Arquivo da categoria: Flagrantes da Vida Real

Casos do cotidiano

TRÊS FÁBULAS MAIS DO QUE IMORAIS

Autoria do Dr. Ivan T. Large

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1- Meu próximo paciente, Pedro Paulo, é advogado. Na sua consulta anterior, um ano atrás, havia me contado que estava estudando para um concurso para ser juiz. Eu indago do resultado. É com indignação que ele me conta que, após a prova, foi publicada uma lista com as notas obtidas pelos candidatos. Ele teve a grande satisfação de constatar que tinha conseguido, com a terceira melhor nota, uma das três vagas disponíveis.

Estava comemorando o seu sucesso, quando foi publicado um edital onde ele teve a desagradável surpresa de ver o nome de outro candidato aparecer no lugar do seu, na lista dos aprovados. Pensou que se tratava de um erro fácil de ser resolvido. Marcou uma reunião com o juiz responsável pela organização do concurso que, após escutar seus argumentos, respondeu-lhe simplesmente:

– Tudo bem. Então o que você pensa em fazer?

Como Pedro Paulo não conseguia entender o sentido desta réplica, o seu eminente interlocutor explicou-lhe friamente que não pretendia mudar o conteúdo do edital, que se Pedro Paulo não estivesse satisfeito, poderia recorrer judicialmente, mas que não tinha nenhuma chance de ganhar esta causa, já que o poder judiciário não perde na justiça, e, que nunca mais na sua vida conseguiria ser juiz. Completou, com um ar reconfortante, que se Pedro Paulo fosse bastante ajuizado para aceitar a decisão de seus futuros “colegas”, teria o prazer de ajudá-lo na ocasião do próximo concurso.

Moral da história: Só haverá justiça VERDADEIRA quando todos nós, inclusive os juízes, começarmos a acreditar nela.

2 – Durante a narração de Pedro Paulo, a temperatura da minha sala parece ter subido um pouco. Levanto-me para regular meu climatizador de ar. Isso me faz lembrar um fato que me contou Roger, um antigo paciente que consertava climatizadores.

Um dia, ele encontra publicada no jornal a licitação de uma repartição pública querendo contratar uma empresa especializada no conserto de climatizadores. Apesar de pouco interessado em fazer negócios com algum órgão do poder público por causa da sua fama de mau pagador, resolve, sem saber por que, mandar uma resposta, colocando, entretanto, um valor dez vezes superior à media dos preços praticados no mercado. E grande é a sua surpresa, dois dias depois, ao receber uma carta convidando-o para comparecer no dia seguinte à diretoria da tal repartição pública, onde é recebido pessoalmente pelo diretor geral:

“A sua proposta chamou nossa atenção. Recebemos dezenas de outras, mas comparando-as com a sua, podemos constatar que você é um verdadeiro “cara de pau”. Você é exatamente a pessoa que nós procurávamos, e estamos prontos a contratar sua empresa com uma condição: no final de cada mês, quando vier receber o seu cheque, no meu escritório, terá que me entregar, em mãos, a metade do seu valor em dinheiro vivo.”.

Roger calcula que mesmo tirando a propina de cinquenta por cento do valor do contrato, este continua superfaturado e aceita a oferta. E mais, uma rápida avaliação do sistema de climatização lhe permite constatar que sua tarefa será das mais fáceis, e, após uma semana de trabalho, ele não tem mais nada para fazer.

No final do mês e dos meses seguintes, ao receber o seu cheque das mãos do diretor, a quem ele entrega um envelope contendo o valor combinado, aproveita, a fim de justificar o seu gordo salário, para fazer uma revisão completamente inútil de um ou dois aparelhos.

Esta agradável rotina continua durante mais de um ano, até o dia em que, no momento de entrar na sala do diretor, Roger é avisado pela secretária, que o seu chefe havia sido demitido. Pego de surpresa, ele se prepara para voltar para trás quando a secretaria o avisa de que o novo diretor já esta informado dos detalhes da sua contratação e esta impaciente em recebê-lo.

Moral da história: O fato de demitir um corrupto não significa que o sistema que ele implantou acabará automaticamente.

3 – A terceira história aconteceu, alguns anos atrás, durante a minha residência em oftalmologia no Hospital do Estado do Haiti.

