Autoria de Lu Dias Carvalho
Apu não é severo, bruto ou cínico, mas um sincero e ingênuo idealista, mais motivado por vagos anseios do que por objetivos concretos. É o reflexo de uma sociedade que não coloca a ambição à frente de tudo, mas é filosófica, meditativa e otimista. (Roger Ebert)
Ao dirigir os três filmes que compõem a Trilogia de Apu, ficou claro que um dos grandes mestres do cinema humanista havia se apresentado ao mundo. Tratava-se de Satuajit Ray. (PK – Tudo sobre Cinema)
É incompreensível para todos nós que nutrimos um grande fascínio pela Índia, o fato de que três dos seus filmes mais premiados na Europa não tenham chegado até às nossas salas de cinema, pois é impossível não se emocionar com A Canção da Estrada, O Invencível e O Mundo de Apu, as mais cultuadas criações do cinema indiano, que compõem a famosíssima Trilogia de Apu.
Satuajit Ray (1921 – 1992) era apenas um ator mediano em Calcutá, sem contatos importantes e muito menos dinheiro, quando se entusiasmou com o romance clássico do escritor bengali Bibhutibhushan Bandyopadhyay, que narra a vida de Apu desde o seu nascimento até sua juventude. Nessa trajetória, o personagem passa os primeiros anos de sua vida num vilarejo rural, depois parte com a família para a cidade santa de Benares, estuda em Calcutá e continua sendo empurrado pela vida, que o coloca nas mais impensáveis e sofridas situações, apesar das muitas esperanças acalentadas.
Munido de criatividade e muita coragem, o cineasta Satuajit Ray decidiu adaptar o romance descrito acima para o cinema. Realidade ou não, a filmagem de A Canção da Estrada, primeiro filme da trilogia, foi muito especial. Dizem que Ray jamais havia dirigido uma cena, seu camaraman nunca havia filmado uma cena e a música era de um compositor que jamais trabalhara para o cinema. Por sua vez, os atores infantis nada sabiam sobre a arte da interpretação, e nem sequer foram testados para os papéis. Como diz o grande crítico de cinema, o norte-americano Roger Ebert, os atores dos três filmes foram todos forjados pela vida e adaptados aos personagens.
Não foi fácil para Satuajit Ray conseguir dinheiro para fazer seu primeiro filme. O empréstimo conseguido só foi suficiente para o início das filmagens. Sua esperança era a de que os patrocinadores, ao verem o material filmado, viessem a se interessar em financiar o restante. Sua batalha foi tamanha, que o filme levou quatro anos para ser concluído.
Com esses três filmes, Satuajit Ray conquistou todos os grandes prêmios do cinema em Cannes, Veneza, Berlim e Londres, criando um novo tipo de cinema na Índia, bem diferente dos filmes industriais com seus inacabáveis e sonolentos musicais. A trilogia, ao contrário dos filmes biográficos, não se foca em Apu, o biografado. Todos os demais personagens recebem o olhar sensível do diretor. Apu é o elo principal da família e da história.
Filmes que compõem a trilogia:
A Canção da Estrada (1950 a 1954) ? é considerado a obra-prima do cineasta. Conta a história de Apu, desde o nascimento até alguns anos de sua infância, vivendo com os pais, a irmã mais velha e uma tia (ou bisavó) idosa num remoto vilarejo rural de Bengala, na pobreza. Ele é um garotinho extremamente inteligente, capaz de observar tudo ao seu redor. Seus grandes olhos negros são como faróis sempre acesos. Nesse primeiro filme, são as mulheres que têm uma participação mais forte, incluindo as parentas da aldeia ancestral.
O pai de Apu é um pregador brâmane e poeta, que quase não permanece em casa. É um homem terno, mas muito sonhador. Encontra-se sempre cheio de novas ideias para melhorar a vida da família. Acredita piamente nas possibilidades de mudanças. A mãe, contudo, é realista e o baluarte da família. Ao contrário do esposo, tem os pés no chão e é a responsável pela sobrevivência de todos, assim como pelas dívidas contraídas. Através de seus grandes olhos amendoados é possível ver uma intensa solidão.
Quando esse filme foi mostrado no Festival de Cannes, provocou tripla emoção: a de ter sido o primeiro filme da cinematografia indiana a se colocar entre os melhores filmes já feitos em todo o mundo; por ser uma obra belíssima, capaz de encantar todas as plateias e pela certeza de que um grande diretor fazia a sua entrada no mundo da Sétima Arte.
Uma das cenas mais marcantes de A Canção da Estrada acontece, quando Apu e sua irmã Durga brigam, e ele sai atrás dela pelos campos. No caminho, fazem as pazes e continuam andando, afastando-se de casa, até que ouvem o barulho de um trem e veem a fumaça subindo ao céu. É a primeira vez que conhecem um trem. Um mundo totalmente diferente descortina-se diante dos dois garotos maravilhados.
