Autoria deLu Dias Carvalho
O desejo de tomar álcool muitas vezes nasce da vontade de nos desligarmos das coisas que nos incomodam, e de não sermos capazes de vislumbrar uma saída em curto prazo, ainda mais quando se leva uma vida miserável, pior do que a de um bicho. Procura-se a todo custo amortecer a consciência, apagar qualquer contato com a realidade massacrante.
Ram Munda encontra-se no limite de suas possibilidades. Já não vê sentido algum na vida e no que faz. A depressão leva-o a sentir vontade de morrer. Não apenas vive na pele de um dalit, mas também na alma de um deles. Sua existência é inútil. Não é nada, e sabe que não tem valor algum. Sabe que é um miserável, e, que não pode escapar da sua condição de intocável. Sua vontade é a de embriagar-se, de modo a suportar a sua metamorfose. Agora entende o porquê de o alcoolismo ser tão comum entre os dalits. Percebe que o álcool sintético é feito de água, um pouco de álcool e detergente. As pessoas bebem-no de uma só vez. Algumas tapam o nariz e fecham os olhos. O objetivo e se embriagarem, fugirem da vida que levam.
Ao esmolar, ao longo de um trem, Ram Munda é detido por dois policiais com seus cães. Apesar da miséria extrema, a mendicância é proibida em 15 estados indianos. Absurdo! São previstos de seis meses a dois anos de prisão para quem não obedecer as normas, sendo acompanhado por um programa de reintegração. Mas os mendigos sempre burlam a lei. A fome fala mais alto. A lei não pode estar acima da luta pela vida.
Deitado na calçada, Ram Munda compara a sua vida de intocável com uma gota de água do Ganges. Nada a detém. É levado mesmo contra a vontade. É inútil se debater, pois será levado para o oceano, onde se fundirá com o universo. Aí sim, estará livre. Moscas carnívoras usam-no como pista de pouso. Elas sugam tanto o suor, quanto a carne. Enxotá-las, assim como viver, é um esforço inútil. Ele se pergunta se Buda também era incomodado por elas há mais de 2.000 anos, quando pregava por ali.
Perto de Ram Munda está assentado um sadhu ( o chamado “homem santo”, asceta). Benares atrai-os como moscas. Teoricamente, todo hindu pode se tornar um sadhu, mas eles, quase sempre, são recrutados entre os brâmanes. Embora tenham lhe dito sobre as penitências que todo “homem santo” faz, ele mesmo nunca viu um só deles praticar alguma. O sadhu acende um biri atrás do outro, pois, incompreensivelmente para o francês, também possui os seus desejos terrenos. Usa o fósforo do vizinho intocável. Mas não lhe oferece chá ou maçã que traz consigo. É avarento e egoísta.
Ram Munda acha que o hinduísmo torna as pessoas egoístas, pois é uma religião cruel, discriminadora e egocêntrica. Ignora a relação com o próximo. Exige o desapego na ação, mas exacerba o individualismo. Todo esforço feito deve redundar em prol da própria pessoa. E não é diferente com o sadhu que encontra em seu caminho. O hinduísmo é uma fé centrada no ego, por isso, ele passa a imaginar que a comiseração de Gandhi estivesse no seu lado cristão, encontrado na sua educação ocidental. O sadhu, ao contrário dos santos cristãos, não tem como meta servir o próximo. Procura salvar, apenas, a sua própria existência, sem jamais pensar nos outros.
Depois de mendigar, Ram Munda assenta-se num estrado, próximo a um pandit (título respeitoso destinado aos brâmanes), que, assentado feito Buda, abençoa os passantes. Ele pede ao falso dalit que não se sente ali, ou seja, perto de onde ele dá as suas bênçãos, para não ser contaminado. Nos ghats, os sacerdotes carregam incenso, potes de óleo, pedaços de coco e uma bandeja de couro com um pó vermelho para aplicar no rosto dos devotos, sob a forma do terceiro olho, o chamado olho do conhecimento. Conversam entre si animadamente, indiferentes à miséria, que se vê espalhada por todo o lugar.
Ram Munda, ao voltar para a estação, encontra um cadáver estendido na beira da calçada, com pernas e braços abertos. Em volta do pescoço tem dois colares de flores. Os passantes jogam moedas e notas sobre o corpo. Mas, antes que o leitor se entusiasme com tamanha generosidade, devo advertir que se trata de um cadáver de macaco, colocado ali por algum espertinho, para usufruir dos donativos feitos ao defunto. Se fosse o de um homem, seria totalmente ignorado e desprezado. Os macacos (na Índia há milhares deles, pardos e de traseiros vermelhos, morando nos telhados dos prédios de Benares), são tratados como deuses. O macaco é o símbolo do deus Hanuman. O rei dos macacos é aliado de Rama. Sua astúcia e força são invencíveis, voa pelos ares, é sábio, cura as doenças e é uma das divindades mais populares da Índia.
A competição entre os mendigos por locais, onde esmolar é execrável. Nem a miséria é capaz de uni-los. Vivem da caridade, mas são incapazes de ajudar uns aos outros, de amar o próximo. Ram Munda compreende que a miséria não aproxima os homens, mas torna-os animais. O instinto de sobrevivência fala mais alto. Fraternidade e compaixão são um luxo, não passível de existir ali. O papel sagrado do mendigo consiste em aceitar as esmolas. Seu dever não é partilhá-las, nem mesmo aceitar a presença de um concorrente. Assim pensam eles.
O Bhagavad- Gita (o evangelho hindu) deixa bem claro que: “Seu dever, mesmo que imperfeito, é preferível ao dever do outro, seja ele excepcional. Melhor é o fundamento em seu próprio dever, o dever do outro é fonte de perigo.”
A seguir o capítulo 11…
Nota: Imagem copiada de www.ehow.com/how_4577354_sadhus-india
Fonte de pesquisa:
Na Pele de um Dalit/ Marc Boulet/ Edit. Bertrnad Brasil
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