Autoria de Lu Dias Carvalho
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir/ E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir/ E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir/ Deus lhe pague. (Chico Buarque)
O “homem de Deus” entrou na casa do operário com o intuito de “ganhar” sua alma para o Senhor. Há dias vinha andando pelas ruas daquele miserável mundo a fim de cumprir sua missão evangelizadora. Usava terno preto e camisa branca, sapato de couro engraxado e gravata de risca. Os óculos de aros finos contrastavam com o volumoso relógio no pulso. O corpo atarracado mostrava ser homem de garra no eito, quando o garfo empunhava. Pegou na mão do operário, de sua esquálida mulher e de seus cinco filhos. Durante mais de uma hora pregou sobre a salvação da alma, mas não a do corpo.
O operário falou-lhe, envergonhado, que o filho mais novo estava doente, precisando de remédio, e que pra comer só havia macarrão e pão dormido. O “homem de Deus” fez que não ouviu, e disse que era preciso agradecer pelos inúmeros benefícios recebidos, primeiramente ao Criador e depois ao patrão que lhe dava serviço. Cantou, louvou e partiu, sem se esquecer de convidar a família para a igreja e falar sobre as maravilhas do dízimo, pois “quanto mais se doa, mais se recebe”. O operário achou que talvez o “homem de Deus” tivesse razão. Talvez sua vida fosse tão penosa por falta de gratidão. E passou a agradecer: “Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir/ A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir/ Por me deixar respirar, por me deixar existir/ Deus lhe pague”.
O pobre homem matutava para não se esquecer de nada: “Pelo prazer de chorar e pelo ‘estamos aí’/ Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir/ Um crime pra comentar e um samba pra distrair/ Deus lhe pague”. Lembrou-se da praia, aonde ia uma vez a cada trimestre com a mulher e os filhos: “Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui” Achava que também deveria agradecer pela cópula feita às pressas: “O amor malfeito, depressa, fazer a barba e partir”. E também pelos programas dominicais: “Pelo domingo que é lindo, novela, missa, gibi/ Deus lhe pague”.
Enquanto se conduzia para o trabalho, o operário continuava a agradecer: “Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir/ Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir/ Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair/ Deus lhe pague”. E de volta, espremido num lotação e moído pelo cansaço, também agradeceu: “Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir/ Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir/ E pelo grito demente que nos ajuda a fugir/ Deus lhe pague”.
Ao chegar a casa, o filho que deixara doente e sem remédio estava morto. Ao vê-lo, tão mirradinho estendido sobre a cama, o operário agradeceu pela última vez: “Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir/ E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir/ E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir/ Deus lhe pague”. Depois disso, ele emudeceu para sempre!
Obs.: Ouça a música – DEUS LHE PAGUE
Nota: Criança Morta, obra de Candido Portinari
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É o dom de ambos os ícones, pensadores e desconformados, vem do Deus que faz gemidos inexprimíveis por nós, operários dessas iniquidades; entretanto, passageiras. Deus lhes pague, mentes brilhantes!
Ana Clara
Agradeço a sua presença e comentário. Volte mais vezes, será sempre um prazer recebê-la.
Abraços,
Lu
Lindo, Lu, você tem o dom. Deus lhe pague por este maravilhoso texto.
Chico
Chico
O dom é do seu xará, esse poeta sensível, que escreve coisas maravilhosas. É a minha fonte de inspiração.
Abraços,
Lu