Outra cena comovente dá-se, quando a mãe cuida de sua filha febril durante uma tempestade, temerosa de que o vento arranque a proteção do casebre e a chuva entre. Seus olhos parecem saltar do rosto, tamanha é sua aflição.
O Invencível (1956) ? é o segundo filme. Conta a história da família em Benares, onde o pai sobrevive fazendo pregações para os romeiros que vão tomar banho no rio Ganges. É também onde Apu trava contato com um mundo totalmente diferente daquele que deixara para trás. Por causa de uma tragédia na vida da família, Apu e a mãe vão morar com um parente numa zona rural. Fascinado pelos livros, ele acaba conquistando uma bolsa de estudos. Terá que optar entre deixar a mãe sozinha e deprimida, e seguir seus sonhos. A mãe reluta a princípio. Mas, apesar da tristeza e da solidão, acaba encorajando o filho a seguir seu caminho.
Uma cena marcante de O Invencível diz respeito à volta da mãe com o filho para o interior. E, depois, o lento afastamento que vai surgindo entre os dois. Apu vai passar as férias com a mãe, mas lhe dá pouca atenção. Está quase sempre dormindo ou lendo. Ele resolve partir antes do dia. Ela lhe pede para ficar mais um tempo, mas ele não a ouve. Vai para a estação de trens e de lá volta arrependido para casa, para ficar mais um dia.
O Mundo de Apu (1959) ? é o último filme da trilogia. É voltado para a vida de Apu que se casa, ganha um filho, mas depois tem o coração transpassado pela amargura e desesperança. Foge para a selva até que, ao receber a visita do amigo Pulu, resolve visitar o filho que ainda não conhece. O encontro entre os dois é uma luta entre a rejeição e o amor. E um dos sentimentos acabará vencendo.
Em O Mundo de Apu acontece a mais inusitada das cenas:
Apu, já estudante graduado, é convidado por seu grande amigo Pulu para o casório de sua prima. O dia do casamento fora escolhido de acordo com o mapa astrológico da garota. A família ainda não conhece o noivo. A cerimônia está prestes a começar, quando mãe e filha percebem que o noivo é amalucado. A mãe impede o casamento, mesmo contra a vontade do pai, pois, se a mocinha não se casar naquele dia, ficará amaldiçoada para sempre. Palu, desesperado com a sorte da prima, convence Apu a se casar com ela. Em resumo: ele deixou Calcutá para ir a uma festa de casamento e volta casado, para surpresa dos vizinhos.
Também não é possível deixar de citar o desempenho extraordinário de Chunibala Devi, responsável pelo papel da tia idosa (ou bisavó), totalmente encurvada e enrugada. Ela já havia sido atriz há muitas décadas antes. E, quando se iniciaram as filmagens de A Canção da Estrada (único filme do qual participa), estava com 80 anos e vivia num bordel. Ao ser procurada por Satuajit Ray, ela pensou que ele estivesse à cata de companhia. No filme ela não tem nenhum bem material, a não ser seus trapos, uma esteira e uma tigela. Mas nunca se mostra descontente ou desesperada. Ela apenas aceita a vida tal e qual ela lhe apresenta.
Ao contrário do que poderíamos imaginar, os três filmes que compõem a Trilogia de Apu não foram feitos na poderosa indústria de Bollywood, mas em Bengala, bem longe de Bombaim (ou Mumbai), famosa capital do cinema indiano.
Embora a Trilogia de Apu apresente-nos, à primeira vista, um mundo totalmente diferente do nosso, se olharmos com mais profundidade, perceberemos que a distância não é tão grande assim. Ele mostra o relacionamento entre pais e filhos, que contêm as mesmas verdades, em qualquer que seja a cultura: os pais sacrificam-se pelos filhos anos a fio, até que eles partem decididos, deixando-os para trás. Ou, assim que ascendem a uma condição cultural ou social melhor do que a dos pais, passam a negligenciá-los ou a lhes dar menos atenção. No segundo caso, temos os pais abandonados de filhos presentes. Os três filmes trazem um pouco de cada um de nós, neste mundo cheio de incertezas, em que as tragédias podem estar sempre à espreita.
Caros leitores, a Trilogia de Apu é uma das obras-primas do cinema mundial e que, incompreensivelmente, continua inédita nas três Américas, mesmo aparecendo entre os Cem Melhores Filmes da História do Cinema.
Fontes de Pesquisa:
Tudo sobre cinema/ Sextante
A Magia do Cinema/ Roger Ebert
1001 Filmes…
Wikipédia
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