Arquivo da categoria: Flagrantes da Vida Real

Casos do cotidiano

AS COINCIDÊNCIAS DA VIDA

Autoria do Dr. Ivan Large

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Acaba de entrar na minha sala uma menina de quinze anos acompanhada de sua mãe. As duas parecem muito abaladas. Pergunto o que está acontecendo. É a mãe, dona Filomena quem me responde:

– Doutor, o senhor não vai acreditar, mas acabamos de encontrar na sua sala de espera o pai desta menina.

– O meu pai, não, o seu ex-marido! – Interrompe a mocinha, gritando furiosamente.

Depois de acalmarem-se um pouco, elas me contam que Geraldo, o pai de Carolina, abandonou mãe e filha, quando a garota tinha apenas três anos de idade. Casou-se com outra mulher com quem formou uma nova família. Durante os doze anos que seguiram, nunca procurou encontrar-se com a Carolina, que não o conhecia ate aquele momento, quando dona Filomena levou um tremendo susto, ao vê-lo aparecer na minha sala de espera, enquanto ambas esperavam ser atendidas.

O fato de pessoas tão profundamente ligadas e separadas, desde tanto tempo, terem marcado uma consulta no mesmo horário e com o mesmo médico, parece-me uma coincidência pelo menos estranha. Isso me lembra outra coincidência, quando, alguns anos atrás, antes de abrir o meu próprio consultório, eu atendia meus pacientes, uma vez por semana, na clínica de um colega, em Belo Horizonte.

Uma noite, eu liguei para meu irmão no Haiti. No final da conversa, ele me contou que conheceu um brasileiro que havia ficado algum tempo no seu país, trabalhando como observador da OEA e, que por coincidência morava em Belo Horizonte. A fim de anotar o seu número de telefone fui buscar, correndo, uma caneta e uma folha de papel. Mas depois de desligar, percebi que, na minha preocupação em anotar corretamente o seu numero de telefone, não tinha prestado atenção ao seu nome. Eu tinha quase certeza de que ele se chamava Leandro. Só que eu estava errado. Na verdade era Leonardo.

Na mesma hora eu liguei para ele. Uma mulher atendeu-me. Perguntei por Leandro. Ela me respondeu que ali não tinha ninguém com esse nome. Pensei que talvez o número estivesse errado, pedi desculpas e desliguei. No dia seguinte fui atender na clínica. Quando a minha primeira paciente entrou, eu a cumprimentei. Ela notou, pelo meu sotaque, que eu era estrangeiro, e me perguntou de onde eu era.

– Do Haiti! – respondi-lhe

– Foi você quem me ligou ontem à noite? – indagou ela.

Na minha frente estava a mãe do Leonardo, a mulher com quem eu tinha conversado. Vocês podem chamar isso de coincidência ou será… Será que algum amigo secreto sabendo do meu erro, quis consertá-lo, e encontrou uma maneira inusitada de me fazer entrar em contato com o Leonardo? Será também que alguma pessoa escondida quis organizar um encontro inesperado entre o Geraldo e sua ex-família? Será? Sei lá…

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UMA PEDRA NO MEIO DA FELICIDADE

Autoria do Dr. Ivan Large

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Há mais ou menos três anos que esse casal de jovens vem regularmente me visitar de seis em seis meses. Antes disso, estudavam juntos na mesma escola. Ambos, com quinze anos de idade, Francisco e Bianca passavam a maior parte do tempo juntos, trocando às vezes, beijos apaixonados, sob o olhar invejoso de seus colegas. A ideia que temos da felicidade era a que passava a imagem dos dois andando de mãos dadas, olhando sorridentes para um futuro sem nuvens. Mas um dia tudo mudou. Um acontecimento inesperado iria provocar um verdadeiro terremoto na vida deles e na de suas famílias:

Uma amiga de Francisco, com quem ele teria mantido, no passado, relações um pouco mais que amigáveis, apresentou os sinais de uma doença que foi logo diagnosticada como “Síndrome de imunodeficiência adquirida” (SIDA). Francisco e Bianca foram levados pelos pais a um médico, que pediu alguns exames laboratoriais. Esses revelaram que, apesar de não apresentar a doença, ambos eram portadores do vírus responsável pela sua transmissão. Desde então, submetem-se periodicamente a rigorosos exames médicos incluindo o dos olhos.

Com o consentimento das duas famílias, resolveram casar-se sem mais esperar, como se quisessem juntar as suas mãos a fim de segurar com mais força uma felicidade que ameaçava escapar-lhes. Como de costume, entram juntos no meu consultório, de mãos dadas, com um pequeno sorriso nos lábios. Examino um de cada vez enquanto o outro assiste em silêncio. Durante o exame, fico dividido entre minha preocupação ditada pelo dever profissional de procurar implacavelmente o menor sinal revelador da aparição da doença e um imenso desejo, fruto de um sentimento de amizade escondido no fundo do meu coração, de não encontrá-lo.

