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Vidas Secas – À SOMBRA DOS JUAZEIROS (3)

Autoria de Lu Dias Carvalho

cap baleia

Fabiano parecia o mártir da amargura.
Seus calcanhares trincados sangravam.
A embira das chinelas rasgava os dedos,
fazendo fundas e doídas rachaduras.

Acolá, viu o laivo dos juazeiros distantes,
porto de esperança pra ele e sua família.
Botou de lado a canseira e os ferimentos,
aligeirou o andar e esqueceu a fome.

Na dianteira da rota, viu um canto de cerca.
A família abandonou a margem do rio seco,
encarapitou na ladeira, beirando o cercado,
até chegar à sombra dos juazeiros.

Os guris arriaram-se como trouxas no chão;
Sinha Vitória encobriu-os com seus farrapos.
A cachorra Baleia enroscou-se com o maior,
e a sombra amainou a braba expiação.

Tudo ao redor estava morto pela estiagem.
Uma fazenda sem vida em total abandono:
casa, curral, pátio e o chiqueiro de cabras,
tudo arruinado, vazio e sem o dono.

O azulado do céu cegava  e endoidecia.
Sua tampa anilada baixava e escurecia,
só quebrada pelo vermelhão do poente,
e isso entrava noite e saía dia.

Vidas Secas – BALEIA E A MORTE DO PAPAGAIO (2)

Autoria de Lu Dias Carvalho
cap baleia

Sem o guri, a cachorra Baleia segue à frente,
encurvada, costelas à mostra, língua de fora.
Vez ou outra interrompe, esperando o grupo
retardado sob a capa do sol fremente.

Baleia nem mais dá conta dos seis viventes:
Sinha Vitória, Fabiano, o menino de colo, ela,
o outro garoto maiorzinho, seu companheiro,
e o papagaio morto na areia do rio quente.

A esgana apertara e inda nem sinal de comida
pra desgraçada família dos famintos retirantes.
Baleia comera pés e ossos do estimado amigo,
mas nenhum lembramento trazia disso.

Baleia apenas sentia uma confusa lembrança,
ao lançar seu olhar cansado nos pertences, e
não ver a miúda gaiola sobre o baú de folhas,
onde a ave equilibrava naquela andança.

Depois da parada, a família emudeceu de vez.
O papagaio pelo menos alegrava a caminhada.
Aboiava, tangendo gado sem vivência, gritava,
e arremedava Baleia na rispidez da marcha.

Vidas Secas – O ANJINHO (1)

Autoria de Lu Dias Carvalho

cap baleia

Afadigada e esfomeada a família caminhava,
após se resfolegar pelas areias do rio peco,
em desassossegada busca por uma sombra,
mas só havia galhos secos na caatinga rala.

Sinha Vitória coo filho escanchado no lombo,
menino mais velho e a cachorra Baleia atrás;
Fabiano, cambaio e coo aió a tiracolo, levava
cuia presa ao cinturão e espingarda no ombro.

Na praino vermelho, os juazeiros na vastidão
zombavam: abeiravam, recuavam e sumiam.
Caçada desesperada da família por sombra,
lasso, o guri mais velho aboletou-se no chão.

A caatinga salpicada por ossadas brancas,
urubus voando perto dos bichos moribundos.
Eles desencarnando de cansaço, sede e fome
no desalmado oritimbó do miserável mundo.

– Anda, condenado do diabo – gritou Fabiano.
Mas o guri no acomodamento fechou os olhos.
– Anda, excomungado –  gritou o pai enfezado.
O menino não se mexeu no seu padecimento.

Fabiano, irado, pensou em matar seu pixote.
O coração ia carregoso de desespero e ódio.
Queria incriminar alguém por sua desgraça.
A seca e a obstinação da criança o irritavam.

Poderia imolar a cria naquele descampado,
mas matutou nos urubus, ossadas e na seca.
Acochou-se e arrebanhou o petiz pelo pulso.
Não iria deixar o anjinho pros bichos do mato.

Entregou a velha espingarda a Sinha Vitória,
botou o filho no cangote, agaturrou os braços,
finos como cambitos, caídos sobre seu peito.
A viagem seguiu mais arrastada e silenciosa.

Caros amigos, tomei para mim uma tarefa quase impossível, que é contar Vidas Secas (Graciliano Ramos)a através de versos. Desculpem-me a pedantice, mas vou tentar.