Arquivo da categoria: VIDAS SECAS

Vidas Secas – FUGINDO DA SECA OUTRA VEZ (21)

Autoria de Lu Dias Carvalhobaleia

Sinha Vitória tremia, debulhando seu rosário,
mexia os beiços, rezando rezas desesperadas.
Encolhido, Fabiano espiava a caatinga abrupta.
No céu, nem sinal de arribação. Debandaram.

Os bichos finavam, comidos pelos carrapatos.
Fabiano resistia, pedindo seu Deus um milagre.
Quando viu que tudo na fazenda estava perdido,
combinou com sua mulher a premente viagem.

Matou seu bezerro morrinhento e salgou a carne.
Foi-se embora coa família sem dar adeus ao amo.
Partiram os quatro viventes ainda de madrugada.
Ganharam o mundo, fincando o pé na estrada.

A manhã sem pássaros e sem folhas e sem vento
vinha rompendo num silêncio medonho de morte.
Deus Nosso Senhor protegeria aqueles inocentes,
apesar do desamparo e da malquerença da sorte.

Sinha Vitória chorou baixinho a falta de Baleia.
Nem ela nem Fabiano queriam deixar a fazenda.
Só resolveram partir quando não tinha mais jeito,
pois não era possível viver num mundo desfeito.

Tudo ficava pra trás: a égua alazã, a cama de varas,
o chiqueiro e o curral ainda precisando de conserto,
as catingueiras, panelas de losna, pedras da cozinha,
e o cavalo de fábrica, tão servil e bom companheiro.

Um dia, numa terra distante, olvidariam a caatinga,
onde só havia montes pelados, cascalho, rios secos,
urubus, bichos e gente morrendo e muitos espinhos.
Resistiriam à saudade que amolesta os sertanejos.

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Vidas Secas – PRENÚNCIO DA SECA (20)

Autoria de Lu Dias Carvalho

can,12345

O bebedouro cobriu-se de aves de arribação.
Vinham em bandos, arranchando-se nos paus,
depois, seguiam-se pro sul, buscando comida.
Sinal de que o sertão ia de novo pegar fogo.

O céu, toldado pelas sombras das arribações,
era advertência de mau agouro para o sertão.
O mulungu encontrava-se sem folhas e flores.
Era só garrancheira pelada e cheia de penas.

Fabiano e a mulher já previam as desgraças.
O sol sugava os poços, as aves bebiam o resto.
Os bichos de pena iam acabar matando o gado.
Bebiam toda água, o gado curtia sede e morria.

Fabiano pensou na sua vida cruel de sertanejo.
Quanto mais tentava se esquecer da maldição,
mais uma desgraça vinha montada nas outras.
Sentia-se o mais maldito daquele mundo cão.

Preferia morrer a se assar na beira do caminho,
coa mulher e seus filhos acabando-se também.
Sua raiva aflorou contra aquelas bichas aladas
e, sem dó, pôs-se a atirar nelas num vaivém.

Tinha de segurar nas asas frágeis da esperança.
Talvez a seca não viesse e a chuva não tardasse.
E não haveria a fome, a sede e a cruenta fadiga.
Talvez os bichos só estivessem ali de passagem.

De repente um risco cortou o céu. Mais outros.
Milhares deles junto a medonho bater de asas.
Tudo vinha pra anunciar a maligna destruição.
Aquelas bichas anunciavam a seca braba.

Havia um sacolejar de asas em cima do poço.
Quando as pestes aladas voltavam ao sertão,
tapando tudo que fosse pau, num baita festejo,
até os espinhos duros da caatinga secavam.

Coitada da mulher, nos descampados de novo,
levando o baú de folhas, puxando os meninos,
andando na terra queimada, esfolando os pés.
Ela tinha sabença, era uma mulher de ouro.

Tanto bicho ali que derrubara coa espingarda.
Baleia, se vivesse, iria se regalar com a fartura.
Será que ele agira direito ao matar a  bichinha?
Estava com “raiva” de levar tanta dor e labuta.

Era preciso combinar a viagem com sua mulher.
Livrar-se das arribações, convencer seu coração,
de que não fora injusto matando a meiga Baleia.
Era preciso dimudar a vida pra outra direção.

