Autoria de Lúcio Escobar*
Em vários anos de conhecimento e estudo sobre a clínica psicanalítica, confesso impressionado que ainda não tinha visto um filme que explanasse com riqueza de detalhes os processos decorrentes da clínica psicanalítica. Utilizando a linguagem cinematográfica, Gabor Csupo, diretor da segunda adaptação para o cinema, deu vida a um clássico da literatura americana, da autora Katherine Paterson, Ponte para Terabítia (2007). Trata-se de um filme que fala sobre a amizade de Leslie Burke e Jesse Aarons, dois estudantes do quinto ano, que criam um bosque mágico, ao qual dão o nome de Terabítia, e onde vivem muitas aventuras. Esse filme é na realidade o relato extraordinário de um caso clínico, demonstrando, através de seu enredo de forma sintetizada, todo o processo analítico de crianças e adolescentes, iniciando-se na solicitação do tratamento, a autorização e início, as resistências, interpretações, direcionando-se para o reconhecimento pelo analisando do final da análise, rumo a uma postura mais segura e confiante diante das adversidades da vida. Todos aqueles que estiverem se dedicando ao estudo sério da psicanálise, irão poder observar os referidos processos de uma forma tocante, que os marcará profundamente, deixando claro o grande objetivo do tratamento, que é trazer novamente o brilho da vida e o potencial criativo, dando assim a possibilidade da continuação da existência de forma mais plena.
Para facilitar o entendimento do filme e a visualização dos processos, eu vou intercalar o enredo (EN) com as observações clínicas (OC) em itálico. É importante que o filme tenha sido assistido pelo menos uma vez, para que fique mais claro o entendimento.
(EN) – “Ponte para Terabítia” conta a história de Jesse Aarons, um garoto do interior dos Estados Unidos, muito tímido e solitário, que sofre “bullying” na escola, meio rejeitado pelo pai e o único garoto de uma família pobre de cinco filhos. May Belle, sua segunda irmã mais nova, parece ser a única pessoa que gosta dele.
(OC) – Jesse é um garoto com sérios problemas emocionais, que adoeceu devido a grande confusão e desorganização familiar, onde os pais, por focarem nos problemas financeiros e na sobrevivência vegetativa, estavam sempre ausentes emocionalmente. O pai severo está sempre cobrando dos filhos responsabilidades e ajudas nas tarefas da casa. A mãe, juntamente com o pai, está sempre cansada demais para prestar atenção em outra coisa que não o básico para a manutenção.
Timidez e solidão são os sintomas externos além do que hoje poderia ser diagnosticado como o famoso “déficit de atenção” que na realidade escondia outros problemas estruturais mais sérios, que tinham como causa principal a negação da subjetividade e da autoexpressão de Jesse que, perante o “bullyng” sofrido na escola, era sempre passiva, aceitando sem reclamar ou revidar as agressões sofridas, buscando a evitação das situações e, quando não podia, a fuga era sempre a melhor escolha. Desenvolveu por isso a habilidade de correr, sempre vencedor dessa modalidade de esporte, destacando-se como um momento raro em que se sentia bem, e quando se podia notar um resquício de prazer, mesmo por pouco tempo. Seu adoecimento não deixava que nem ao menos distinguisse no seu lar as pessoas que ligavam ou não para ele, sendo incapaz de demonstrar sentimentos. Gostava de desenhar, porém, seus desenhos eram ligados a figuras do fundo do mar, representando sua vida num mundo afastado das pessoas. Desenhava peixes e tubarões, porém seus desenhos não tinham um fundo, estavam isolados no papel, demonstrando a falta de contexto, as relações com o meio e as inter-relações.
(EN) – Leslie Burke era uma garota bem moderna, filha única de escritores, aos quais era muito ligada. Antes morava numa cidade grande, mas mudou-se para o campo e acabou vizinha de Jesse. Ela nunca assistira à televisão, pois seus pais achavam que tevê fazia mal ao cérebro.
(OC) – Leslie era uma garota que rompia com os padrões comuns, era autêntica, tinha uma imaginação ativa e herdara dos pais a habilidade da escrita. Possuía uma vida familiar saudável, com demonstração de afetos e valorização da expressão artística e autônoma. Não trazia a alienação legada pela televisão e era bem claro que sua vida não estava embutida na vida de seus pais ou vice-versa. Na trama, ela assume o papel do analista (domínio da linguagem do inconsciente), que após a solicitação de tratamento por parte de Jesse (momento em que ele, na corrida, defende-a, demonstrando interesse pela pessoa dela, que ele juga como possuidora do suposto saber, após ela demonstrar uma possibilidade de aproximação com seu mundo oceânico através de sua redação). Leslie então dá início a uma aproximação que tem como primeira resposta dele a recusa (quando não aperta a mão dela), demonstrando assim os processos de resistência à análise que estaria preste a iniciar.