Um dia, eu recebo a ligação telefônica de um cirurgião plástico americano, de passagem no país, querendo conversar comigo. Nós nos encontramos na entrada do hotel, onde ele estava hospedado. Ricardo tem trinta anos, é de origem cubana e mora em Miami. Após os cumprimentos de costume, vai direto ao assunto:

“O motivo da minha viagem não tem nada a ver com medicina. O seu nome foi-me dado por um amigo comum, que acha que você poderia me ajudar a estabelecer alguns contatos necessários à realização do meu projeto. Preciso, antes de tudo, explicar-lhe que Republicanos e Democratas costumam alternar-se na maioria do congresso americano, já que o povo sempre fica insatisfeito com o partido no poder e, nas próximas eleições, acaba votando no outro partido. Atualmente, o Partido Republicano está em maioria no Congresso, e eu tenho um tio deputado membro desse partido. Você deve saber que os países do primeiro mundo têm muita dificuldade em livrar-se do seu lixo tóxico. O meu tio vai propor ao Congresso uma ajuda ao Haiti, para a construção de uma usina de alguns milhões de dólares, numa ilha deserta, situada ao norte do seu país. Na verdade, essa usina será apenas uma fachada para um depósito de lixo nuclear. Por isso, precisamos da permissão das autoridades políticas do seu país. Sua única participação nesse negócio consistirá em me colocar em contato com elas e, por sua ajuda, receberá uma pequena recompensa que lhe permitirá não precisar mais trabalhar pelo resto dos seus dias. Temos, entretanto, que nos apressar, já que, em menos de dois anos, o Partido Democrata assumirá a maioria no Congresso, no lugar dos Republicanos.”

Moral da história: A generosidade dos grandes esconde, às vezes, interesses escusos.

Nota: ilustração do autor

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A MENINA, VAN GOGH E A ARTE

Autoria de Geraldo Magela Cordeiro

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O vizinho encontra a menina no elevador:

– Está de férias, tem pintado (brincado) muito?
-Não!
-Mas, por que não tem pintado?
-Não tenho tinta!

 A menina entrou no humilde quartinho do pintor. Viu a cama simples, a cadeira e a mesinha com uma jarra de flores. Ao fundo, a janela aberta deixava entrar um ar fresco e doce. Ela até quis se sentar na cadeira dele. O pintor não estava lá, mas era possível perceber sua poderosa presença nos detalhes e cores da pintura.

Tudo não passava de um devaneio da menina que se imaginou entrando no quartinho humilde de Van Gogh, onde o artista produziu obras que ainda encantam o mundo. Ela vira o quadro na Escolinha e pode apreciá-lo com a professora de Arte, encantando-se, apesar de sua pouca idade.

Mostrei à menina, depois, uma cena do extraordinário filme “Sonhos”, do grande cineasta japonês Akira Kurosawa.  Nele existe um trecho mostrando um encontro entre o grande pintor holandês com um artista, quando Van Gogh mostra a enorme necessidade de pintar as luzes, a natureza e toda aquela beleza que sua grande alma enxergava em tudo que olhava. E a menina ficou extasiada, cheia de encantamento diante de tudo. Seus olhinhos curiosos pareciam absorver todas as cores.

A menina Giovanna tem pouco mais de 3 anos, mas já aprendeu a gostar de Arte nas aulas da Escolinha, o que nos leva à conclusão de que as crianças devem ser apresentadas à Arte desde cedo, para  começar a apreciar o belo, as maravilhas criadas por Deus e recriadas pelo Homem, pois a pintura, o desenho, a música, o ballet, a poesia, e todas as formas de Arte são estímulos de amor à natureza, às plantas, aos seres vivos e inanimados.

A Arte é o Amor em estado puro.

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A PARTIDA DE FUTEBOL MAIS LOUCA DO MUNDO

Autoria do Dr. Ivan T. Large

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Quando o meu próximo paciente entra na minha sala, já sei, pela camiseta que está exibindo orgulhosamente, que é um torcedor de um dos principais times de futebol da cidade. Ele me conta que, além de torcedor, jogava, quando era mais novo, nas divisões de base daquele time, junto com um dos seus primos. Ambos estudavam na época, na esperança de serem admitidos numa escola de eletrônica. O meu paciente, que era melhor aluno, foi aceito, enquanto seu primo, menos inteligente, não teve a mesma “sorte”. Reprovado na escola, a sua única opção profissional foi continuar jogando no time e, agora, ganha em um mês, como jogador de futebol, o que o meu paciente demoraria mais de cinco anos para economizar, trabalhando como técnico em eletrônica. É a vez do meu paciente, me perguntar:

– E no seu país, também se joga futebol?