O exame já acabou e, mais uma vez, eu posso ser o mensageiro da melhor das noticias. Naquele momento, o mais importante, o presente, eles não têm nada nos olhos que lhes impeça de serem felizes.

O jovem casal vai embora, de mãos dadas, um pequeno sorriso nos lábios e nossas vidas continuam.

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O PORCO, A MÃO E O APARELHO DE TEVÊ

Autoria do Dr. Ivan Large

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Depois do almoço, eu preciso descansar um pouco. Apago a luz da minha sala, coloco a cabeça entre os braços e apoio-os sobre a mesa. No silêncio do meu consultório, eu posso escutar as noticias saindo do meu rádio ligado no volume mais baixo. O assunto é indústria genética:

O repórter explica que uma das aplicações da clonagem é a reprodução de partes do corpo, a partir de células obtidas de um ser humano, e cultivadas em laboratório. Essas partes poderiam ser usadas como “peças de reposição” em caso da perda de uma orelha ou de um nariz, por exemplo. Recentemente, continua a reportagem, conseguiram produzir uma mão humana que foi implantada no pescoço de um porco. Mas a mão não conseguiu atingir um desenvolvimento neuromotor adequado. Decidiram então clonar, junto com a mão, um cérebro e um órgão dos sentidos. O olho foi o escolhido. Assim ficaria mais fácil estabelecer uma comunicação com a mão, a fim de treiná-la na execução das suas funções. A mão aprendeu a cumprimentar e mesmo a desenhar e a escrever. A televisão foi um recurso muito utilizado nesse treinamento. Foi com ajuda dela, por exemplo, que a mão aprendeu a linguagem dos surdos-mudos.

Mas uma noite, após a saída de todos os funcionários, a mão conseguiu abrir a porta da jaula onde o porco estava mantido preso, puxou o suíno pela coleira até o aparelho de TV, e ligou-o num canal de filmes pornográficos. Quando no dia seguinte, os funcionários chegaram ao laboratório, encontraram o porco morto de cansado. A mão tinha praticado nele, durante a noite toda, o que o olho estava assistindo. Agora são os funcionários que estão correndo dela. O clone ficou completamente tarado e só pensa “naquilo”.

“Socorro!” Sinto uma mão sobre meu ombro. Graças a Deus é minha secretária tentando me acordar, pois acabou de chegar um paciente.

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O OFTALMOLOGISTA, A CRIANÇA E PAPAI NOEL

Autoria do Dr. Ivan T. Large

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Os pensamentos cavalheirescos deste Dom Quixote são bruscamente interrompidos pela invasão barulhenta de um jovem bárbaro. Neste momento, a tranquilidade da minha sala de consultas está sendo ameaçada pelos olhos furibundos de um menino de quatro anos.

É o Bruno! Camisa aberta, ele expõe, sobre uma barriga proeminente, os restos de biscoitos da sua mais recente refeição, como um leão exibindo orgulhosamente sobre sua juba, os vestígios ensanguentados da sua última presa. Entra, arrastando a mãe como uma prisioneira submissa e resignada. Ocupa uma das cadeiras na frente da minha mesa, como se fosse o seu trono. Mas não fica sentado por muito tempo. E hora de tomar posse da minha sala. Conquistador vitorioso, vai de um canto ao outro, inventariando tudo que encontra no seu caminho, perguntando sem parar; “O que é isso? O que é isso?”

Entre uma interrupção e outra de nosso inquisidor, a mãe me explica que, desde que Bruno começou a frequentar o jardim de infância, reclama que não entende nada do que a professora (pobre professora!) escreve no quadro. É imperativa a realização de um exame oftalmológico minucioso. Mas, como explicar ao meu paciente que esse exame requer a sua colaboração, tão ocupado, que está neste exato momento, em revirar uma gaveta contendo, por acaso, alguns instrumentos de extrema delicadeza? Tentar acalmá-lo por argumentos lógicos seria pura ingenuidade.

Em vez de me aventurar pelas vias cartesianas, escolho os caminhos hedonísticos: preciso achar um jeito de canalizar esta energia transbordante e conduzi-la através das diversas etapas do exame, disfarçando-as em atividades lúdicas. Simples, não? Pego a minha vara mágica debaixo da minha mesa, pronuncio as palavras apropriadas ao encanto desejado. E pronto! A minha sala austera transforma-se num alegre parque de diversões. O exame em que, a fim de testar a visão de um olho de cada vez, eu preciso tampar o outro olho, vira uma engraçada brincadeira de pirata. Depois, Bruno segue alegremente com o olhar, um pequeno avião que eu faço voar na sua frente, descrevendo incríveis acrobacias. E lá se foi, numa boa, o exame dos movimentos oculares.

