, regateava de olho na medida,
sem tirar o dinheiro da ponta do lenço sem alvura.
Foi procurar a bodega de Seu Inácio com o picuá,
querendo uma cachaça pra espantar a quentura.

Bebeu de um só trago, cuspiu e limpou os beiços.
Eis que um soldado amarelo bateu no seu ombro,
querendo jogar trinta e um, lá no fundo da botica.
Atentou no respeito à farda e obedeceu inseguro.

Só tinha feito obedecer na vida. Tinha muque e
sustância, mas jamais especulava, sujeitava-se.
Perdeu no jogo, e se ergueu puto e emburrado,
saiu trombudo, sem mesmo pra trás virar-se.

Ficou debaixo do jatobá, falando com Sinha Rita.
Matutava uma desculpa pra contar a Sinha Vitória.
Podia até inventar que roubaram o cobre da chita,
mas a ideia era fraca, faltava sabença pra mentira.

Não sabia explicar a  presença de Sinha Rita, ou
falar que o tinham pelado no trinta e um, ou contar
que o lenço das notas sumiu do bolso de seu gibão.
Sua mulher, bem atilada, notaria logo sua invenção.

Vidas Secas – O RETIRANTE E O PATRÃO (7)

Autoria de Lu Dias Carvalho

cap baleia

O sertanejo estava satisfeito. Arrumara-se na vida.
Chegara coa família morrendo à míngua, faminta.
Caíra toda ela estropiada, debaixo de um juazeiro,
depois se acomodara na casa erma, na desdita.

Aportara ali naquela vivença, desgraçada de sina,
mas agora podia esperar alegre um novo amanhã.
Apossara da casa, pois, não tinha onde cair morto.
Comera raiz de umbu e sementes de macunã.

Depois sobreveio a chuvarada enverdecendo tudo.
E com ela o patrão querendo o expulsar no atrito.
Fez-se de desentendido, oferecendo os préstimos,
resmungando, coçando os cotovelos, aflito.

O patrão aceitou o trabalho na fazenda revigorada.
Ali era vaqueiro. Não seria tirado como um embuá.
Produzira raízes naquela terra, nela estava fincado,
em meio aos mandacarus, xiquexiques e quipás.

Era forte como as plantas espinhosas da caatinga,
Turrão como  baraúnas, barrigudas e catingueiras.
Vaso ruim não quebra. Ele, a mulher, os dois guris
e Baleia estavam presos em terras alheias.

Entristeceu. Sentiu-se plantado em chão estranho.
Seu destino era correr mundo como judeu errante.
Era só um curumba,  vagabundo levado pela seca.
Jazia ali de passagem, querendo seguir adiante.

O seu novo patrão berrava sem carência alguma.
Só botava as botinas na terra pra achar tudo ruim.
Queria mesmo era mostrar sisudez e autoridade,
barregar que era o dono de tudo, o Caim.

Era era apenas um traste, sem grande serventia.
Estaria despedido, quando menos esperasse e
tudo ficaria pro novo vaqueiro que o sucederia.
Coa família, pro mundo ganharia o passe.

Olhou a caatinga esmarelida pela falta d`água.
Se a seca chegasse não ficaria fiapo veridente.
E ela chegaria com certeza. Sempre foi assim:
anos bons e anos ruins, tão somente.

A desgraça se avizinhava, tomava o caminho.
Estava seco em derredor e longe nos confins.
O patrão era seco também, exigente e ladrão.
Espinhoso como pé de mandacaru no sertão.

(*) Capa de Floriano Teixeira, para edição brasileira, sem data, Ed. Record

Vidas Secas – EU SOU UM BICHO! (6)

Autoria Lu Dias Carvalho

cap baleia (*)

Eu sou um velho bicho da caatinga,
esquecido pelo resto deste mundaréu.
Sou bicho tentando vencer dificuldades,
enquanto da seca me faço réu.

A vida nunca me ofereceu algo a mais.
Entoquei-me na vivência como um bicho.
Labuto distanciado dos outros homens,
e só me dou bem com os animais.

Meus pés feios só esmigalham espinhos,
não sentem mais o abrasamento da terra.
São patas de bichos da caatinga, nesta
agonia em que meu espírito erra.