– Não sei se ainda se joga, mas no tempo em que eu morava lá, era o único esporte que era praticado. – respondo-lhe – Inclusive há uma história muito maluca sobre uma partida de futebol acontecida lá, segundo contaram-me. Ei-la:

É uma linda manhã de verão, quando o destroier Americano “The Conquerer” joga a âncora no porto de Porto-príncipe. É uma manobra rotineira, executada uma vez por mês. Os tripulantes aprontam-se para desembarcar, a fim de efetuar a habitual tournée nos bordéis da cidade, quando uma visita inesperada vem quebrar esta tão agradável rotina.

O homem alto e elegante, vestido de um terno azul de poliéster brilhante, apesar do calor de quarenta graus, e os olhos escondidos atrás de óculos escuros, que acaba de subir a bordo, apresenta-se como emissário do secretário de esportes. Ele está trazendo um convite especial à tripulação do “The Conquerer” para participar de uma partida de futebol. O comandante, apesar de não estar nem um pouco interessado com a perspectiva de trocar as coxas aconchegantes das donzelas da boate “Copa Cabana” por uma bola cheia de ar, fica sem jeito de recusar tão amigável convite, que acaba aceitando com fingido entusiasmo.

Nessa época, o “nosso” futebol era praticamente desconhecido na terra do tio Sam, onde o famoso “football americano”, lá praticado, é na verdade o rugby. Por sorte, um dos marinheiros que havia nascido na Inglaterra, havia tido a oportunidade de jogar um pouco de futebol, quando criança, antes de mudar-se para os Estados Unidos, onde se tornou cidadão americano.

O iniciado é designado para acumular as funções de capitão e treinador do time, e encarregado de transmitir os seus conhecimentos “futebo1ísticos” aos onze escolhidos, reunidos às pressas. Ele tenta explicar as regras do jogo, de maneira sumária, ao time improvisado, enquanto os homens percorrem o trajeto que separa o porto do local do jogo, dentro do pequeno ônibus amigavelmente cedido pelos generosos anfitriões.

Durante o percurso, é impossível deixar de reparar nas faixas gigantescas, onde estão escritas as pa1avras: Haiti contra USA, atravessando as estreitas ruas, dos dois lados das quais, uma população agrupada grita palavras de ordem completamente incompreensíveis para eles. Entretanto, grande é a surpresa dos marinheiros, quando o ônibus estaciona em frente do Estádio Nacional de Futebol, onde estupefatos são avisados de que vão jogar contra a Se1eção Nacional de Futebol do Haiti. Entram, tremendo, num estádio completamente cheio, já que os portões da arquibancada haviam sido magnanimamente liberados para o povo pelo presidente vitalício da República, François Duvalier, o temido Papa Doc.

E lá está ele, o chefe supremo da nação, confortavelmente instalado no camarote presidencial, protegido por uma fachada de vidro blindado e guardado por seu exército pessoal, armado até os dentes. Em volta do patriarca, toda uma corte de cortesões disputa os olhares do mestre: ministros de Estado acompanhados de suas elegantes esposas, exibindo seus colares de diamante, membros do corpo diplomático, militares condecorados, redatores das colunas sociais dos mais bajuladores jornais do país, comerciantes milionários, sobreviventes da alta sociedade decadente e até mesmo religiosos. Ao lado do arcebispo da cidade, o núncio apostólico, representante oficial do Papa, adula o herdeiro do poder, o pequeno Jean Claude de sete anos, o futuro Baby Doc , sentado no seu colo. Esta importante ocupação não lhe permite reparar, lá em baixo, no campo, o “houngan” oficial do palácio, a maior autoridade da religião vodu do país, desenhando sinais cabalísticos, com um misterioso pó branco, nos quatro cantos do terreno, a fim de evitar qualquer imprevisto.

É hora de a seleção nacional fazer sua entrada triunfal no meio do campo, seguida da seleção adversária, recebida com vaias intermináveis. A assistência só se acalma com a chegada da banda de música do palácio nacional. Todos ficam de pé para entoar patrioticamente o hino nacional haitiano, que termina com aplausos frenéticos. Depois é a vez do hino americano, rapidamente balbuciado pelos marinheiros.