(EN) – Jesse e Leslie tornam-se amigos próximos, embora ele não tenha gostado muito dela no começo (principalmente porque ela o venceu numa corrida). Essa amizade se formou pelo fato de ambos viverem bem próximos, e também por serem perseguidos pelos valentões da escola, Janice Avery e Gary Fulcher, considerados “esquisitos”.
(OC) – O início da amizade muito próxima simboliza o tratamento analítico, uma relação bem íntima, que vai trazer à tona seus medo e projeções inconscientes. Ela venceu a corrida e é colocada na posição de um suposto saber por ele.
(EN) – Leslie tinha uma imaginação muito fértil, e Jesse, uma grande paixão secreta por desenho. Com essas duas coisas, acabam criando Terabítia, uma terra apenas para eles dois, onde se nomearam rei e rainha, num bosque próximo à casa deles.
(OC) – Terabithia é o local “diferente”, como disse ela, um campo que não era a escola nem a casa dele ou dela. Era um local que simbolizava o “setting psicanalítico”, um reino onde tudo era possível, e onde o inconsciente de Jesse poderia se expressar sem rejeição, julgamentos ou perigos, um local onde os monstros poderiam surgir sem provocar tantos medos, um lugar apenas deles dois (a dupla analítica), onde se nomearam rei e rainha. Ela mostra pra ele que os dois juntos poderiam enfrentar os monstros simbólicos, nomeando-os e criando possibilidades de enfrentamento.
(EN) – Para chegar lá, Jesse e Leslie atravessam um pequeno riacho, numa corda bem grossa, pendurada numa árvore às margens do riacho. No Natal, ele dá para a amiga um cãozinho, a que ela dá o nome de Príncipe Terian (ou P.T.), para ajudá-los a lutar contra os “monstros” que querem roubar Terabítia deles.
(OC) – Para chegar nesse reino, Jesse e Leslie encontram um obstáculo que é um rio, ou seja, a divisão da consciência para um inconsciente por ele até então desconhecido. A corda, eu vou simbolizá-la como as ferramentas técnicas psicanalíticas, que depois daria lugar a uma ponte construída pelo próprio Jesse. Inicialmente, ele demonstra a angústia do início da análise e não consegue entrar no jogo da associação livre, sendo ajudado por Leslie, que inicia lhe emprestando significantes, trazendo-o para um jogo de imaginação. Inicialmente encontra resistências por parte dele, por ter prejudicada sua capacidade criativa e de simbolizar. Mas assim que ele vai se deixando conduzir, e vai cooperando com o processo, o tesouro do inconsciente começa a aparecer. Então surgem primeiramente os guerreiros amigos, que têm a função de ajudá-los, mostrando que ele não estará sozinho para essa missão.
Os monstros vão aparecendo, trazendo consigo traços dos personagens do enredo, onde se vê claramente que Jesse está simbolizando na análise sua situação problema na escola. Junto com Leslie e um cãozinho caçador de monstros, ele vai enfrentando os monstros sem mais evitar ou fugir. Diante de algumas situações na realidade, Leslie faz interpretações psicanalíticas, fazendo uma ponte (daí o nome do filme), ou seja, ensinando-o a construir essa ponte entre sua realidade e o seu mundo inconsciente, mostrando-lhe que assim como ele enfrentou os monstros em Terabítia, ele poderia enfrentar de forma criativa seus problemas.
(EN) – Jesse tem uma paixão platônica pela sua professora de música, Miss Edmunds, que adora os desenhos que ele faz. Um dia, ela o leva a um museu (ele nunca tinha estado em um antes), mas o desenhista não quis convidar Leslie, que resolve ir a Terabítia sozinha. Quando chega a casa, Jesse descobre que sua única e melhor amiga havia morrido afogada, ao atravessar o riacho, pois a corda rebentou-se e ela caiu – naquela época o riacho estava com as águas muito altas – desmaiando e afogando-se ao bater com a cabeça em uma das pedras.
(OC) – No início, a relação de Jesse com sua professora era simplesmente platônica, demonstrando a sua incapacidade e insegurança de aproximar-se do seu objeto de desejo e obter sua gratificação tão sonhada. Inicialmente, com a ajuda de Leslie, ele inicia as primeiras aproximações com a professora, enfrentando a timidez. Aos pouco vai ganhando confiança e começando a se arriscar. Quando aceita o convite da professora para ir a um museu, sem a autorização explícita dos pais (posicionamento autônomo), vai abandonando a posição passiva em relação ao pai, começando a expressar-se mais ativamente, o que é percebido pelo pai e não rechaçado.
