Autoria de Lu Dias Carvalho
A machinha A Banda revivia a pureza de espírito das cidades do interior nos anos 30. (Zuza Homem de Mello)
A moderna moda de viola Disparada pintava com cores nunca antes percebidas a vida de um boiadeiro. (Zuza Homem de Mello)
O júri pode decidir o que quiser. Eu não quero levar esse prêmio sozinho. Se a A Banda for a primeira, eu devolvo o prêmio em público. (Chico Buarque)
O Festival reconduziu a canção brasileira ao único lugar de onde pode sair e para onde deve ir: o povo, a rua. (Franco Paulino)
Para o II Festival da TV Record, em 1966, 36 canções foram selecionadas, saídas das 2.635 inscritas. Elas seriam apresentadas em três eliminatórias mediante sorteio. Em cada envelope constava o nome da canção, dos autores e o do cantor ou cantora que iria defender a canção sorteada. Os responsáveis pela escolha das 36 canções concorrentes desconheciam seus autores, de modo a não favorecer nenhum conhecido. Os envelopes não traziam nomes. Mesmo assim, o compositor Adoniran Barbosa cometeu uma indiscrição ao dizer para Raul Duarte, um dos responsáveis pela escolha, qual era o nome de sua música inscrita. Chateado, Raul Duarte respondeu-lhe que não deveria ter feito aquilo, comprometendo-o na sua escolha. E que iria alegar suspeição para não votar na sua canção. E assim o fez. A canção de Adoniran não entrou nem no rol das 36 escolhidas. De fora também ficaram nomes importantes da música brasileira. Zé Kétti, que chegou a inscrever 16 canções, teve apenas uma selecionada.
Disparada de Geraldo Vandré e Théo de Barros, defendida por Jair Rodrigues, acompanhada pelo Trio Marayá e pelo Trio Novo foi a música mais aclamada na primeira eliminatória. Ela trazia duas novidades em seu arranjo: o uso de uma queixada de boi, que dava a impressão de um som de chicotada e o som da viola caipira. A entrada de Jair no palco pegou o público de surpresa. Quando iniciou a canção toda a plateia ficou em silêncio. Jair que era muito brincalhão ao apresentar samba, cantou toda a música totalmente sério. Foi muito aplaudido. Ele parecia ter nascido para cantar aquela canção. Roberto Carlos defendeu Anoiteceu, de Francis Hime e Vinicius de Moraes, ficando indignado por não se encontrar entre as quatro classificadas.
Na segunda eliminatória, A Banda, de Chico Buarque, defendida por Nara Leão, ficou entre as quatro classificadas. Como Nara tivesse uma voz muito fraquinha, sendo pouco ouvida na primeira eliminatória, foi sugerido a Chico que cantasse junto com ela da seguinte forma: ele cantaria a música toda, acompanhado pelo violão e Nara repeti-la-ia depois, acompanhada pela bandinha. Chico Buarque assim o fez, mesmo a contragosto, o que deu certo, aumentando o número daqueles que torciam pela canção. Até então Chico era visto como um cantor de “músicas de protesto”. Para o festival, ele procurou fazer uma música mais leve, que fugisse a esse lugar comum.
Na terceira eliminatória, já estava claro que nenhuma das outras classificadas tinha força suficiente para disputar com A Banda e Disparada. Elas já eram cantadas em todo o país, numa disputa acirrada, movida por muitas apostas, como num jogo de futebol.
A final do festival transformou-se num acontecimento especial na história da MPB, onde disputavam as canções A Banda e Disparada, parando cinemas, teatro e o país. Todo mundo queria assistir à final. O país dividiu-se, esperando o resultado. Disparada foi a primeira música sorteada, abrindo a última fase do festival. Ao final, metade da plateia gritava “Já ganhou!”. Quando foi a vez da apresentação de A Banda o clima foi o mesmo. A plateia estava dividida. A tensão pairava no ar.
Entre os membros do júri o clima era tão tenso quanto na plateia. O resultado foi de 7 x 5, consagrando A Banda como a campeã. Ao tomar conhecimento de que sua canção seria a vencedora, Chico Buarque mandou um recado para o júri, dizendo que se negava a receber o prêmio, se ela fosse a vencedora, pois considerava Disparada melhor do que a sua. Ou A Banda empatava com Disparada, ou ele se recusaria, publicamente, a receber o prêmio. Perguntado se topava dividir o valor da premiação, Chico disse que sim. O júri não teve alternativa senão declarar o empate das duas canções, num 6 x 6. Chico só pediu que nunca fosse dito que A Banda havia sido a finalista e que houvera depois um acordo. E, na sua nobreza de caráter, até o dia de hoje, Chico Buarque nunca comentou ter sido ele o responsável pelo empate. E se lhe perguntam sobre a história, diz que Disparada ganhou por méritos próprios, pois era a melhor música do festival. Tempos depois é que membros do júri deixaram a história escapar.
Quando os finalistas, Nara Leão, Chico Buarque e Jair Rodrigues, adentraram no palco foi uma alegria geral. Tudo terminou em festa, tanto no teatro quanto em todo o país.
Vejam abaixo a letra de Disparada e a canção sendo defendida por Jair Rodrigues no festival. E se arrepiem!
Disparada
Autoria: Geraldo Vandré e Théo de Barros
Intérprete: Jair Rodrigues
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar
Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo, a morte e o destino, tudo
Estava fora do lugar, eu vivo pra consertar.
Na boiada já fui boi, mas um dia me montei
Não por um motivo meu, ou de quem comigo houvesse
Que qualquer querer tivesse, porém por necessidade
Do dono de uma boiada cujo vaqueiro morreu.
Boiadeiro muito tempo, laço firme e braço forte
Muito gado, muita gente, pela vida segurei
Seguia como num sonho, e boiadeiro era um rei
Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo
E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando
As visões se clareando, até que um dia acordei.
Então não pude seguir valente em lugar tenente
E dono de gado e gente, porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente
Se você não concordar, não posso me desculpar
Não canto pra enganar, vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar.
Na boiada já fui boi, boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém, que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse, por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu querer ir mais longe do que eu.
Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo
E já que um dia montei agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte num reino que não tem rei.
https://www.youtube.com/watch?v=82dRs2z6iQs&feature=kp
Fonte de pesquisa:
Chico Buarque de Holanda/ Abril Coleções
Chico Buarque/ Wagner Homem
A era dos festivais/ Zuza Homem de Mello
Uma noite em 67/ Renato Terra e Ricardo Calil
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