E o jogo começa. Quis dizer, o massacre. O primeiro gol da seleção acontece poucos segundos após o inicio do jogo e é seguido por muitos outros. O número de gols teria sido bem maior se os jogadores não desperdiçassem minutos preciosos para demonstrar a sua habilidade com dribles, embaixadas e principalmente passes humilhantes entre as pernas dos adversários. Tudo parece perfeito, quando o capitão do time estrangeiro aproveita o passe errado de um zagueiro e a distração do goleiro, ocupado em mandar beijos para algumas graciosas donzelas da arquibancada, para chutar a bola em direção à rede haitiana. Sob o olhar consternado do púb1ico, o time americano marca o seu primeiro gol. A plateia começa a demonstrar sinais de descontentamento. O próprio chefe de Estado joga um olhar furibundo ao seu “houngan” oficial, que levanta desesperadamente os ombros, como para dizer que não entende o que poderia ter dado de errado com o seu pó até então infalível.

Entretanto essa situação constrangedora dura pouco. O juiz, inteligentemente, marca impedimento e anula o gol americano, O autor do gol ameaça reclamar, mas é imediatamente expulso e deixa o campo, cabeça baixa, vaiado pelo público inteiro. O placar fica nulo do lado dos visitantes. A honra do povo haitiano está salva. O “houngan” respira, aliviado. Papa Doc deixa escapar um sorriso, enquanto pensa em recompensar o gesto heroico do valoroso árbitro.

Á noite, quando todos já estão em casa, a única estação de televisão do país interrompe a sua programação para apresentar o discurso do Presidente da República. Durante mais de uma hora, o chefe da nação elogia a se1eção nacional, agradece a ajuda da torcida, explica que esta vitória sobre a primeira nação do mundo demonstra a superioridade da raça haitiana, e, que só foi possibilitada pela ação do seu governo cuja perenidade, por tudo isso, é imprescindível, e, que qualquer um que não concordasse com esta afirmação não passaria de um traidor e, como tal ,receberia a punição que merece: de preferência a morte.

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A MORTE DA LOBA

Autoria do Dr. Ivan T. Large

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Pacientes com as mais diversas profissões sucedem-se na minha sala. O homem sentado agora à minha frente é professor de filosofia, como consta na sua ficha. Mas ele não esconde que tem outra profissão que não consta ne1a: artista transformista. Esse dualismo faz-me reviver uma noite remota, quando um velho professor experimentou o maior desapontamento da sua vida.

É uma noite quente. No canto de uma imensa sala, um potente alto-falante vomita, a todo volume, uma música em língua espanhola, no ritmo endiabrado de uma salsa. Ela conta a história de um sujeito, ao qual um médico teria dado apenas três meses de sobrevida por causa de uma doença incurável. Sem duvidar, nem um segundo, do inexorável prognóstico, nosso condenado resolve aproveitar os seus últimos dias da melhor maneira possível. Consegue nesse prazo, gastar agradavelmente todas as suas economias. No termo dos três meses, o “moribundo”, mais vivo que nunca e aparentemente cheio de saúde, a deduzir pela potência do seu timbre, mas na mais completa penúria, expressa o seu desespero neste refrão, onde interpela veementemente seu médico num tom reprovador: “Oh! Oh! Oh! Oh doutor!”

A infelicidade de nosso “epicurista” não parece muito preocupar um grupo de charmosas moças, a julgar pelo alegre rebolado executado em cadência e valorizado pela minissaia apertada, sob o olhar atento de clientes potenciais. A música alta, a luz pálida, o ar pesado, impregnado de um perfume ou para ser mais preciso de uma mistura de perfumes, a cara dos clientes, os seus olhares desabusados, a atitude debochada das moças insinuando-se no meio dos clientes sentados às mesas cambadas, cheias de garrafas vazias ao lado de copos sujos, onde moscas atrevidas vêm para descansar e saciar a sede. Todos esses ingredientes associam-se para compor um ambiente da mais pura decadência, digno das casas chamadas de “tolerância” ou simplesmente “bordéis”.

De repente, o ambiente muda. As poucas luzes da sala apagam-se, enquanto o foco de um projetor ilumina um palco, onde um apresentador anuncia que vai começar o espetáculo tão esperado da noite. Uma morena aparece, e começa a desabotoar lentamente o seu vestido de cetim vermelho, desvendando as suas formas apetitosas, ao som de uma música de Michael Jackson. Ao final da música, após livrar-se da última peça da sua roupa de baixo, um minúsculo tapa-sexo dourado, em forma de estrela, foge “pudicamente” da cena sob os aplausos frenéticos de uma plateia delirante.