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Vidas Secas – A MORTE DE BALEIA (19)

Autoria de Lu Dias Carvalho

can,12345

Sinha Vitória acha difícil Baleia endoidecer.
Sente-se triste coa morte precoce do animal.
Fabiano poderia esperar apenas mais um dia,
Pra saber se a execução seria indispensável.

Ele vê Baleia roçando os pelos no pé de pau.
Coa espingarda no rosto procura uma posição.
Ela o olhou, desconfiada e andou se desviando.
Ele só se tinha a visão de suas negras pupilas.

Fabiano acertou-lhe um dos quartos traseiros,
quebrando uma das pernas da coitada que fugiu
desesperada, sangrando, pra baixo dos juazeiros.
Caiu antes mesmo de alcançar a cova arredonda.

Tentou se erguer, desorientada. Ela erdia sangue.
Quietou-se, uivando baixinho, sem entender nada.
Uma sede medonha queimava sua garganta seca,
enquanto a escuridão dos olhos se aproximava.

Por que Fabiano lhe fizera aquilo, ela não sabia.
Havia nascido perto dele, sob a cama de varas,
e consumira sua existência na maior submissão:
olhava os meninos e o gado, se ele batia palmas.

Uma noite de inverno gelada cercou a criaturinha.
O tremor subia, e se espalhava pelo corpo ferido.
Do peito pra trás era tudo insensível e esquecido.
Inda ia vigiar as cabras contra as suçuaranas…

Baleia encostou a cabecinha fatigada na pedra fria.
Sinha Vitória deixara o fogo apagar-se muito cedo.
Agora ela queria apenas dormir e acordar bem feliz
num mundo cheio de preás gordos, no outro dia.

Baleia dá o último suspiro e parte!

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Vidas Secas – CAPETA DOS DIABOS! (18)

Autoria de Lu Dias Carvalho

can,12345

Fabiano decide por abreviar a vida de Baleia,
diante do sofrimento cruel do pobre bichinho.
Não é justo deixar a fiel amiga tão desvalida,
depois de tanto ajudar na dura lida da família.

Os dois meninos seguem, aflitos, o afã do pai.
Seu cenho é mais nuvioso de que noutros dias.
Limpa a espingarda, faz menção de carregá-la.
Próximo estão o chumbeiro e o polvarinho.

Seus pensamentos dizem-lhes que a boa amiga,
parceira de todas as horas, corre grande perigo.
Baleia sempre fora uma pessoa daquela família.
A bem dizer, não difere nadinha dos amigos.

Sinha Vitória, sofrente, atina o que está por vir.
Arrebanha os dois pixotes pra não ouvir o tiro.
Esconde-se com eles lá dentro da camarinha.
Deita-os e se esforça pra tapar seus ouvidos.

Prende a cabeça do mais velho entre as coxas,
calca as mãos finas nas orelhas do mais novo.
Como eles resistem, fica inda mais aperreada,
e segura os dois guris com muito mais força.

Os meninos gritam e se debatem, agoniados.
O mais velho consegue sair do agarramento.
A mãe, coa alma doída, pragueja indignada,
sem saber mais onde botar tanto sofrimento:

– Capeta dos diabos!

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Vidas Secas – A AGONIA DE BALEIA (17)

Autoria de Lu Dias Carvalho

rosa12

Baleia mal se arrasta de um lugar para outro.
Está magrinha, com partes do corpo sem pelo,
com manchas escuras supurando nas costelas.
Moscas famintas lambem seu sangue e o pus.
A cachorrinha atina ter chegado a hora dela.

Baleia espera calma e piedosamente a morte.
A boca cheia de chagas e os beiços inchados,
impedindo-lhe o simples ato de comer e beber.
O coraçãozinho de animal sofrido avisa-lhe que
mesmo os bichos têm hora pra nascer e morrer.

Fabiano até pensou que fosse raiva, e amarrou
ao seu pescoço um rosário de sabugo tiçonado.
A pobrezinha vai de mal a pior na sua moléstia.
Coça-se nos paus do curral ou anda pelo mato,
buscando uma gota de sossego no seu calvário.

O que mais lhe incomoda são os cruéis mosquitos.
Enxota-os com as orelhas murchas e já sem força,
ou agita sua cauda pelada para afastar os bichos.
Quanto às dores, foram tantas em sua curta vida,
ao debandar com os seus de um pra outro nicho.