Durante o filme é muito interessante ver como os diretores enfocaram bem as melhorias vitais em Jesse. O olho dele vai apresentando mais brilho, seus desenhos começam a representar suas vivências de forma mais completa, com um contexto. Começa a não mais aceitar as agressões na escola e ver com outros olhos as relações com as pessoas, que não são tão monstruosas como pareciam. Ele vai ao museu sem convidar Leslie, e isso mostra que já começa a se achar pronto para andar com as próprias pernas e lutar pelos seus objetivos. Demonstra mais confiança e maturidade, arrisca-se e começa a experimentar uma vida mais colorida. Vê que pode aprender as coisas de maneira diferente, com alegria, e não só como uma obrigação mórbida pela repressão paterna. Ele começa a desvincular-se da trama neurótica de sua família.
A morte de Leslie simboliza a necessidade de finalização do tratamento e que Jesse agora se encontra pronto para encarar a realidade de forma autônoma. No início com um pouco de angústia, passa depois a se sentir devedor, por não ter convidado sua amiga. Passado o luto da antiga condição, ele começa a se reerguer e construir a ponte, mostrando-se agora apto para amar e aceitar o amor de outras pessoas de forma madura. Sente que é hora de retribuir tudo isso ajudando sua irmã mais nova, levando-a para esse novo mundo, que agora, pela experiência vivida, já domina, deixando a posição de analisando para analista.
*Psicanalista Clínico e Didata, Membro da Sociedade Psicanalítica de Orientação Contemporânea Brasileira
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Uma análise fantástica. Obrigada por disponibilizar essa nova forma de olhar e pensar o filme “Ponte para Terabítia”.
Paula
Obrigada pela visita e comentário. Volte mais vezes.
Beijos,
Lu
Obrigada, Lu!
Olá gente, boa noite!
Estou precisando de ajuda, por favor me ajude na procura de uma lenda do Saci Pererê ou do Curupira.
Kellyane
Vá no Google e busque por LENDA DO SACI-PERERÊ ou então LENDA DO CURUPIRA.
Beijos,
Lu
Lúcio
Fiquei impressionada com a clareza de seu texto! Contribuições brilhantes! Assistirei ao filme!
Saudações fraternas
Marcela
Marcela
Fico feliz e grato pelo “brilhante”.
Outro abraço.
Lúcio,
Tenho sua permissão para compartilhar em minha rede social? É tocante! No aguardo!
Saudações fraternas!
Marcela Maria
Claro… Fique à vontade!
Lúcio,
Seu texto aborda de forma clara e interessante conceitos da psicanálise e sua relação com o cotidiano.
Muito bom! Vou rever o filme.
Glaucia
Glaucia
Fico feliz que o objetivo esteja sendo alcançado…
Obrigado!
Lúcio
Depois de ler sua brilhante explicação sobre o filme “Ponte para Terabítia”, é impossível deixar de assistir a ele ou mesmo revê-lo. A nós leigos é muitas vezes impossível adentrarmos na história, a ponto de penetrarmos nos meandros da trama e analisarmos viceralmente esse ou aquele personagem, dissecando-o psicanaliticamente falando. Contar com sua ajuda foi de grande valia, pois, além de dissecar o comportamento de Jesse, mostrou-nos que por detrás do comportamento desestruturado das pessoas existe um mundo praticamente fechado, ao qual poucos têm acesso, de modo que não podemos nos deixar ser levados apenas pela ponta do iceberg.
Também, meu caro amigo, brilhantes são as suas explicações clínicas, sem tecnicismo ou verborragia, capazes de levar ao entendimento as pessoas simples. Não resta dúvida de que, ao lermos seu texto sobre “Ponte para Terabítia”, saímos todos mais enriquecidos, pois realmente compreendemos aquilo que nos repassou. Que venham mais análises de filmes!
Abraços,
Lu
Fico feliz, amiga, pois essa é a ideia, fazer com que todos entendam e assim adquiram um novo olhar sobre o mundo e sobre as pessoas que é o mais importante. Quantas crianças sofrem trancadas dentro de si mesmas e sem poder contar com uma amizade iluminada como a de Leslie, e levam isso para a vida adulta com altíssimos custos. A psicanálise é minha verdadeira vocação e ajudar outras pessoas direta ou indiretamente, realmente me faz mais feliz.