O apresentador interrompe essa manifestação de entusiasmo, anunciando a próxima atração:

– Diretamente das maiores casas de espetáculo do mundo, única, maravilhosa, mirabolante artista de fama internacional: a Loba!

Parecendo mais faminta que famosa, o rosto emaciado recoberto por uma espessa camada de maquiagem, misturada com o suor, pingando em abundância, sob a luz forte do projetor, a Loba, que, na verdade, responde ao nome de batismo de George Gomes, vestida com um traje de noite mais brilhante que uma árvore de Natal, desfila lascivamente, sem despertar o menor interesse de um público vindo para admirar de preferência a sensual magia das formas femininas.

Quais sentimentos poderia um espetáculo de transformismo inspirar aos integrantes da conservadora sociedade afro-latino-americana haitiana dos anos oitenta? Curiosidade a alguns, piedade a outros, nojo e desprezo à maioria. Mas e esse homem? Sim, ele: esse pequeno velho vestido de um terno amarrotado e cerzido, segurando entre os dedos trêmulos, um pequeno copo de cachaça, a caminho dos seus lábios entreabertos de onde sai uma língua saburrenta, a fim de recolher a saliva que pinga no canto da sua boca, fixando, como hipnotizado, a aparição que o deixa ébrio de amor e de paixão? Paixão! Eu disse: paixão? Não pode ser possível!

Como mestre Damoclés Justo, respeitável professor de latim e grego no colégio estadual, homem pobre, mas digno, bêbado inveterado, mas defensor incondicional da moral e dos bons costumes poderia, contrariando as leis básicas da natureza, entregar-se a uma paixão homossexual? Todavia, nessa noite quente, nesse antro de perdição, sob os olhares incrédulos, zombadores, enojados, as evidências parecem contradizer a razão.

Mestre Damoclés é insensível a esses olhares. Não os vê! Insensível aos sarcasmos. Não os escuta! O calor do bordel não o incomoda. Não está num bordel! Está numa floresta encantada. Um vento fresco acaricia seu rosto. O perfume delicado dos jasmins enche agradavelmente suas narinas. Um castelo ergue-se na àfrente. Em cima do castelo, no meio de uma torre imponente, destaca-se uma pequena janela, onde a luz fraca de uma vela ilumina o tenro rosto de um ser que ele admira no silêncio da estrela das suas noites: a Loba, a mais sensual, linda, charmosa mu1her. O quê? A Loba ou mais precisamente George Gomes, uma mulher! Sim, pelo menos nos olhos de mestre Damoclés.

Os olhos de nosso acadêmico não têm mais a acuidade da sua juventude. Uma catarata por aqui, óculos escolhidos no tabuleiro de um vendedor ambulante, sem a devida prescrição de um oftalmologista por lá, sem contar o efeito da cachaça e pronto. A visão do nosso septuagenário não é das mais apuradas. E como a vista é a porta da imaginação, por essa porta defeituosa, a Loba havia penetrado sob a forma sedutora de uma Sofia Loren. E por mais incrível que pareça, nunca, mesmo nos seus escassos momentos de não embriaguez, mestre Damoclés Justo havia duvidado da feminilidade da sua Dulcinéia.

A Loba está no meio da sua performance: mexe sensualmente os lábios atrás de um microfone desligado, enquanto um alto-falante cospe uma música onde uma voz em “play-back” de mulher traída grita palavras de ódio contra o amante infiel. A nossa artista interpreta o papel de mulher raivosa com toda a força de seu coração. Parece um dragão furioso. Com o olhar em chamas, ela ergue um punho vingador na direção do público. Nesse exato momento, a sua abundante peruca negra havendo-se agarrado, por inadvertência, à sua pulseira, segue o movimento brusco do membro vingativo para descrever uma trajetória no ar que termina sobre a cabeça branca do professor apaixonado. Um delírio de gargalhadas levanta o público.

O mestre Damoclês fica mudo de estupefação. Os lábios trêmulos, vendo surgir, desesperado, a faces dura e careteira de um George Gomes, enquanto cai a máscara encantadora da Loba. Uma lágrima amarga escoa dos seus olhos cansados. A “sua” Loba está morta.