Passou por anos penosos ao lado de sua família:
sol fervente, terra queimada, pote seco, cuia vazia,
e nem um osso pra enganar o estômago famulento.
Só a devoção pelos meninos, seus irmãos de dor,
parecia ir crescendo coa massa do padecimento.

Agora, a partida se abeira pra nossa meiga Baleia.
Ela fora, anos a fio, a digna parceira dos sertanejos:
de solidão, caminhada, abarracamento e esperança.
Seu coraçãozinho enche coa imagem dos meninos
e ela brincando na caatinga e na areia do rio seco.

Lágrimas deslizam de seus olhos pequeninos.
Eu não sei responder, se Baleia sorri ou chora
pela curta vida batida no sofrimento e na seca.
A história perdeu a graça, a escritora a palavra.
Eu só sei que a bichinha não tarda a ir embora.

E neste meu poema roto, eu me diluo em lágrimas,
ao me despedir de minha terna e boa companheira,
musa de meus versos toscos perambulando ao léu.
Baleia não faz mais parte de minha vida e palavras.
Machucada, só me resta engolir minha choradeira.

Não chore, poeta, pois Baleia foi descansar no céu!

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Vidas Secas – OS SERTANEJOS VÃO À FESTA (16)

Autoria de Lu Dias Carvalho

rosa12

Fabiano comprou dez varas de alva fazenda.
Sinha Terta incumbiu-se de coser pra família.
Ela achou o pano pouco e ele fingiu de bobo.
A velha pretendia era lhe roubar os retalhos.
As vestes saíram curtas, cheias de emendas.

O pai vestia roupa de brim, chapéu de baeta,
gravata e botinas de vaqueta e elástico, rígido.
Sinha Vitória usava vestes de ramas coloridas,
tentando se equilibrar nos sapatos de salto alto.
Eles mancavam como bois doentes dos cascos.

Os meninos, vaidosos, usavam calça e paletó,
pois só vestiam camisa riscada ou ficavam nus.
Baleia seguia atrás com medo de ser enxotada,
aos poucos, faceira, incorporou-se ao grupo, e
assim, seguiam os sertanejos pra festa na rua.

No caminho, o pai botou suas meias no bolso,
e retirou  paletó, gravata e colarinho, aliviado.
A mãe tirou sapatos, meias e amarrou no lenço.
Os guris puseram as chinelas debaixo do braço.
Todos se sentiram livres pra acelerar o passo.

Ao anoitecer, perto do riacho, à entrada da rua,
o pai lavou os pés, limpando as gretas de barro.
A mãe arribou a saia, sentada no chão, lavou-se.
Os pixotes esfregaram seus pés e saíram do rio,
botaram as chinelas, atentos às ações dos pais.

A mãe andava aos tombos por causa dos saltos.
Os pixotes sentiam medo dali e pisavam devagar,
receosos de chamarem a atenção das pessoas.
Não imaginavam aquele monte de casas e gente
O mundo agora lhes parecia muito mais alargado.

Eles iriam ganhar puxões de orelhas e cascudos?
Os guris retraiam-se, encostando-se às paredes,
com os ouvidos repletos de sons desconhecidos.
Olhavam tudo, abobados com coisas nunca vistas.
Como botavam na ideia tantos nomes esquisitos?

A família aproximou-se da igreja e foi entrando.
Baleia, inquieta, ficou na calçada, olhando a rua,
Na saída, os guris sentiram falta da cachorrinha.
Como achar a bicha naquele mundaréu de gente?
Devia estar perdida, levando pontapés, coitadinha.

Baleia reapareceu, mostrando seu contentamento.
Os pixotes, ainda nervosos, puseram a lhe explicar:
tinham tomado um susto por causa de seu sumiço,
mas a cadela não deu a menor importância à lição,
apenas sentia os cheiros estranhos e esquisitos.

Baleia quis latir, mostrar o desgosto a tudo aquilo,
mas nunca convenceria Sinha Vitória e seu marido.
A opinião dos guris era igual a dela, tinha sabença.
Esperavam ansiosos voltar pra casa, lá na caatinga,
e deixar aquele mundão feio e sem nenhum sentido.

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