A minha lanterninha faz o papel de uma perigosa arma a raio laser, e o aparelho, munido de uma lâmpada, que eu coloco na minha cabeça para examinar o fundo do olho, é de fato o capacete de um poderoso herói de desenhos animados. Neste momento, Bruno está olhando dentro de um aparelho computadorizado, uma pequena casa vermelha no final de uma estrada. Esta casa tem o propósito de captar a atenção do examinando, a fim de manter o seu olhar fixo durante a realização do exame. A fim de aguçar o interesse dos mais jovens, eu costumo atribuir a possessão deste imóvel a diversos personagens como Chapeuzinho Vermelho, os Três Porquinhos ou a Bela Adormecida, dependendo do gosto literário do pequeno paciente, que fica esperando, apreensivo, a aparição do lobo mau ou da bruxa malvada, enquanto aproveito cinicamente para levar a termo o meu exame.

Como estamos na época do Natal, resolvo nomear a intenção do Bruno como sendo Papai Noel, proprietário da casa vermelha. A fim de ser bem convincente e sem medo do ridículo, imito, escondido atrás do aparelho, a risada característica do bom velhinho, O meu plano maquiavélico não poderia funcionar melhor, e posso constatar, pelo resultado, que já apareceu na tela, que o Bruno terá que usar óculos com grau elevado. Ainda dissimulado, decido então a imitar a suposta voz de Pai Noel.

– Meu pequeno Bruno, eu vou te trazer um par de óculos muito lindos para o Natal!

A oferta não parece agradar ao pequeno que, do outro lado do aparelho, começa a gritar furioso:

– Óculos, não! Óculos, não! O que eu quero é um trator!

Você tem razão, meu caro amigo, de reclamar com tanta veemência contra este Papai Noel enganador, contra este conto que não tem o final feliz esperado, e, que parece até querer imitar a vida real. Mesmo assim, eu te desejo um feliz Natal e espero que enxergues com olhos melhores, neste Ano Novo e nos numerosos outros que a vida te reserva, através destes óculos que eu te receito com todo o meu coração.

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O MENDIGO, A DOR E A MORTE

Autoria do Dr. Ivan Large

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Os ponteiros do relógio indicam que a minha jornada já terminou. A minha secretária confirma que eu não tenho mais pacientes para atender. Apronto-me para ir embora, mas no momento de trancar a porta da minha sala, eu o vejo aparecer. É um velhinho magro, todo enrugado, vestido com um terno sujo e rasgado, A miséria está impregnada nos seus traços e no seu vestuário.

Ele chega com a cabeça baixa, titubeando pelo corredor que dá acesso ao meu consultório. Segura com uma mão um saco de plástico, contendo todos os seus pertences, e com a outra aperta com força o seu olho direito. No rosto, uma expressão de dor que não deixa dúvida nenhuma – está procurando ajuda. Quando chega perto de mim, ele me olha com seu olho descoberto, sem falar, mas o seu olhar diz tudo, pois é como se gritasse por socorro.

Eu pergunto como eu poderia ajudá-lo. Em vez de resposta, emite um som incompreensível, uma espécie de grunhido, que me indica claramente que não adianta tentar comunicar-me com ele pela linguagem articulada ou outros meios estabelecidos pela sociedade civilizada. Ele não faz mais parte desta sociedade baseada na vida em família, no aconchego de um lar. Vive na solidão fria da rua, dorme numa esquina deserta, debaixo de um pedaço de papelão imundo.

Ele não faz mais parte desta sociedade, cujos filhos estudam, aprendem a falar mais de uma língua, a comunicar-se com o mundo através do celular ou computador. Faz tempo que não fala, e não tem ninguém com quem se comunicar. Não faz mais parte desta sociedade que se abastece no supermercado, frequenta restaurantes chiques e “shopping centers”, enquanto, para sobreviver, precisa disputar com alguns cachorros os restos de comida apodrecendo no lixo. Não faz mais parte desta sociedade, cujos membros mais perceptivos enxergam extraterrestres em seus OVNI, veem até aura em volta da gente, mas não o veem.