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O CAVALEIRO E O DRAGÃO

Autoria do Dr. Ivan T. Large

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“Só há uma maneira de matar os monstros, aceitá-los.” (Júlio Cortazar)

Dona Rosa nasceu na roça. Foi abandonada pelos pais. Não conheceu as alegrias da infância. Sobreviveu miseravelmente, trabalhando a vida toda como empregada doméstica. Nunca foi para escola. Hoje, com mais de cinquenta anos de idade, pode finalmente realizar o seu grande sonho: aprender a ler. Matriculou-se numa escola de alfabetização para adultos, mas não conseguia enxergar as letras do seu abecedário. Por isso, procurou um oftalmologista.

Sorte minha, eu fui o escolhido! Esses óculos que tenho o privilégio de receitar-lhe são para mim, mais valiosos que as mais resplandecentes coroas, que ornam as cabeças dos reis e das rainhas. Esses óculos, desprovidos de vaidade fútil, estão coroando uma vida de luta e sofrimento, uma vida digna e corajosa, uma vida que faz honra à verdadeira vida. Dona Rosa não sabe, mas quando lhe entrego, num movimento aparentemente rotineiro, a sua receita num simples pedaço de papel recoberto por minha horrorosa escrita, sinto-me muito mais importante que o próprio Arcebispo de Canterbury, depositando sobre a cabeça de um orgulhoso monarca uma coroa de ouro, cravada com as mais raras pedras preciosas.

A cerimônia de coroação da “rainha Rosa” durou pouco. Dona Rosa já saiu da minha sala e da minha imaginação, para voltar a sua vida sofrida, em alguma favela miserável da periferia, bem longe do luxo do palácio de Buckingham. No lugar de uma carruagem, terá que pegar um ônibus lotado, segurando, com medo de ser roubada, uma bolsa usada, onde está escondida uma coroa cheia de diamantes. Desculpe-me, quis dizer uma receita de óculos. Enquanto isso, dois outros olhos já estão na minha frente. Mas esses olhos não olham para mim. Parecem seguir algum ponto que está se balançando no teto. Na verdade, esses olhos não olham para nada. Há muitos anos que não enxergam mais. Sentado à minha frente, está um homem de 60 anos, com uma bengala branca nas mãos. É um cego. João é o seu nome. A razão da sua presença é apenas burocrática. Precisa de um relatório médico, atestando a sua deficiência visual, a fim de renovar o passe que lhe dá direito ao acesso gratuito aos ônibus.

Enquanto eu redijo o relatório, faço-lhe algumas perguntas. De boa vontade, João abre o livro de sua vida. As páginas passam rapidamente. João nasceu com problemas nos olhos. Apesar dos esforços dos médicos, com dez anos de idade, estava completamente cego. Atravessou a vida na mais total escuridão. Mas conseguiu superar as inúmeras dificuldades colocadas no seu caminho. Hoje é uma pessoa alegre e muito comunicativa. Músico e religioso, toca órgão numa igreja. Considera-se feliz. Reclama apenas de uma dor de coluna, que, às vezes, fica insuportável, e me revela:

– Se Deus aparecesse na minha frente e me pedisse para escolher entre a cura dos meus olhos e a da minha coluna, suplicaria que me livrasse, de preferência, desta danada dor nas costas, que me deixa às vezes completamente imobilizado, enquanto a minha cegueira, há muito tempo, não me impede de servi-lo.

Terminei o relatório, entreguei-o ao Seu João, que depois de despedir-se foi embora deixando-me perplexo. A cegueira à qual ele se referia e da qual parecia até fazer pouco caso, seria aquela que me foi sempre pintada como a pior de todas as calamidades, mal mais temido que a própria morte? Para você entender a razão da minha confusão, imagine um desses cavaleiros lendários dos tempos antigos cuja vida inteira foi consagrada a defender os fracos e oprimidos contra a fúria implacável do mais cruel de todos os dragões. E um belo dia, sem mais nem menos, recebe a visita do seu pior inimigo, acompanhado de uma de suas vitimas. Mas no lugar do monstro aterrorizador, jogando fogo pelas narinas, está um bicho manso, aparentemente domado por sua vítima, com quem parece ter uma relação quase amigável. Então o cavaleiro sente-se ridículo dentro de sua pesada armadura. Sua poderosa espada, fiel companheira de sempre, vira um inútil pedaço de vil metal, e ele faz a única coisa que poderia fazer nesse momento: pensar.