Montado, agarro-me com o meu cavalo,
grudando-me nele como um carrapato.
Somos dois bichos enfrentando a seca,
sem rumo, sem dengo ou afeto.

Meu linguajar é monossilábico e gutural,
mas meu cavalo o entende muito bem.
Na conversa coas gentes sou um bruto,
uso o mesmo falar com os animais.

Sou de pouca conversa, mas aprecio as
palavras dificultosas dos grandes, meu,
Até copio algumas delas, em vão; elas
são inúteis pra um tabaréu como eu.

Dou-me muito bem com a ignorância.
Se aprendesse algo, queria saber mais.
Nunca ficaria jubiloso com pouco. Mas
nasci bicho, homem sem sabença.

O atilamento suscita respeito, mas, se
a desgraça  faz montaria nas costas,
todos se estrepam no mal. E aí não há
um lugar pra fugir, pois tudo é igual.

Eu sou matuto, um bicho de verdade.
Vivo escondido no mato como um tatu.
Sou como os bichos daquela caatinga,
não sairei da toca, eu sei, jamais.

Nunca andarei de cabeça levantada.
Sou como uma rês na fazenda alheia.
Serei sempre mandado pelos graúdos;
serei bicho, como foram meus pais.

(*) Capa de Floriano Teixeira, para edição brasileira, sem data, Ed. Record

Vidas Secas – A ESPERA PELA CHUVA (5)

 Autoria de Lu Dias Carvalho

cap baleia

O retirante olha as estrelas no firmamento.
Há poucas delas no céu, quiçá umas cinco.
Ali perto, a nuvem escurece o velho morro,
e o poente encoberta-se com muitos cirros.
Ele vigia de novo cheio de contentamento.

É preciso ter certeza de não estar sonhando.
A lua está cercada por um aréola cor de leite,
e sua sombra leitosa prossegue agraudando.
Os cirros acumulam-se e certamente choverá.
A caatinga reviverá com as águas chegando.

Uma viração tepente alastra-se feito catinga,
empuxando os xiquexiques e os mandacarus.
Uma palpitação diferente atinge tudo em volta.
Há um reviver de garranchos e folhas secas.
O presságio de chuva arrupia o solo nu.

Quando a chuva chegar ali, naquele “Saara”,
badalos de ossos animarão a tristeza, e irão
tilintar prazenteiros por todos os arrebaldes.
Os pixotes brincarão na terra e se espojarão
no chiqueiro de terra fofa das cabras.

As cores retornarão ao rosto de Sinha Vitória,
sua cara murcha e cheia de rugas reverdecerá,
as nádegas bambas e miúdas entronquecerão.
Ela suscitará a inveja de outras madamas, pois
vestirá saias de flores e ramas vistosas.

Quando a chuva chegar naquele chão iracundo,
a semente do gado retornará àquele árido curral,
a caatinga do sertão bruto ficará toda verdejante.
Ele será o vaqueiro pelejador da fazenda morta.
Não apenas isso – será o dono daquele mundo.

Vidas Secas – A CACHORRA, O PREÁ E A FAMÍLIA (4)

Autoria de Lu Dias Carvalho

cap baleia

Os retirantes perdidos no deserto queimado,
aferram-se à vida que se escorre coo tempo.
Somam juntos suas desgraças e os pavores,
pois, a existência pra eles é só tormento.

Um abraço afadigado aconchega o casal
debaixo dos molambos espalhados no chão,
mas resistem à fraqueza do desejo secreto,
apartando-se envergonhados na tribulação.

Não há ânimo pra tolerar de novo a luz dura
de mais um dia que não tardará a despontar,
mas não se pode miserar a crença animadora,
que afugenta a morte pra outra embocadura.

Os pixotes morgam. O casal inicia a madornar.
Baleia avizinha trazendo um preá nos dentes.
Arribam-se todos em contagioso aprazimento,
pois, a caça miúda mais um dia aliviará.

A mulher beija a cara sangrenta da cachorra,
que lambe seu sangue e se delicia coo agrado.
Não se perde dengues em tempos tão difíceis,
quando a morte em cada curva joga o dardo.

Os meninos apanham uma haste de alecrim,
pra mãe fazer o espeto do milagreiro achado.
Baleia olha tudo com olhos úmidos e tristes,
esperando, paciente, sua parte no butim.