Eu abro novamente a porta da minha sala e o faço entrar. Quando tento examiná-lo, ele se recusa a tirar a mão da frente do olho. Tenho que puxá-la com força e segurar com firmeza as suas pálpebras. Com muita dificuldade, consigo expor o seu olho e, projetando um feixe de luz, descubro um corpo estranho, provavelmente metálico encravado na sua córnea (só Deus sabe desde quando). Com ajuda de uma pequena agulha, eu tiro com muito cuidado a causa do seu sofrimento. Instantaneamente, a dor estampada na face do meu paciente dá lugar a uma expressão de imensa surpresa, Com os olhos arregalados, parece procurar em todas as direções algum objeto misterioso, a sua dor, talvez. Menos de um segundo atrás, ele estava com uma dor insuportável, que o impedia de dormir e até de comer. E de repente, a dor some!

Para qualquer um com capacidade intelectual suficiente para entender o processo desta cura, o alívio resultante da retirada da causa do sofrimento não passaria de um fato completamente natural, suscetível de provocar sentimentos de felicidade e até de alegria, mas não de surpresa. Mas ele, vivendo enclausurado na mais profunda ignorância, tendo abdicado de sua capacidade de raciocínio, como um mecanismo inconsciente de defesa, numa tentativa desesperada de fugir de sua degradante existência, é incapaz de explicar essa mudança e só consegue constatá-la com surpresa.

É a ignorância gerando a surpresa. E nós, seres superiores, estaríamos completamente imunes a esse tipo de surpresa? Será que nenhum fato de maior importância poderia escapar a nossa insuperável capacidade de entendimento? Que tal um fato que todos tentam evitar, mas do qual ninguém conseguirá escapar? Que tal a morte? Não a do vizinho ou mesmo de um parente muito próximo, mas a nossa própria morte. Ou seriamos tão ignorantes sobre esse fato como qualquer vagabundo embrutecido?

Nós que fomos criados à imagem de Deus e recriamos Deus à nossa imagem. Nós que já andamos sobre a lua e pretendemos conquistar o universo! Nós que possuímos armas super potentes, capazes de destruir a Terra em poucos dias (apesar de não termos ainda os meios de reconstruí-la). Nós não poderíamos admitir que algum fato pudesse escapar ao nosso entendimento. Por isso, fizemos questão de explicar tudo, inclusive a morte que já foi amplamente estudada, e com um luxo impressionante de detalhes por todas as civilizações, religiões e filosofias que se sucederam desde o inicio da humanidade.

Longe de mim a pretensão de querer discutir sobre essas teorias. Gostaria apenas de relembrar as últimas palavras que foram atribuídas a Jesus no término da sua vida terrestre: “Eli, Eli lama sabbachtani?”, Essas quatro palavras foram traduzidas de diferentes maneiras, e essas traduções foram objeto de várias interpretações que geraram muitas polêmicas. Por isso, nem mencionarei os diversos sentidos atribuídos a elas. Limitar-me-ei a observar apenas o tom delas. E esse tom, na minha modesta opinião, parece ser de interrogação. Será que até o próprio filho de Deus, Ele que durante a sua vida respondeu a todas as perguntas, quando confrontado com a sua própria morte, como humano que ainda era, teria tido uma surpresa?

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DEUS, BUDA E O CAMINHO

Autoria do Dr. Ivan Large

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Três dos meus pacientes, entre cinquenta e sessenta anos de idade, procuraram-me. Paulo era motorista de ônibus. Manoel trabalhava na roça. Geraldo era advogado, funcionário público aposentado. Além da faixa etária, eles tinham outra coisa em comum: os três tinham um início de catarata.

Para Paulo, eu indiquei uma cirurgia, já que não conseguia mais lhe providenciar, com a ajuda de óculos, a visão perfeita que precisava para continuar exercendo a sua profissão. Ao Manoel, aconselhei esperar um pouco antes de operar, pois, como ele me havia dito, a catarata ainda não interferia nas suas atividades rotineiras. Quanto ao Geraldo, fiquei na dúvida e deixei que ele mesmo tomasse a decisão de realizar ou adiar a cirurgia. Apenas o orientei:

– Senhor Geraldo, se a sua catarata deixa-o infeliz, vamos tirá-la, mas, se ela não o incomoda, vamos deixá-la em paz, porque o mais importante é estar se sentindo bem.

Um autor brasileiro contemporâneo, muito famoso, conta em um dos seus livros que, num mesmo dia, três homens perguntaram a Buda se Deus existia. Ao primeiro, ele respondeu que sim; ao segundo respondeu que não; e ao terceiro que ele mesmo teria que decidir. Os discípulos, que estavam presentes, acharam um absurdo o Mestre ter dado três respostas diferentes para a mesma pergunta, ao que Buda explicou:

– São três pessoas diferentes, e cada uma se aproximará de Deus à sua maneira, ou seja, através da certeza, da negação e da dúvida.

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