Nota: ilustração do autor

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A SAGA DE DOIS FRANCESES NA AMAZÔNIA

Autoria de Lu Dias Carvalho

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A Amazônia recebe pessoas das mais diferentes partes do mundo, que ao Brasil chegam para conhecer a exuberância de nossas fauna e flora. Portanto, não seria nenhuma surpresa saber que nessas terras aportaram dois franceses. Só que Claude Founier e Michel Alascoux são especiais, ainda mais ao juntarem-se a uma dupla brasileira para lá de amalucada: Robervaldo Glutão (engenheiro florestal) e Mestrino Sabença (veterinário e fotógrafo). O grupo perambulava de um igarapé-açu a outro, entre folhas e bichos, fazendo um documentário sobre as coisas da selva.

Claude e Michel são tão parecidos quanto uma arara e um tucano. O primeiro é de altura mediana, magro e comedido, aquilo que chamamos de indivíduo de fino trato, enquanto o segundo é um varapau, fumante inveterado, desorganizado e mão-de-vaca. Mas algo liga os dois amigos: o organismo fraco para as comilanças da região Norte deste nosso Brasil querido, onde nada o pato ao tucupi, a peixada de Tucanaré, a pescada paraense, o pirarucu de casca e a gurijuba, acompanhados de maniçoba e caruru. A infusão disso tudo no estômago “raffiné” dos “garçons français” só poderia incorrer numa coisa: caganeira. Desando que resultou em carreirinhas e corredeiras. Haja correntes e cachoeiras de piriri, numa soltura de ventre danada, a perfumar as matas amazônicas. Mas o relato desse episódio ficará mais para frente.

Robervaldo Glutão, brasileirinho da gema, ou melhor, da floresta, carrega, para onde quer que vá, um tanque à frente, conhecido como pança avantajada. Parece ter nascido antes da esculência. Detona quilos de chocolate, litros de cerveja e refrigerante. Ele e o francês Michel são um perigo ambulante, pois correm o risco de atear fogo na floresta Amazônica, com seus cigarros pestilentos. Na falta do pito, Glutão vira frieira. Come o que encontra pela frente, a ponto de comprometer o estoque dos “jeunes” franceses, já de olho grande na gastança, uma vez que custeiam a viagem. Mas o conhecimento do esgalamido, em relação à vida na floresta, compensa todo o quinhão gasto, sem falar nas muitas risadas que proporciona ao grupo de aventureiros.

Outro personagem inusitado é Mestrino Sabença, o sabe-tudo, que, na falta de um médico, raizeiro, curandeiro ou pajé, tomou sob sua custódia os três animais humanos. Nada há entre o céu e a terra que não passe sobre sua jurisdição. Queria, inclusive, mudar o roteiro da filmagem em andamento. Os cineastas tiveram que ameaçar jogá-lo no meio de um bando de jacarés, a fim de que contivesse sua sapiência. Mas é esperto no quesito alimentação. Levou para a viagem 20 quilos de castanha-do-pará e 10 de ameixa, com receio de ficarem perdidos na selva. Também esperava encontrar algumas espécies de animais, como a surucucu-pico-de-jaca, venenosíssima. Sua maior preocupação, contudo, era a pintura do cabelo, que começava a desbotar. Queria saber do mateiro que planta era boa para pintar seus cachos, ainda que fossem apenas os mosquitos a usá-los como campo de pouso, naquele local tão distante da dita civilização.

As entrevistas eram motivo para uma briga de foice entre Glutão e Sabença, sempre disputando os holofotes. A equipe de filmagem ficava embasbacada sem saber a quem ouvir. E o tempo escorrendo euros pelos igarapés-açus e mirins, com os franceses a arrancar os cabelos de preocupação. Mas, como o primeiro não falava francês, Mestrino foi servir de intérprete, para o deslumbramento de seu ego inflado, porém, ao descobrir que não aparecia na filmagem, virou uma arara. Ficou tão abespinhado, que, ao atravessar um igarapé com areia movediça, deixou seus óculos caírem nas águas. Queria mergulhar atrás, mas foi detido por Claude Founier, uma boa alma. Sem enxergar um palmo à frente,  fotografava a esmo, pedindo ajuda para os detalhes, e atrapalhando ainda mais a filmagem, deixando os gringos emputecidos. O grupo de abilolados seguia avante pela floresta, quando Sabença fez um colar com o cipó “titica”, para colocar no pescoço, sendo avisado por Glutão, que conhece a selva como a palma da mão, que seria degolado na primeira passagem de uma “cacaia” (amontoado de galhos e cipós de uma árvore caída no caminho).

Vamos à caganeira:

Os cineastas franceses, Claude e Michel, eram aguardados para concluir um documentário, cuja história deveria acontecer no coração da floresta Amazônica. Os dois, embora marinheiros de primeira viagem, estavam ansiosos por aventuras, coisa que não falta nas bandas de cá. Após uma longa viagem de navio, saindo de Belém/PA, o grupo chegou à cidadezinha de Portel, e foi pernoitar numa hospedagem sem gerente, sem toalha e outras coisinhas mais. No quarto só havia um beliche de duas camas e uma cama de casal. Aperreados pela fome, guardaram os apetrechos e foram comer. Tudo teria terminado bem, se os girolas não tivessem enfiado a cara na peixada amarela com camarão, feita com óleo de dendê e pimenta-do-pará, para desventura dos incautos franceses.

Diante do primeiro sinal de dor de barriga de uma das “victimes”, Glutão, para fugir da anunciada “cagança”, que estava a caminho, justificou que não falava francês, portanto, iria para outro quarto, a fim de deixar o trio à vontade, enquanto Mestrino parolava em “français”, sob a fragrância das ventosidades Chanel nº 2, embora até aquele momento a diarreia dos dois estranjas estivesse contida por seus remédios. Mas os intestinos de “primeiro mundo” não aguentaram por muito tempo. Rugiram e entraram em ebulição. O piriri veio com força total, mais estrondoso do que a pororoca e mais caudaloso do que o rio Amazonas. E haja sulfas, hidratantes, reconstituintes de flora intestinal e controle dietético. Até a possibilidade de usar carvão de churrasco e de chamar um pajé foi aventada. Mas Glutão prometeu curar o canudo-de-pito dos franceses, assim que chegassem à selva, usando a farmacopeia local de um amigo mateiro.

O cineasta Claude Founier teve um pouco de alívio, mas, ainda febril, resolveu, a despeito da orientação veterinária, filmar a apresentação de Robervaldo. Posicionou-se no centro da sala e ficou aguardando o dito, que, por ironia do destino, era o último a apresentar-se. Enquanto isso, o calor foi aumentando, aumentando, e o francês amarelando, esbranquiçando e fraquejando. Mestrino correu para prestar socorro à vítima já desfalecida, levando-a para fora da sala, oportunidade em que lhe meteu três tapas na cara para recuperar a consciência, ou quiçá vingar-se, ao saber que ficaria de fora da filmagem, naquela etapa.

Michel foi chamado para ocupar o lugar do entibiado, já que repousava no hotel e sentia-se um pouco melhor. A seguir, foi pedida uma ambulância para socorrer o francês do destempero diarreico, o que abaixou a autoestima do veterinário, com seus suprimentos médicos, e do engenheiro, com suas raízes. O fato é que com o soro recebido e a incansável dedicação de Sabença, que queria provar que gente é igual a bicho, os gringos melhoraram e a partida para o coração da floresta Amazônica ocorreu na tarde seguinte.

Desde o início da viagem, Michel falava sobre a compra de um guarda-chuva para proteger o seu valioso equipamento de filmagem. Mas disso só se lembrou ao chegar a Portel, onde comprou uma sobrinha coreana. Pasmem! Já na trilha, após uma hora de caminhada na floresta, o atrapalhado lembrou-se da guardiã dos equipamentos. Contrariando a todos os pedidos, voltaram os franceses para apanhar a preciosidade. Passaram a mantê-la sempre aberta. Mas em conversa com João Mateiro, morador da floresta, esse informou sobre a presença de muitas onças por ali. Sabença, por sua vez, disse aos coitados visitantes que na presença de onça nunca deveriam correr, e, que a sobrinha aberta seria a arma mais eficaz, pois os felídeos daquelas paragens nunca viram uma, e assustar-se-iam com a mesma. Daí em diante os franceses não largavam a “parapluie”, disputando-a como proteção, até que a esqueceram em um local, onde pararam para descansar. Para amedrontar os coitados, Robervaldo Glutão e Mestrino Sabença passaram o resto da viagem gritando:

– Olhem a onça!

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